No outro dia fui à livraria Passaporta ouvir o Bernardo Carvalho, o escritor brasileiro (e não o ilustrador português). O escritor tirou do bolso do casaco um chorrilho de perguntas que lançou ao público. Ficámos todos com ar de ponto de interrogação. "Não há nada mais desagradável que a dúvida."
Bernardo Carvalho fez uma leitura enérgica em português e o público seguiu a tradução em francês, neerlandês e inglês que ia sendo projetada num écrã gigante.
No Passaporta é sempre assim. "Todo mundo fala, por assim dizer, de forma figurada, a língua que todo mundo entende".
Segue-se uma citação livre do texto interrogativo "O óbvio ululante" que o autor leu na conferência:
Há alguns anos, lá na empresa, alguém teve uma ideia genial: E se o mundo inteiro lesse o mesmo livro?
E se o mundo inteiro fizesse exatamente a mesma coisa, achando que faz diferente, não seria mais fácil e natural supervisionar o mundo e, por conseguinte, encontrar o livro que todo mundo vai ler? E se, para isso acontecer, a gente criasse um dispositivo no qual quanto mais as pessoas lessem uma coisa, mais a mesma coisa seria lida e quanto mais as pessoas vissem uma coisa, mais ela seria vista? Não parece óbvio? E não seria mais fácil para todos, lá na empresa, delegar o trabalho de achar o livro que todo mundo quer ler a esse dispositivo redudante, natural e óbvio?
Se as outras empresas dão ao mundo o que o mundo quer, por que a nossa haveria de dar ao mundo o que nem todo mundo quer? É a lei da oferta e da procura. Não é lógico e natural? A lógica e a natureza são as mães de todas as coisas. A começar pela economia. E por que não pela cultura?
E se usássemos a língua que todo mundo fala, por assim dizer, de forma figurada, a língua que todo mundo entende, para fazer todo mundo ler o mesmo livro? Não seria lógico e natural? E se fizéssemos as pessoas das mais diferentes línguas escrever cada vez em menos línguas até chegar a uma só, a mesma língua para todos?
E qual melhor atrativo do que saber que se escreve na língua que todo mundo entende? E se, para persuadir os renitentes, que se recusassem a escrever nessa língua comum, a gente desse a impressão de que continuavam escrevendo em línguas diferentes?
E se a gente inventasse um nome para todos esses sotaques incorporados na mesma língua, numa única língua para todo mundo entender? Algo como multiculturalismo? Não seria incrível?
E se a gente criasse um mecanismo e uma lógica, com base matemática e científica, por meio dos quais quanto mais se visse uma coisa mais essa coisa seria vista e quanto mais uma pessoa lesse uma coisa, mais as outras seriam levadas a ler a mesma coisa, achando que chegavam a essa coisa por mérito e esforço próprio? Não seria incrível?
Para que contrariar as pessoas se podemos concordar com elas e com o que elas acham natural? Para que provocar o público? Para que forçá-lo a ver coisas que ele não vê a olho nu? Ou que não quer ver? Que presunção é essa, meu Deus?
Então, se perguntarem o que é bom, que é que eu digo? E quando eu já não estiver aqui para dizer? Ora, basta deixar as pessoas dizerem que bom é o que é natural, e o natural é o que elas acreditam. Que foi? Deus não é bom? Então?
No que é que vocês mais acreditam: numa história que é o relato de alguma coisa que realmente aconteceu ou numa loucura qualquer tirada da cabeça singular de uma pessoa? O que é que tem mais ressonância? O que de fato ocorreu e todo mundo pode comprovar ou os pensamentos antinaturais de um doido?
Ninguém quer ler livros que põem em dúvida o que estão contando. Percebem?
Tem que fazer acreditar para ser bom. Se começa a questionar, acabou.
Os terroristas da exceção acreditam nas singularidades, de verdade! E nos problemas. Eles dizem que a arte deve apresentar problemas, que a arte não tem de criar soluções. Eles querem criar problemas! Mas o público quer soluções. Ninguém precisa de mais problemas.
Onde na empresa funcionamos por pleunasmos, os terroristas da exceção funcionam por paradoxos. E aonde é que isso pode levar? A um mundo de dois ou três gênios, dizendo coisas que contrariam o que todos nós pensamos em consenso? É isso? Desde quando literatura é reflexão? E onde fica o prazer da leitura? Quem é que quer ler o que não dá prazer?
E o que é que eles querem? Criar tantas visões de mundo quantos livros forem publicados? E como é que isso é possível com a quantidade de livros que precisamos publicar para que o mundo continue caminhando na mesma direção e nós sigamos recebendo nossos salários? Querem ofender o público e gosto do público às custas dos nossos bônus?
Não há nada mais desagradável que a dúvida. Quem quer duvidar? E para que serve a literatura se não for para confirmar e agradar? Eu pergunto: Para quê? Que contraexemplos eles têm para dar? Os impressionistas? A arte moderna? A ciência? É isso? É pra rir?
Curiosamente, nesta noite interrogativa, aconteceu um verdadeiro ato de "terrorismo de exceção": o Bernardo Carvalho venceu o Prêmio Jabuti pelo seu romance "Reprodução".
Se calhar é este livro que toda a gente vai ler (eu vou).
Não seria lógico e natural?