O mais velho começou a fazer perguntas sobre os países e as cidades. Se estão longe ou perto, se são grandes, se podemos lá ir de comboio ou de avião, se as pessoas desse lugar falam português, francês ou inglês.
Vai daí, há umas semanas compramos um globo terrestre para os três rapazes. É um globo pequeno, não muito bonito, os países todos encavalitados por baixo de uns animais nada a ver.
Os miúdos gostam do globo, não por causa dos continentes ou dos oceanos, mas porque ele roda muito rápido e durante bastante tempo. O mundo parece um pião, mas não é um pião. Um dos rapazes diz que é uma máquina, outro diz que é uma bola azul. Só o mais velho chama mundo ao mundo.
O pai não os deixa brincar com o globo. Por um lado, sinto pena deles, por outro, acho bem aprenderem quanto antes que este mundo não é para brincadeiras.
Mostro-lhes a Bélgica e Portugal, o Japão, o Brasil. Digo-lhes aquelas coisas parvas: que há cangurus na Austrália e pinguins no Pólo Sul. Eles fingem que se interessam. Pousam as mãos na bola azul. Sempre que podem, dão-lhe uma lambada e a bola gira. Riem-se à gargalhada, babam-se para cima do mundo.
Estão-se nas tintas para o mapa, claro. As crianças querem lá saber de geografia. Eu, para falar a verdade, também pouco apreço tenho pela disciplina. A expressão “crosta terrestre” sempre me deu vontade de rir e continuo sem saber para que lado é o Norte.
No outro dia lá arranjaram maneira de atirar o mundo ao ar. Deram cabo dele, como é óbvio. O globo partiu-se ao meio, já não se aguenta nas canetas. Os três olharam para o mundo pesarosos e partiram para outra.
Penso em Deus, com a Terra nas mãos. Coloco então a hipótese de este Nosso Senhor ser afinal uma criança a brincar com uma bola azul, as unhas muito sujas, o nariz cheio de ranho.
A ideia dá-me algum alento. Não serve certamente para explicar a condição estapafúrdia da nossa existência, mas por um momento ajuda-me a aceitar o absurdo estado do mundo. Talvez uma divindade pouco experiente nos tenha dado um pontapé. Só isso. Talvez nos caiba a nós perdoar o tal Salvador, e não o contrário.
Na minha infância também tive um globo terrestre, mas o meu era bem grande e dava luz. Era um globo a sério. Recebi-o quando tinha uns nove anos. A ver pela sucessão dos acontecimentos, há de ter sido em 1991, talvez no Natal. Mal o desembrulhei, o meu pai disse-me que o mundo entretanto tinha mudado. Que aquele país chamado URSS já não existia.
Que estranho esse conceito de um país deixar de ser. Ainda hoje, quando penso na URSS, lembro-me dessa enorme mancha no meu globo terrestre, de súbito extinta, inexistente. Na minha cabeça sonhadora de menina, a URSS parecia ser um país imaginado, impossível, inacessível, ao estilo Terra do Nunca ou Terra de Oz, habitado quiçá por fadas, feiticeiros, elfos, bruxas, coelhos, monarcas, chapeleiros, crianças, piratas, gnomos.
Vejo o nosso globo terrestre atirado ao chão, partido, estragado, estilhaçado. Penso em Peter Pan e no Capitão Gancho, penso num Deus imaturo com a sua bola azul e de repente já não sei de que lado estou. Talvez este mundo de verdade seja afinal a Terra do Nunca e, nesse caso, todos nós sejamos os meninos perdidos sem salvação à vista.
Pelo sim, pelo não, apanhei os cacos do globo terrestre e guardei-os. Apesar da pandemia e da guerra, apesar da inflação e da crise económica, energética e humanitária que se agrava, devo confessar que me custa bastante pôr o mundo no lixo.