A vida está preta. A fome é negra. O amor é cego.
Este mundo anda tão sinistro.
Vive-se pouco. Morre-se muito.
Uma pessoa acorda de manhã e o dia ainda está de noite.
Só apetece comer chocolate. Beber vinho tinto. Escrever baixinho.
O meu caderno muito branco a rir-se no escuro.
Ho ho ho.
Ainda assim, é Natal.
De repente fez-se luz na rua.
O meu caderno disse: O sol nasceu.
E esta frase despertou-me para uma outra rua. Para a canção da Rua Sésamo.
O sol nasceu. Como está lindo, o céu.
Eu tenho oito anos e jogo à macaca, danço a lambada. Tenho um pequeno órgão de música. Toco canções de Natal, sobretudo aquela assim: Last Christmas I gave you my heart.
Eu não percebo a letra, mas percebo a dor.
Eu canto: Que venha de dentro de mim essa nova mulher. É a canção da Toina, mas eu não quero ser a Toina. Eu quero ser a Tieta do Agreste.
Lembro-me disso. De ter oito anos. De rasgar os dois joelhos numa queda valente. De rasgar o meu vestido azul a saltar por cima de uns arbustos. No Carnaval mascarei-me de empregada doméstica. Li as Mil e uma noites numa edição ilustrada. Tinha terrores noturnos com os quarenta ladrões.
Aos oito anos usava umas fitas na cabeça que tinham um lacinho a meio. Tinha vergonha de me assoar. Engolia sempre o ranho. E era a mais alta da turma.
Eu gostava disso. De ser a mais alta da turma.
Não sei por que razão me lembrei de tudo isto agora. Afinal de contas hoje é o primeiro dia de inverno. Está um dia soturno. Tenho frio nos dedos.
Os meus sobrinhos têm oito anos. Que engraçado.
O meu caderno branco acha que eu devia ir até ao mercado de Natal. Beber vinho quente, morrer um bocado.
O meu caderno branco tem humor negro. Chama-se Mirror Mirror.
É o meu caderno de inverno.
O meu habitat natural.
O meu animal noturno.