Na escola dos miúdos sou sempre a mamã de não sei quem. Os emails das professoras começam assim: “Chère maman de …”
Para os vizinhos e para o farmacêutico, a cabeleireira, o oculista, etc., sou Madame para aqui e para ali. Aos poucos vou deixando de ter um nome.
Os meus filhos correm para mim quando os vou buscar à escola. Gritam: “Mamã, mamã, mamã”. É possível que também eles não conheçam o meu nome próprio, o que é bastante freak e chocante e absolutamente normal.
Estou feita uma mãezinha. Nunca pensei.
Levo os meus filhos ao parque, à gelataria, ao dentista. Ralho com eles na passadeira. Queimo o braço a escorrer esparguete. Como os restos do jantar. Aprecio os raros minutos de silêncio. Faço notas mentais que não cumpro: marcar otorrino, comprar meias, cortar as unhas.
Volta e meia dormem a noite toda. Nas manhãs seguintes, amo-os um pouco mais. Depois um deles dá uma cabeçada noutro e lá se vai o amor pelo ralo. Incondicional, o tanas.
Zango-me com o agressor. Repito certas frases. “Não batas no mano”. A melhor frase é dita aos gritos: “Pára de gritar.” Muito bem, Ana Pessoa.
Por vezes, o mais velho diz-me: “Tu és a mais bonita das mamãs”. Grande peta. Sou tipo a mais feia. Escovo o cabelo: continuo despenteada. Prendo o cabelo: continuo despenteada. Olho-me ao espelho. Vem-me à cabeça o título de um dos meus livros. “O que é isto?”
Uma prima disse-me que os meus filhos parecem três patinhos sempre atrás da mamã. É capaz. Nos dias bons acho que dou conta do recado. Nos dias maus tudo me enerva.
Por vezes, o mais velho também me diz: “Estás sempre zangada”. Dou por mim ainda mais zangada a dizer-lhe: “Isso não é verdade!” Mas claramente é. Quá, quá, quá.
Tento distrair-me da vida doméstica. Leio um bocadinho. Escrevo um bocadinho. Rezo um bocadinho.
Isto de rezar é mentira. Não rezo, mas já rezei embora nunca tenha tido um terço. Às vezes imagino essa vida paralela em que eu teria um terço e rezaria dez Avé Marias de seguida. Há versos bonitos nessa oração. “Bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre”.
Voltei a jogar sudoku. Saquei uma app. Abri conta no TikTok. Vi aquela série portuguesa de que toda a gente fala. Gostei muito de uns episódios, detestei outros. Enfim. Esforço-me por continuar a ser profundamente medíocre. Nesses intervalos volto a ter um nome.
O homem da minha vida não é o papa Francisco nem Jesus de Nazaré. É um primata, herege, engenheiro, comum mortal e também ele profeta e justiceiro, com vocação para a retórica, a carpintaria e o milagre. A voz dele. As frases, os gestos, a barba, as pernas. A maneira como brinca com os rapazes. A maneira como entra no mar. “Agora e na hora da nossa morte”.
Um dia destes, passou na Vagos FM um hit dos anos 90. Aquele assim: “Ó mãe, aquele moço bateu-me.” Eu vinha ao volante e os três patinhos atrás.
Aumentei o volume: “Deu-me um pontapé no cu.” Os miúdos barafustaram porque um deles queria outra música, o outro não queria música e o terceiro queria silêncio absoluto, ninguém podia cantar nem falar nem rir nem ouvir nem pensar. Mandei-os calar. Um pontapé no cu, era o que eles mereciam. As crianças são egoístas, mesquinhas, cruéis. Iguaizinhas aos adultos. Cantei bem alto: “E tu não dizes nada. Mas que raio de mãe és tu?”
Depois ri-me sozinha porque ainda há pouco era eu que dava - e levava - pontapés no cu e agora sou a mãe que não diz nada.
Depois parei de rir porque isso afinal não tinha piada nenhuma. Ainda há pouco eu tinha uma voz e agora não digo nada. Ainda há pouco eu tinha um nome e agora sou mãe de não sei quem. Ainda há pouco eu rezava e agora não acredito.
Ultimamente tenho reparado que me falha de vez o quando o otimismo, aquela confiança no outro e no futuro. Não é fácil carregar com o mundo às costas. Daí este fascínio pelo terço.
Mas depois uma pessoa olha, por exemplo, para a Ria Formosa e só pode comungar com as dunas, as lagoas, as matas e todos os peixes e moluscos e aves raras e não raras. Com o tempo perdi a fé no divino, mas abracei os seres vivos e não vivos e profundamente terrestres.
Ou seja, sou ateia mas não descrente.
De resto, olhem. Num dia temos 14 e no dia seguinte 41.