sexta-feira, 25 de abril de 2014

Um homem emoldurado no dia 25 de abril

Aquele homem traz uma moldura enfiada na cabeça. É uma moldura de madeira com uns ornamentos floridos. As outras pessoas evitam olhar para este quadro, porque o homem não é um quadro, é um homem a sério com uma moldura enfiada na cabeça. Neste momento, está a falar sozinho e ri-se das suas próprias piadas. A moldura não lhe prende os movimentos, porque vem pendurada ao pescoço como um colar. O homem vive num outro mundo e parece bastante satisfeito.
É assumidamente um retrato de si próprio.
E parece mais solto do que nós.
Mais espontâneo. Mais real.
Mais livre.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um livro qualquer

O narrador deste texto decidiu celebrar o dia mundial do livro comprando um livro qualquer. E quando dizemos qualquer, é mesmo qualquer: um livro desconhecido com um título bonito ou uma capa que apetecesse apertar. O narrador deste texto tinha saudades disso, de comprar um livro só porque lhe apetecia e não porque alguém lhe falara dele ou porque lera um artigo sobre o dito ou porque andava empolgado com um determinado autor ou porque a Amazon definira que o narrador também ia gostar disto se gostou daquilo. Todos diziam ao narrador que tinha de ler isto ou aquilo, era muito aborrecido. No entender do narrador, o pior da vida eram mesmo as listas de livros. As 5 autobiografias para mudar a sua vida. Os 10 livros policiais mais policiados. Os 100 livros sem limites. Os 40 livros para ler antes dos 40. Os narradores mais apetecidos. Os mais proibidos. Os mais amorosos. Os mais saborosos. Os mais risíveis. Os mais enervantes.
O narrador deste texto andava farto dos livros dos outros. Gostava de entrar nas livrarias e namorar com os livros que lhe caíssem no goto. Dava uma beijoca neste porque gostava da capa, apalpava a contracapa de outro, abraçava-se à lombada daquele, não havia mal nenhum nisso. E portanto, hoje decidira fazer isso mesmo: comprar um livro qualquer por um motivo qualquer. E quando saiu de casa decidiu ser ainda mais perverso: não só iria comprar um livro qualquer, como a seguir o iria ler.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Karateca no Brasil

BREAKING NEWS: A karateca chegou ao Brasil.
Alegadamente, a travessia teve lugar numa caravela.
Fontes próximas garantem que a karateca trazia na cabeça um chapéu de pirata e debaixo do braço O caderno vermelho da menina karateca.
Quando chegou, a menina karateca gritou: Yáááá!
A seguir, tirou o pé do chão e começou a sambar.

 
A propósito destes contactos com o Brasil, provas documentais mostram a karateca em ameno bato-papo com as fenomenais Garatujas Fantásticas.

Do catálogo da SESI-SP editora para os mais novos constam outras obras catitas do Planeta Tangerina, porque Quem lê sabe porquê.

Yáááá!

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Gabriel García Márquez

«¡La estación!», exclamó mi madre. «Cómo habrá cambiado el mundo que ya nadie espera el tren». Entonces la locomotora acabó de pitar, disminuyó la marcha y se detuvo con un lamento largo. 
Lo primero que me impresionó fue el silencio. Un silencio material que hubiera podido identificar con los ojos vendados entre los otros silencios del mundo. La reverberación del calor era tan intensa que todo se veía como a través de un vidrio ondulante. No había memoria alguna de la vida humana hasta donde alcanzaba la vista, ni nada que no estuviera cubierto por un rocío tenue de polvo ardiente. Mi madre permaneció todavía unos minutos en el asiento, mirando el pueblo muerto y tendido en las calles desiertas, y por fin exclamó aterrada: «¡Dios mío!». Fue lo único que dijo antes de bajar. Mientras el tren permaneció allí tuve la sensación de que no estábamos solos por completo. Pero cuando arrancó, con una pitada instantánea y desgarradora, mi madre y yo nos quedamos desamparados bajo el sol infernal y toda la pesadumbre del pueblo se nos vino encima. Pero no nos dijimos nada.

Vivir para contarla, Gabriel García Márquez