segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Os músculos cá dentro


Pensávamos que era só um, afinal eram dois. Duas bolsas, duas placentas, dois bebés. Um haveria de ser menina, disse eu para os meus botões e para as minhas placentas e os meus cordões, mas disse mal, claro. Era um rapaz mais um rapaz que se vinham juntar ao outro rapaz que já cá andava.

Brotaram há quatro anos. Um pesava dois quilos e o outro três. São agora do mesmo tamanho. 

Gostam os dois de ovo cozido, de bolacha Maria, de esparguete à bolonhesa. Um diz: “Sou muito rápido”, o outro: “Eu ando devagar”. Um corre atrás da bola, o outro senta-se no chão. Um é mais doces, o outro é mais salgados. Nenhum deles gosta de pepino. Têm os dois medo de cães. Têm os dois medo do escuro. Um gosta de crocodilos, o outro gosta de bateria. Um está sempre a desenhar o sol, o outro aponta para a lua. Repetem tudo o que dizemos. Parecem uns papagaios. “Cuidado, que está quente.” “Cuidado, que está quente.” “Cuidado, que está quente.”

Correm os dois para o meu colo. Dizem: “Sou pequenino”, mas depois corrigem: “Eu sou grande”. E depois: “Eu sou pequenino e sou grande”, o que até é verdade. Crescer é tramado.

São bastante diferentes mas toda a gente os confunde. “Tu és este ou és aquele?”, perguntam as pessoas interessadas. Um sorri timidamente, o outro grunhe ou berra ou diz simplesmente: “Vai-te embora”. As pessoas, coitadas, vão-se embora, mas nenhum responde à pergunta. Adoram ser um mistério ou não querem saber desse mistério, ainda não percebi bem.

Quando os vou buscar à escola, estão quase sempre juntos. Andam de mão dada, correm atrás um do outro, brincam aos pais e às mães. 

Um anda sempre sujo. Ténis imundos, unhas pretas. O gelado escorre-lhe pelo pescoço, pelos braços e ele quer lá saber, não se queixa. É cá dos meus. Enfia as mãos na comida, esborracha o arroz, o feijão, o tomate, adora plasticina, areia e terra molhada, salta para dentro das poças.

O outro anda sempre direitinho. Sacode os sapatos para se ver livre da areia, pede toalhetes para limpar as mãos e a boca, chora quando se molha, olha-se ao espelho, quer estar penteado. 

Assim que entram em casa, querem brincar com os legos. Um junta duas peças. Diz: “É uma mota”. O outro diz: “Não é uma mota.” Sim, é. Não, não é. Sim, não. Sim, não. Acaba-se a amizade. Tabefes, empurrões, arranhadelas. É preciso separá-los. Ralho com os dois, obrigo-os a pedirem desculpa. Pedem desculpa um ao outro, mas continuam a odiar-se em silêncio. Há sempre um que se fica a rir. “Pára de olhar”, diz um, mas o outro não pára. “És cocó”, diz este. E voltam a andar à bulha.

Quando saímos de casa há sempre um a chorar. Alguém bateu em alguém, aqueles imperativos do costume: “Não batas”, “Não empurres”, “Não digas”.

Levo os dois a passear no bosque. Um vai à frente, o outro atrás. Brincam os dois com pedras, paus, folhas. Chamam um pelo outro. Encontraram uma lesma ou um cocó ou um caracol. Um quer ir por aqui, o outro por ali, um pede água, o outro chocolate.

De vez em quando anoto as frases que eles dizem. Por exemplo: “A lua não tem olhos”. Ou esta aqui: “Eu tenho músculos cá dentro.”

Não correm da mesma maneira, não choram da mesma maneira, não brincam da mesma maneira. Mas querem os dois iogurte de baunilha, querem os dois andar no baloiço, falam os dois de sonhos maus. 

Toda a gente lhes troca os nomes, toda a gente os trata como uma união. Não há um sem o outro. Um é a parte do todo. Mas cada um existe à sua maneira.

Que sigam felizes e bruscos por este bosque adentro, tão diferentes e tão parecidos, tão pequeninos e tão grandes, sempre atrás um do outro, com os seus pés, os seus nomes, os seus medos e também com os seus mistérios e os seus sonhos e os seus desejos.

Com todos estes músculos que temos “cá dentro”.