Traz nos pés uma certeza qualquer sobre o mundo. Auscultadores enfiados nos ouvidos, uma introspeção enfiada nos olhos.
A narradora quase sorri por causa da canção alegre que traz nos ouvidos.
Só ela ouve aquela canção. Só ela vê aquele mundo.
O princípio do sol sobre as casas, as nuvens pequeninas a passear no céu.
A narradora estica a espinha dorsal e o dia começa.
Dobra a primeira esquina. Passa pelo quiosque de jornais onde nunca entrou, diz olá ao cão que leva o dono pela trela. Passa pela bruxa má que varre o chão, pelo ciclope que dorme sobre os sacos do lixo, pelo gato felpudo que está sempre sentado no parapeito.
Chega ao cruzamento, sinal vermelho para os peões. A narradora olha para o mural de banda desenhada, que representa precisamente um cruzamento.
Ficção e realidade cruzam-se. A narradora atravessa para o lado de lá.
Uma casa muito comprida debruça-se sobre ela. O bicho-papão cumprimenta-a da janela.
A narradora olha para os caminhos de ferro lá em baixo, sente-lhes o cheiro manhoso. Ao fundo, a Branca de Neve rega as plantas. A narradora acena-lhe ao longe.
Enquanto caminha, pensa nos seus próprios pés. Nos seus tornozelos. Nas unhas minúsculas na ponta dos dedos mindinhos. Enquanto caminha, a narradora pensa no ato de caminhar. Gosta de deambulações.
É uma narradora ambulante. E sente um certo domínio sobre a vida.
Sobre a física.
Sobre os pés.