Um dia destes corto as unhas dos pés. Agarro-as pelos ombros e tau! Corto-lhes a cabeça.
Há semanas que ando a magicar o golpe. O meu corpo a descer por aí abaixo até ao sopé de si próprio. As mãos ao encontro dos pés, com uma tesourinha em riste.
Uma tesourinha malvada e feminina, cheia de curvas e método.
E hei de usar a tesourinha mais antiga de todas, porque a tesourinha mais antiga de todas, apesar de enferrujada e desconjuntada, corta bem de um lado e do outro.
As tesouras mais jovens são todas umas falhadas. Andam por aí a transbordar design e elegância, mas são fracas de espírito.
É sempre assim. Os jovens não têm calo.
Já os meus pés, sim. Têm calo. E umas unhas muito grossas que estão cada vez mais compridas. Não sei por que razão as deixo crescer tanto. Todos os dias adio o golpe.
Talvez me tenha afeiçoado a elas. Às minhas unhas grossas.
Há uma beleza qualquer nas coisas feias. Carros sujos. Casas velhas. Unhas grossas.
Mas hei de cortá-las um dia. Prometo.
A dor na ponta dos pés chegará ao fim.
O meu corpo ficará mais leve.
E eu hei de voltar a calçar 39.