A Notre Dame arde e eu penso nas gárgulas. Gosto delas como outros gostarão de santos, anjinhos e amuletos.
Os meus diabretes grotescos. A exibir ao mundo a natureza má.
Li uma adaptação do Corcunda de Notre Dame quando tinha 13 anos. O filme da Disney acabara de estrear.
Durante dias também eu era uma existência desfigurada e solitária. Vivia lá no alto da Notre Dame. E era eu quem tocava os sinos. Era eu quem vagueava pelas escadas da catedral. Os meus únicos amigos eram as gárgulas traquinas, que me segredavam coisas ao ouvido. Falavam-me de aventuras e de amor. Encorajavam-me a ver o mundo.
Segui o conselho desses pequenos demónios assim que pude. Fui a Paris pela primeira vez quando tinha 22 anos. Andava feliz e ampliada com a minha primeira máquina fotográfica. Era uma Kodak digital. Tinha um zoom bem bom.
Quando cheguei à Notre Dame, apontei a máquina às gárgulas e fiquei a vê-las. Os meus amigos malandros, diabinhos mais feios do meu coração.
A Notre Dame arde e eu penso nas gárgulas do Quasimodo. Hão de resistir ao fogo com os seus corações de pedra. Se calhar até se riem das chamas e ficam para ali a desviar a água lançada pelos bombeiros. É que as gárgulas, além de monstros travessos, também são desaguadouros. É esta a ironia do seu destino.
O tempo passa, a água corre, o fogo acaba. As gárgulas lá continuarão na sua vigília, no cocuruto da Notre Dame, a dizerem-nos que o mal existe, que o mal persiste e prossegue e avança.
Hoje vou sonhar com os meus monstros de pedra e medo. Com o seu sarcasmo lúcido e os olhos perversos.
Sempre à espreita e à espera da natureza má.