quinta-feira, 26 de junho de 2014

A narradora desfasada

A narradora deste texto anda desfasada. Até o cabelo se desalinha, coitado. Não há maneira de ir ao sítio. Se o empurra para um lado, vai para o outro. Se o hidrata, fica oleoso. Se o ignora, fica encrespado.
É um cabelo carente.
A narradora deste texto sacode os ombros e sai de casa. Se espera pelo elevador, ele não arranca. Se vai pelas escadas, tropeça. Se calça sandálias, molha-se. Se vai a pé, atrasa-se. Se corre para o elétrico, não o apanha. Se o apanha, não encontra o passe. Se tem frio, não tem casaco. Se leva o guarda-chuva, está sol. Se vai de botas, tem calor. Se quer cantarolar, não tem música. Se quer café, não tem trocos. Se tem tempo, não tem ideias. Se tem ideias, não tem caneta. Se tem caneta, não tem caderno. Se quer pagar, não tem carteira. Se está cansada, não descansa. Se descansa, aborrece-se.
E tudo isto - pensa a narradora deste texto - é uma grande canseira.
Antes ficar na cama a ouvir os passarinhos lá fora. E os belgas a celebrar a vitória ou então a derrota.
O que vale é que a narradora deste texto não tem sono. Porque se tivesse sono, não dormia. E se quisesse ler, adormecia.
Antes ficar a escrever um texto fictício sobre um mundo paralelo. Diferente deste mundo.

Completamente desfasado.