domingo, 29 de outubro de 2017

Aarhus 39 - Festival Internacional de Literatura Infantojuvenil

Ui! Passei uns dias bem bons no Festival Internacional de Literatura Infantojuvenil.
Volto da Dinamarca cheia de pujança e apetite.
Foi assim: dezenas de autores de toda a Europa, uma biblioteca pública de fazer cair o queixo, salas repletas de crianças e adolescentes, debates interessantes sobre inspiração e escrita, leituras ilustradas ao vivo e muitas outras coisas. Segue uma pequena reportagem fotográfica:
Tudo se passou no edifício Dokk1, uma biblioteca upa-upa debruçada sobre o rio.

A cerimónia de abertura contou com a presença de centenas de crianças e da Princesa Mary da Dinamarca.

A seleção de jovens europeus que escrevem para os mais novos coube a
Kim Fupz Aakeson (DK), Matt Haig (UK) e Ana Cristina Herreros (ES).
O jornal dinamarquês "Information" publicou um suplemento literário
dedicado quase exclusivamente ao Hay Festival de Aarhus.
As autoras Aline Sax (BE) e Anna Woltz (NL) discutem identidade e família com o público; Salla Simukka (FI), Cornelia Travnicek (AT) e Endre Lund Eriksen (NO) debatem questões de género e homossexualidade; Michaela Holzinger (AT), Elisabeth Steinkellner (AT) e Cathy Clement (LU) falam sobre férias, liberdade e tédio; David Machado (PT) e Maria Parr (NO) refletem sobre o poder das palavras e das histórias.
Na universidade de Aarhus teve lugar um seminário que incluiu uma divertida sessão com o ilustrador dinarmarquês Cato Thao-Jensen; uma leitura da Maria Turtschaninoff (FI); e uma troca de ideias entre as autoras dinamarquesas Sarah Engell e Sanne Munk Jensen sobre o tema: "Que histórias devem ser hoje contadas às crianças?"

Desta foto constam duas leituras que contaram com ilustrações ao vivo pelo ilustrador dinamarquês Soren Jessen a partir do meu conto e das histórias de Aline Sax (BE), Cornelia Travnicek (AT) and Annette Münch (NO).

As estrelas do festival - Chris Riddell, Cressida Cowell e Meg Rosoff - encantaram e conquistaram.
Na última noite tivemos direito a um jantar à luz das velas. Em cima: eu, Sandrine Kao (FR), Aline Sax (BE), Elisabeth Steinkellner (AT), Annelise Heurtier (FR), Cornelia Travnicek (AT) and Michaela Holzinger (AT). Em baixo, à direita: a equipa portuguesa, constituída pelo David Machado e esta minha pessoa.

domingo, 22 de outubro de 2017

No Institut Saint Jean Baptiste de la Salle, em Bruxelas

Uh là là! Ontem passámos uma bela tarde no Institut Saint Jean Baptiste de la Salle, em Bruxelas. Eu, a Karateca, o Supergigante, a Mary John e este pequeno-grande ser dentro de mim estivemos à conversa com a malta do 6.º, 7.º e 8.º anos. Eram mais de 40 alunos, entre os 11 e os 14 anos, cada um com o seu percurso. Lusodescendentes, emigrantes, portugueses da Silva, todos têm em comum a identidade secreta de quem é de lá e de cá. Por causa disso, têm aulas de português ao sábado! À pergunta: "O português é a vossa língua materna?" responderam quase todos que sim.


No ano passado uns leram a Karateca, outros o Supergigante. A Mary John era novidade para as três turmas, menos para a Wendy que, com o seu ar de Terra do Nunca, já vinha com uma Mary John debaixo do braço. 
As perguntas mais divertidas foram sobre as personagens femininas. Porque é que a karateca é tão complicada? Porque é que ela diz e desdiz? Porque é que a Joana diz uma coisa e faz outra? Porque é que ela não diz o que sente? Serão estas personagens tão diferentes de nós? Não seremos todos complicados? Umas vezes de uma maneira, outras vezes de outra? Não temos sempre dúvidas? O que ganhamos com isso? O que perdemos?





Acabámos o encontro com uma leitura da Mary John. Tinha pensado ler só uma página, mas acabei por ler umas cinco. O silêncio ia alto e concentrado!
Resta-me agradecer às professoras Sílvia e Maria Franquilina o convite e a simpática receção. Foi um dia em cheio!


sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Um homem massaja-lhe os pés

Um homem massaja-lhe os pés e ela concentra-se nele. Um rosto muito pequeno e frágil. Os olhos em bico, a tez escura. Talvez seja vietnamita ou cambojano. Os dedos do homem nos seus tornozelos e ela pensa em Marguerite Duras e no seu amante chinês, tão intensamente mole, de causar dó e asco ao mesmo tempo.
Fecha os olhos, mas não relaxa. Está sentada num cadeirão muito burguês e balofo e apercebe-se agora mesmo da sua existência igualmente burguesa e balofa. Neste momento, reflete sobre a quantidade de toalhas que o massagista oriental usa durante a massagem. Seis quilos de toalhas, talvez oito. Uma máquina de roupa.
Abre os olhos e observa. Só então lhe ocorre que nem fizera a depilação. Que chato. Há semanas que não olha para as pernas. Contempla as suas patas descuidadas mesmo em frente àquele rosto delicado. As unhas dos pés com vestígios de um verniz fossilizado. Coitado do homem caído a seus pés. Se lhe der um pontapé, ele cai e parte-se aos pedaços.
Jamais teria um amante chinês, pensa. Ou vietnamita. Ou cambojano. Eram homens demasiado pequenos para a sua existência. Eis um pensamento tacanho e desidratado, igualzinho aos seus pés. É uma mulherzinha burguesa, balofa e também muito racista no amor e no sexo. Ainda assim, gosta de um bom amasso.
No final da massagem, sai do salão aos pulinhos, os pés de súbito muito leves, levezinhos. Na primeira esquina, encontra um pequeno milagre: uma vontade ansiosa de escrever com as mãos e com as patas traseiras. Começa a escrever logo ali, a caminho de casa. As patas e as ideias muito hidratadas.
Por vezes fazia-lhe bem pôr a vida de molho. Enfiar o pé na argola.
Levar um bom apertão.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ela escreve e o país arde

Ela escreve e o país arde. A culpa logo ali, na ponta dos dedos. E então pára de escrever. Faz outra coisa qualquer. Por exemplo, rega as plantas. As suas mãos em brasa.
O país arde e ela caminha para o elétrico. Lê um artigo sobre amamentação. Aponta a expressão "breast friend". No Facebook, algumas mulheres falam de assédio sexual. Só as mulheres falam de assédio sexual. Os homens estão-se a flamejar para isso.
O país arde e ela pensa naquele padre da sua infância. Aquele homem místico a pousar-lhe a mão no joelho. A falar-lhe da beleza por dentro e da beleza por fora. A capela compenetrada naquela coisa do divino, Jesus muito crucificado. Não se percebe se estará morto ou vivo. A menina muito bem sentada no banco da capela, a ouvir o Senhor Padre, pronta a confessar os seus pecados. Mas aquela mão desconcentra-a. A mão divina pousada no joelho. Tomara que aquela mão saia dali, pensa. Porque o seu joelho não tem vocação nenhuma para o sobrenatural. É um joelho muito feio e peludo, cheio de cicatrizes. Ainda hoje, quando pensa no seu joelho, pensa em todos os seus pecados e também naquela mão divina, que afinal era a mais humana de todas as mãos, a mais feia de todas as mãos.
O elétrico chega ao seu destino e ela pensa no seu país a arder, naquela memória em chamas e coloca então a hipótese de esse padre morrer num incêndio. O homem carbonizado, extremamente morto. Depois arrepende-se desse pensamento, claro. Faz outra coisa qualquer. Por exemplo, escreve um texto. Sempre é uma pequena fogueira para a alma. Talvez qualquer coisa aconteça. Um certo ardor por dentro, quem sabe. Mas está difícil escrever neste mundo. Está difícil viver.
Um certo vazio em todas as coisas.
O país arde e ela passa pela livraria bonita. Os livros muito bem sentados na montra. Não se percebe se estarão mortos ou vivos. Lembra-se então daquele livro enigmático, que falava de um futuro inventado em que os bombeiros queimavam livros. Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel arde. Diz que o autor escreveu o livro em duas semanas. Uma autêntica combustão criativa.
Há qualquer coisa inspiradora nessa ideia, de facto.
A literatura no meio das chamas. Esturricada. Fulgurante.
Reduzida a cinzas.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Mary John no catálogo White Ravens 2017

Uau! Que boa notícia!
A Mary John foi incluída no catálogo White Ravens 2017, uma seleção de 200 livros infantojuvenis de todo o mundo publicada anualmente pela Biblioteca Internacional de Literatura Infantojuvenil em Munique.
A edição de 2017 conta com obras em 38 línguas de 56 países.
Portugal está representado pelos livros "O convidador de pirilampos" (Ondjaki e António Jorge Gonçalves), "A cidade dos animais" (Joan Negrescolor), "Onde moram as coisas" (Pedro Ferrão e Marc Parchow) e "Mary John" (com ilustrações magníficas do Bernardo P. Carvalho).
Eis as palavras mui generosas que o júri escreveu sobre a "Mary John":

"In contemporary Portuguese young adult literature, the novels of Ana Pessoa (b. 1982) take up an exceptional place. The author is masterfully adept at describing the cosmos of maturing teens, with its challenges and dramas, turbulences, moments of happiness, disappointments, and catastrophes. She writes in an authentic language that captures the protagonists’ sense of life and closely orients itself to their pulse. In an astonishing way, her newest book does all this and more. “Mary John” sets itself apart from the author’s previous novels by its even more coherent storytelling, its undisguised, intense language, and the deep insight it offers into the emotional world of the protagonist and first-person narrator. Maria João, called Mary John, writes a single, long letter to Júlio “Pirata”, her first, unrequited love. She openly writes of friendship, longing, desire, and sexuality and the painful process of dealing with feelings such as rejection and loneliness. (Age: 14+)"

Texto disponível em: http://whiteravens.ijb.de/book/774
É possível pesquisar os catálogos White Ravens por língua, país, título, etc.: http://whiteravens.ijb.de/list