segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Os lugares imaginários

Diz que o Alberto Manguel passou grande parte da vida a colecionar lugares imaginários.
Até escreveu um livro a fingir sobre isso. E não é um homem inventado, é um homem a sério. Vive num convento fantasiado algures em França, num grande regabofe utópico com milhares de livros inimagináveis.
Vi-o uma vez em Bruxelas, cidade fictícia de nuvens falsas, e gostei de o ouvir. Até comprei um livro irreal do senhor. Infelizmente, não cheguei a lê-lo. Distraí-me.
Às vezes acontece-me.

Passo os dias em lugares imaginários. No monte dos vendavais. Na minha varanda idealizada. A beber um café ilusionista em casa do Sherlock.
Quando saio da minha cabeça inventiva, fico logo com sono, com frio e com fome, porque as coisas a sério cansam-me. Os diplomatas que aparentam diplomacia cansam-me e os deputados tagarelas também e as cimeiras criativas, os líderes liderados e os lobistas avatares, o ilusionismo fiscal, o fecundo futebol, a NSA, o Facebook, os likes, as selfies, as negociações quiméricas, os dados pessoais, as infrações, a fraude, os incumprimentos, as violações, as guerras concebidas, o fabuloso Big Brother, todo este admirável mundo a sério que é tão a fingir, tão inconcebível, tão efabulado, que qualquer dia damos mesmo um grande passo de humanidade ficcional e vamos parar a Marte.

Já estou cheia de sono e frio e fome.
Antes viver no meu Kindle surpresa a engendrar outra coisa qualquer.

Hoje queimei a língua. Distraí-me.
Estava na Catedral com o Vargas Llosa e escorreguei nas palavras.
Parece uma dor inventada, mas não é. É uma dor a sério.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

To the lighthouse

So that is marriage, Lily thought, a man and a woman looking at a girl throwing a ball. That is what Mrs. Ramsay tried to tell me the other night, she thought. For she was wearing a green shawl, and they were standing close together watching Prue and Jasper throwing catches. And suddenly the meaning which, for no reason at all, as perhaps they are stepping out of the Tube or ringing a doorbell, descends on people, making them symbolical, making them representative, came upon them, and made them in the dusk standing, looking, the symbols of marriage, husband and wife. Then, after an instant, the symbolical outline which transcended the real figures sank down again, and they became, as they met them, Mr. and Mrs. Ramsay watching the children throwing catches.
 
Virginia Woolf, To the lighthouse (Rumo ao farol)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Here I am

Credo! Here I am é um título chato e parolo como o dia dos namorados. Promete logo uma canção acústica e a duas vozes, que é uma coisa duplamente pindérica. Como se não bastasse, a voz da Binki Shapiro combina na perfeição com a do Adam Green e isto provoca-me irritação e ciumeira nos ouvidos.
(Binki Shapiro é um nome chato e parolo como o dia dos namorados.)
 
 
Vou fingir que sou antes eu a cantar.
Here I am meet me as before and more again.
Ah, muito melhor, nem se compara!
 
De resto, abomino o dia dos namorados. Blargh!
Vou ficar no sofá a ver Big Bang Theory. E a dar beijinhos.

Um programa chato e parolo como o dia dos namorados.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A narradora entrevada

A narradora entrevada foi ao osteopata. Gabinete amplo, secretária ao fundo, uma cadeira importante que afinal eram duas, maca a meio caminho com uma toalha deitada, jardim empoleirado na janela, homem robusto. Um aperto de mão, patas de osteopata.
O senhor disse: Deite-se e a narradora deitou-se.
As patinhas dedilharam as costas da narradora entrevada.
Primeira vértebra. Ao longe, toalhas enroladas numa prateleira.
Segunda vértebra. Um armário ali à frente, enorme, que estranho.
Terceira vértebra. Não há um único cartaz com ossos neste gabinete. Só um quadro assim-assim. Quarta vértebra. A vida seria diferente se não fossemos vertebrados.
As patas do osteopata dedilhavam contentes. Eram patas boas e justiceiras, e as vértebras da narradora eram más, mereciam ser castigadas.
O osteopata disse: Deixe-se ir e a narradora deixou-se ir.
Um braço para ali, o outro para acolá e, de súbito, a narradora estalou.
Estalou mesmo, eu ouvi. PUM!
A narradora desbloqueada endireitou as costas e saiu destravada para a rua.
A meio caminho abrandou o passo. Trazia uma desconfiança qualquer dentro do crânio.
Alguém se ria nas suas costas. Sim, alguém se ria. Ouvia-se bem. HAHAHA!
Eu também ouvia.
E não eram as pessoas que passavam. Não eram as patas do osteopata.
Eram as vértebras da narradora. Escondidas atrás das costas.
Eram vértebras más e velhacas.
A narradora caminhou direita, mas não segura.
Nada podia contra si própria. Mas às vezes não gostava nada dos seus bloqueios.
Nem da sua coluna vertebral.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Cor de pele: Mel

Acabei de ler o segundo livro da banda desenhada Couleur de Peau: Miel.
Ainda não percebi se gosto desta trilogia. Às vezes acho que não, outras vezes acho que sim, outras ainda mais ou menos. Isto acontece-me com frequência: não perceber se gosto de uma camisola que estou a usar, de um livro que estou a ler, de uma canção que estou a ouvir, de um sabor novo, de uma cor.
Sou um bocado pim-pam-pum. Leio isto e aquilo, hoje apetece-me, amanhã logo se vê. E não sou de colecionar coleções e ler os livros por ordem, que grande maçada. Mas esta novela autobiográfica de Jung, autor sul-coreano que faz bande dessinée à belga, começa com um grande empurrão e eu caí dentro de uma lixeira em Seul, onde um polícia encontrou um menino de cinco anos. E pronto, uma pessoa põe-se logo a ler.
Para salvar a criança.
E salva mesmo. A páginas tantas a criança é adotada por uma família numerosa algures na Bélgica, por isso continuei. O segundo livro fala disso mesmo, de ser igual e diferente, de crescer num país chamado Bélgica e de cortar a identidade pela raiz. "Je savais bien que je n'étais pas japonais. Mais quand je me regardais dans un miroir, je ne me sentais pas belge non plus ! Je voyais un coréen. C'était inéluctable."
Ando preocupada com este moço fora do sítio porque, do alto da sua adolescência, decidiu nunca mais dizer palavra à hora de jantar. Come e cala.
É um bocado desconcertante.
Hoje vou passar na livraria e pedir o terceiro volume do Couleur de Peau. O senhor da livraria não vai perceber e eu vou repetir: Couleur de Peau. Se o senhor não perceber, vou dizer a palavra-chave: Jung.
 
Às vezes não gosto de crescer em Bruxelas. Outras vezes sim, gosto muito.
É lixado dizer Couleur de Peau.