O meu filho olha para os seus pés com devoção e expectativa. Em breve, esses triângulos de ossos e articulações serão capazes de o levar onde ele quiser.
Hoje, enquanto observava o meu filho, que observava os seus pés, lembrei-me de uma epifania da minha infância que tem tudo a ver com o corpo, em geral, e com os pés, em particular.
Foi num dia de chuva. Eu deambulava pelos corredores escuros do colégio completamente sozinha. Não era uma coisa que acontecesse com frequência. Era o fim do dia e os outros miúdos talvez já tivessem ido embora. Não sei. Mas eu estava rodeada por sombras e pelo som dos meus passos. Uma experiência aterradora e, ao mesmo tempo, fascinante. Eu sentia uma miúfa pequenina, nada de especial. E de súbito, qual intervenção divina, surgiu dentro da minha cabeça uma constatação que era, afinal, uma epifania: só eu estava ali, na escuridão. Só eu estava a viver aquela experiência naquele dia. Mais ninguém tinha acesso àquela escuridão por fora e àquela miúfa por dentro. Só eu. Porque só eu vivia dentro da minha cabeça e do meu corpo. E ninguém além de mim poderia ser a minha pessoa.
E aí, sim, senti um desconforto que já não era uma pequena miúfa. Era um medo crescido, a maior angústia de todas, a mais longa: eu estava completamente sozinha dentro do meu corpo e da minha cabeça. E isto queria dizer que ninguém podia pensar os meus pensamentos nem sentir as minhas emoções. Da mesma forma que eu não podia pensar ou sentir o que as outras pessoas pensavam e sentiam. Eu caminhava pelos corredores escuros do colégio com pena de mim própria, com pena de todos nós. Estávamos condenados a uma prisão perpétua dentro dos nossos corpos. A nossa perceção do mundo era um corredor escuro. E essa talvez tenha sido a primeira vez que eu pensei verdadeiramente na minha existência. Eu: a minha cabeça, os meus pés, os meus braços.
O meu corpo era uma parte insignificante do mundo. Era insuficiente. Era incrivelmente limitado. Nunca me poderia proporcionar todas as experiências terrestres. Por exemplo, eu nunca poderia voar como as gaivotas nem correr como os leopardos. Nunca haveria de respirar debaixo de água nem mudar de cor ou saltar como um sapo. Triste fado, este, de ter apenas dois pés, para andar para a frente e para trás.
Eu observo o meu filho a observar os seus pés e penso nesta epifania da infância.
Mais tarde, nas aulas de português, o aspeto gramatical que mais me inquietava eram as conjunções disjuntivas. Ou ou, quer quer, seja seja. Eram palavras más. Serviam para revelar outra limitação da minha existência: eu não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Das duas uma: ou saltava à corda ou ao elástico; ou brincava ou estudava. Tudo o que eu fizesse e não fizesse seria sempre o resultado de uma escolha.
A vida era, afinal de contas, uma sequência bastante longa de decisões e escolhas.
Um dos manuais escolares (5.º ano? 6.º ano?) incluía um poema da Cecília Meireles que eu lia repetidamente. Chamava-se "Ou isto ou aquilo".
Este texto acompanhou-me toda a vida. Dizia assim: "Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!"
No inverno, quando ponho as luvas, penso neste poema e sinto sempre uma vitória infantil, porque eu uso sempre um anel e as luvas ao mesmo tempo.
Nunca serei verdadeiramente livre, claro, mas a minha cabeça, de vez em quando, liberta-me.
Eu penso em tudo isto e o meu filho olha para os seus pequenos pés, que um dia deixarão admiráveis pegadas na areia. A vida não é nada curta. É tão longa.