Uma senhora olha para o chão e vê o passeio, pedrinhas e o tronco de uma árvore, os pés dos outros, o asfalto, uns saltos altos de verniz, folhas secas, um canteiro de flores mortas, um copo de plástico, uma caneta. A senhora abranda, olha para a caneta. É uma esferográfica azul-escura, tem uma tampa muito mordida. A senhora não pega na caneta, tem nojo da saliva dos outros, segue caminho. Também ela mordia canetas. Agora já não. Olha para o chão e vê uns sapatos velhos que passam, uma criança de gorro, um cão farfalhudo, pedras, pedrinhas, uma garrafa de plástico, folhas espezinhadas, escadas. A senhora desce as escadas, entra na boca do metro, está na plataforma. Vê um cão preto arfando, as sapatilhas sujas de um sujeito, os atacadores desapertados, um lenço de papel, nojo. A senhora entra na terceira carruagem. Olha para o chão, mas não vê o chão da carruagem, vê mãos e cotovelos, anéis, luvas de cabedal, um casaco puído, unhas bonitas, escarlates. Sai duas paragens depois, botas altas, botas curtas, collants roxos, escadas rolantes. Sobe as escadas, está na rua, vento, frio. Olha para o chão e vê um bilhete de metro, uma, duas, quatro, sete beatas de cigarros. De repente, uma caneta no chão. A senhora abranda. Não é a mesma caneta de há pouco. É uma caneta prateada, cintilante, com um botão na ponta de fazer clic-clic. A senhora baixa-se com dificuldade e apanha a caneta. Empurra o botão (clic-clic) e a ponta da caneta aparece, tcharam! É uma ponta fina, 0.3, tinta azul, nada mau. A senhora empurra o botão (clic-clic) e a ponta da caneta desaparece. Guarda a caneta no bolso e segue caminho. Dentro do bolso vai matutando sobre a caneta e empurrando o botão (clic-clic, clic-clic). O que fazer com a caneta prateada? Se a beijasse, talvez se transformasse num príncipe encantado. Se a mordesse, talvez se transformasse num poema. Ou numa epopeia. Se a atirasse, talvez ela voasse. A senhora dobra a esquina e sobe a rua. Dentro do seu bolso, clic-clic, clic-clic. De repente, no meio do passeio, surge a lamparina do Aladino, mas a senhora não a vê, passa por cima da lamparina, porque neste momento não olha para o chão, olha em frente, para as pessoas infortunadas que não encontraram uma caneta prateada como ela.
E a isto se chama desperdício de oportunidades.