segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Primeiro dia



No primeiro dia, a rapariga ficou mais velha. Acordou de manhã e viu isso mesmo, que estava mais velha. A constatação passou-se em frente ao espelho, mas o envelhecimento não, tinha sucedido provavelmente antes, durante a noite. A rapariga só dera por ela de manhã e olhou para si própria em frente ao espelho. Fenómeno esquisito.
Depois foi fazer café. A rapariga, agora mais velha, pensou que não era mau envelhecer.
O homem ilimitado andava à solta pela casa e assobiava ilimitadamente. A rapariga chamou-o como quem chama um pássaro, mas o homem ilimitado não era um pássaro porque era mais parecido com o Peter Pan: tinha uma terra longínqua dentro dele. Além disso, tinha asas nas mãos, nos pés, nas orelhas, nos cabelos. Também tinha voos no corpo e muitos ventos. Não era um pássaro.
A rapariga, agora mais velha, ligou a música. Ouvia M. Ward dia sim, dia não: num dia passava os minutos todos atrás dele, no dia seguinte ignorava-o, para que ele fosse atrás dela. Uma história de amor como as outras. Naquele domingo, por exemplo, a rapariga não ouviu M. Ward, o que foi uma pena, porque o M. Ward tinha sido a banda sonora perfeita para aquele primeiro dia.
A rapariga, agora mais velha, comia torradas despreocupadas com ovos mexidos. O homem ilimitado também. Falavam de boca cheia porque queriam comer e falar ao mesmo tempo.
Não, não era mau envelhecer. Desde que houvesse pão e café de manhã. Desde que a música tocasse aos domingos. E o homem ilimitado assobiasse. Ilimitadamente. À solta pela casa.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Não obstante as brumas

Aquela rapariga anda de sandálias brancas não obstante as brumas e a inevitabilidade da chuva. Anda contente de pés ao léu, ostentando as suas unhas lindíssimas, pintadas de fresco.
A rapariga de sandálias brancas acredita piamente no Verão, mesmo que daqui a pouco ande a chapinhar em poças de água.
Outras raparigas acreditam noutras coisas. Aquela acredita no Verão. (As raparigas arabescas, por exemplo, que andam por aí encarapuçadas como criminosas acreditam em coisas mais invernais e, portanto, menos iluminadas.)
A rapariga de sandálias brancas e unhas pintadas de fresco atravessa a rua e polvilha a estrada de Verão, qual Sininho na terra do sempre.
Quase desejamos que chova para a ver chapinhar na água.
Em Bruxelas, o Verão é assim. Uma questão de atitude. De crença. E não uma estação.
O autor e o narrador converteram-se. E vão pintar as unhas dos pés.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Os que escrevem

Os que escrevem nem sempre escrevem. Às vezes fazem outras coisas. Por norma fazem outras coisas. O autor e o narrador deste texto supõem que os outros, que fazem outras coisas, também escrevem. Os que escrevem nem sempre escrevem. Por vezes mascam pastilhas elásticas. Andam de comboio. Vão ao mercado. São iguais aos que fazem outras coisas, só que preferem escrever a fazer outras coisas. O autor deste texto, na verdade, prefere comer chocolate a escrever. O narrador não, gosta mais de escrever. Por vezes nem o autor nem o narrador escrevem, ficam a meio, entre o pensamento e a escrita. Por vezes a palavra é mais bonita entre o pensamento e a escrita. Por norma a palavra é mais bonita entre o pensamento e a escrita. Às vezes os que escrevem lêem o que os outros escrevem. Gostam do que os outros escrevem. Têm inveja do que os outros escrevem. Às vezes têm medo.
Uns escrevem mais que os outros, melhor que os outros, mais forte que os outros, mais opaco. Os que escrevem só têm isso em comum: escrevem. Nem todos os que escrevem são escritores. A maioria é outra coisa. Alguns são tradutores. Ou medíocres. Ou as duas coisas. Os que traduzem põem noutra língua o que os outros escrevem. Os que escrevem também viajam. Também compram pão. Também vão à livraria Galileu em Cascais comprar o último romance do José Eduardo Agualusa. Também vão à praia. E a Aveiro. No comboio. Alfa pendular. Os que escrevem nem sempre escrevem no comboio. Às vezes ouvem música. Ou lêem o que os outros escrevem. Ou fazem as duas coisas ao mesmo tempo. Outras vezes não fazem nada. Mascam pastilhas elásticas. Ou olham para a capa do último romance do José Eduardo Agualusa.
Os que escrevem têm medo. Da noite. Do dia. Do lobo mau. Dos cabelos negros do Agualusa. De Angola. Os que escrevem compram livros, mas nem sempre os lêem. Os que escrevem são iguais aos outros. Medíocres, pequeninos, invejosos. São iguais aos que fazem outras coisas, só que preferem escrever a fazer outras coisas. Só isso.
Tenho medo do José Eduardo Agualusa.