terça-feira, 5 de abril de 2022

Penico e Putin

No final de fevereiro, enquanto a Rússia invadia a Ucrânia, eu lia um livro de 300 páginas sobre desfralde. As almas menos sensíveis poderão acusar-me de ser uma mãe desfasada das tendências do mundo, mas qualquer observador mais atento perceberá certamente que, às portas da guerra, uma mãe deve preparar os filhos para o autocontrolo e a dignidade, começando desde logo pelo domínio das fezes.

Em tempos de guerra, será ainda mais urgente, mais económico, mais ecológico, mais seguro e mais saudável os mais pequenos aprenderem a evacuar adequadamente.

E portanto, é como vos digo: a Rússia invadiu a Ucrânia - tanques, aeronaves, mísseis, vítimas mortais, refugiados - e eu lancei os meus filhos para esse estranho encontro com o seu próprio corpo. Ali estão eles, expostos, desarmados, como vieram ao mundo. Observam-me confusos talvez, ainda mais sós, ainda mais gémeos, ainda mais nus e indefesos. 

É preciso olhar para a existência humana através dos seus olhos. Na perspetiva dos meus filhos, largar as fraldas é como ir para o Espaço, como ir para a guerra, tudo é novo e assustador a partir do momento em que andam nus pela casa, à mercê da sua vontade urinária e fecal.

No tal livro de 300 páginas sobre este assunto, a autora americana, perita em desfralde, lembra-me que esta aprendizagem só vai ser prioritária para os meus filhos se ela for prioritária para mim. Ao longo da próxima semana, diz-me ela, não pensarei em mais nada além deste confronto com o bacio. Aceito o desafio e vou para a guerra. 

Passam-se dois ou três dias em que as fezes raramente vão parar ao penico. Limpamos o chão demasiadas vezes. Muito chichi, muito cocó, muitos escombros, muita frustração para os pais, para a ama e para os dois pequenos soldados.

Recordo os ensinamentos da perita americana: importa não perder a paciência e não entrar em contendas de poder. Firmeza, mas não dureza. Esta é, afinal de contas, a primeira vez que uma criança aprende a dominar o corpo. Convém que a experiência, apesar de exigir concentração e esforço, dê um resultado positivo.

Aprendemos por repetição, por mimese, por insistência e persistência. Se tudo correr bem, daqui a poucos dias a criança vai conseguir interpretar os impulsos musculares da bexiga e dos intestinos, e tomar a iniciativa de se sentar no penico. Essa será a sua primeira experiência de sucesso. E muito em breve será precisamente a mestria do penico que estará na base da sua auto-estima na sua relação com o seu corpo.

Penso em Vladimir Putin. Pergunto-me se tudo poderá ter corrido mal desde esta travessia de autoconhecimento, se Putin terá largado as fraldas num ambiente de segurança, se terá sido amado, abusado ou humilhado durante esta aprendizagem. Se um opressor pode começar aqui mesmo, numa criança oprimida sentada num penico.

Penso em todos os soldados atirados para a guerra, os russos, os ucranianos e os demais que se lhes juntaram, todos eles filhos de mães que lhes ensinaram a utilizar o bacio, a bem da sua autonomia e do seu bem-estar. Aqui estamos todos, pais e filhos, opressores e oprimidos, e basta uma criança sentada num penico para percebermos que o nosso caminho poderia ter sido tão diferente, a mãe a bater palmas, emocionada com a conquista do filho.

Um dos meus rapazes chora porque fez chichi nas calças. Vacilo entre a frustração e o amor. Ralho e refilo, cansada e, ao mesmo tempo, receosa de que ele venha um dia a perder o ânimo por minha causa, de que venha a invadir um país.

Se eles falharem, a culpa será sempre minha, claro, que ralhei com eles no momento em que precisavam de um abraço. Penso em Vladimir Putin e imagino-o assim, aos dois anos e meio, vulnerável, as calças molhadas com a sua própria urina e não posso deixar de sentir o peso da minha responsabilidade. 

Já sei que a tendência agora é não pressionar, é nunca dar um feedback negativo, é não fazer desfralde sequer, é esperar que as crianças decidam sozinhas que querem aderir às normas sanitárias de evacuação. De facto nada é mais pessoal e visceral do que as nossas próprias tripas.

Por outro lado, nada é mais ideológico do que educar, ensinar, formar. Estado e indivíduo parecem estar incompatibilizados. No que toca aos mais pequenos, a escola espera que as crianças saibam evacuar aos 3 anos, que aprendam a ler aos 6, que aprendam inglês aos 10, que entrem na universidade aos 18. A vida não está fácil para os que querem esperar até estarem preparados. 

Parto, pois, do princípio de que nunca ninguém está preparado para nada e nunca ninguém ficará à espera de que estejamos finalmente à altura do que quer que seja. Tudo será sempre imprevisível e excessivo e vai exigir esforço, adaptação, diálogo e aprendizagem.

Isto aplica-se à maternidade, à escola, à geopolítica, às operações militares, à cerimónia dos Óscares e também à arte de urinar e defecar.