Não se enganem. Um livro é como qualquer outro ser vivo: demora a germinar, a crescer, a existir. É certo que o Mar Negro e esta Rosa desabrocharam na mesma estação, mas vieram de lugares (e de estações!) bem diferentes.
Este livro novo, que para mim já não é novo, foi crescendo devagarinho até que certo dia (há mais de um ano) floriu na minha cabeça. Como uma rosa.
Primeiro, era só uma lista de palavras.
Chapéu, frigideira, guarda-sol, pica-pau, cenoura, alegria, vulcão.
Que lista é esta?, perguntavam os animais e os objetos que lá iam parar, mas ninguém lhes respondia, nem mesmo eu, que continuei a fazer esta lista ao longo de meses (anos!). Mamute, macieira, raposa, trovão.
Chamei essa lista “Tanta coisa” e durante muito tempo pensei que estaria a fazer exatamente isto: um compêndio de palavras, um mostruário de tudo o que existe ou já existiu, tudo o que poderia existir ou imaginamos que exista.
Boca, escova, moinho, bicicleta, caranguejo, outono, cascata, calor, barulho. Talvez esta lista viesse a ser - quem sabe - um dicionário ilustrado ou um atlas universal. Mas durante meses (anos!) foi só mesmo uma lista com cada vez mais tralha.
Às tantas comecei a criar ligações entre as palavras. Separei-as por grupos. Havia, por exemplo, uma lista das coisas que giram e rodam e outra lista de coisas que abrem e fecham. E por aí fora.
Aos poucos, de tanto pensar em coisas e palavras, apeteceu-me menos falar das coisas do que das palavras que designam as coisas.
A partir de que momento uma palavra é uma coisa? A partir de que momento uma coisa é uma palavra? Será que uma palavra se transforma de facto na coisa que designa?
Por exemplo, uma rosa.
“Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa”, escreveu Gertrude Stein no início do século passado. Poderá ser o verso mais inquietante de todos, pelo menos do ponto de vista dos estudos linguísticos.
Sem dar por isso, fui abandonando a minha coleção de palavras e fiquei só a pensar sobre elas.
Não há como evitar o nosso destino, que é o mesmo que dizer: não podemos fugir ao nosso sentido, ao nosso significado. E eu não sou colecionista nem acumuladora. Sou escritora, tradutora, linguista, linguaruda. Adoro fonemas e palavras e até os espaços entre as palavras.
Depois da pandemia, dei por mim a regressar aos calhamaços de linguística. Morfologia, fonologia, etimologia, sintaxe, semântica, as possibilidades infindáveis da linguagem. Por causa destas minhas indagações, retomei também certas obras dos surrealistas, essas almas subversivas que puseram em causa os pressupostos da gramática. Assim surgiu este meu novo texto, que não é um dicionário nem um mostruário nem um prontuário nem nada que se pareça.
“Por exemplo, uma rosa”, além de ser uma homenagem ao tal verso enigmático da Gertrude Stein e à sua autora, é acima de tudo uma reflexão muito pessoal sobre isto de estarmos num mundo cheio de palavras, coisas e imagens. O que fazer com as letras, com os nomes, com as palavras?
Quando terminei de escrever o primeiro esboço, num final de tarde em abril do ano passado, percebi que tinha em mãos, não um cachimbo, mas um texto de introdução à linguística (what?) que explicava também a génese da minha relação com o mundo e com a escrita.
No email que enviei à editora Isabel Minhós Martins perguntava-lhe “Isto é um livro?”. No meu íntimo desejava que ela me respondesse: “Sim, é um livro”. No meu íntimo desejava também que o texto viesse a ser ilustrado pela Madalena Matoso, a mais linguista e subversiva de todas as ilustradoras.
Os meus desejos tornaram-se realidade e trago agora este livro ao peito, como um amuleto. Muito do que sou está lá dentro. Tratem-no com carinho, please.
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