Chegámos a Bruxelas há exatamente dez anos. Eu e a rapariga do elétrico. Lembro-me bem.
Como se fosse ontem. Como se fosse hoje.
Estamos a sair do elétrico agora mesmo. No dia 31 de janeiro de 2007, um belo dia de inverno. Frio e calor na rua. Arrepio e aconchego.
Trazemos uma mochila às costas e arrastamos atrás de nós uma mala esquisita que não regula bem das rodas.
Atravessamos uma passadeira e depois outra. Chegamos à morada nova. Consultamos o mapa. Será mesmo ali?
Sim, é. Lá está ele: o lote 13. O número da sorte. O número do azar.
Tocamos à campainha. Ninguém abre. A rapariga insiste. Ninguém abre.
Eu olho para a rapariga à porta de casa e a rapariga olha para mim.
Sentamo-nos em cima da nossa mala esquisita. Eu e a rapariga à espera. Somos a pessoa do passado e a pessoa do futuro, observamos as casas.
Um silêncio estranho na rua. Os passeios muito parados no tempo, como se a cidade não morasse ali.
O dia a descer depressa.
A rapariga diz: Não tarda faz-se noite.
Eu digo: Não tarda faz-se o dia seguinte e o ano seguinte. E a década seguinte.
Será mesmo assim. É mesmo assim. Foi mesmo assim. Viemos por dez meses, mas afinal ficámos dez anos.
A rapariga à porta de casa não sabe desse lapso temporal, mas eu sei, porque sou dez anos mais velha, estou dez anos à frente.
Eu olho para essa rapariga e vejo um autorretrato, uma fotografia ou outra coisa assim muito quieta e antiga, com tendência para a eternidade.
Eu penso nela, na rapariga recém-chegada, e tenho vontade de ser essa outra, a que veio por dez meses e ficou dez anos. Ser exatamente essa pessoa há dez anos.
Chegar àquela rua, ao lote 13. Sentar-me na mala idiota. Ficar à espera. Desistir de estar à espera. Verificar que o meu Nokia azul não tem saldo nem bateria. Entrar numa cabine telefónica. Ligar para a minha companheira de casa a partir de uma cabine telefónica.
Ser estrangeira. Não gostar de ser estrangeira e, logo a seguir, aprender a gostar de ser estrangeira. Não querer ser outra coisa.
Escrever sobre isso. Escrever sobre qualquer coisa. Criar um blogue. Chamá-lo Belgavista.
Assinar um contrato de trabalho. Assinar um contrato de arrendamento. Beber cerveja belga, fazer amigos, também eles estrangeiros. Admirá-los, ouvi-los, rir-me com eles, chorar com eles. Aprender línguas novas. Tropeçar no português. Cair na neve. Fazer o que me apetece. Não fazer absolutamente nada. Comer um gaufre, comprar uma novela gráfica. Ir ao mercado. Escrever de madrugada, ir a pé para o trabalho. Ter tempo e espaço em Bruxelas. Andar de bicicleta no bosque. Dormir cada vez menos, ler cada vez mais. Ler na cama. Ler no sofá. Ler na varanda.
Viver apaixonada pelo Homem Ilimitado. Sempre.
Ir a Portugal. Chorar quando o avião aterra. Nunca perceber porquê.
Ser turista em Lisboa. Ser imigrante em Bruxelas. Ser tão absolutamente estrangeira em toda a parte. Não pertencer a lado nenhum.
Pensar que Bruxelas não é de ninguém. Que somos todos estrangeiros aqui. Os meus amigos, os meus colegas. A minha cabeleireira, o dentista, o osteopata.
Pensar que o meu mundo é feito de imigrantes. Aceitar que este mundo não é o mundo de toda a gente. Não perceber o Brexit nem o Trump nem a Marine Le Pen.
Andar de elétrico. Lembrar-me daquela rapariga do início. A rapariga à porta de casa. Saber que eu fui essa rapariga à espera. Que eu sou essa rapariga à espera. Que serei sempre.
Compreender o inverno, ter frio no inverno, escrever no inverno.
Ter saudades de qualquer coisa que não é bem um lugar. Que não é bem um tempo. Que também não é uma pessoa.
Olhar para esta década e ver uma paisagem, um autorretrato ou outra coisa assim muito quieta e antiga, com tendência para a eternidade. Perceber que nada é eterno, que tudo muda, até a memória que temos de nós próprios.
Escrever sobre isso. Escrever sobre qualquer coisa. Escrever imediatamente.
Contra o tempo. Contra o inverno.
Contra o esquecimento.