- Olá, Rodrigo.
- Olá.
- Sabes quem eu sou?
- Sei.
- Sabes?!
- Sei.
- Quem sou eu?
- És a tia.
- Pois sou! Fiquei gravada na tua cabeça, já viste?
- Pois foi.
- É estranho, não é?
- É.
- E sou a tia quê, lembras-te?
- És a tia Nada.
- A tia Nada?!
- Xim. Nada.
- Então, eu não sou nada, Rodrigo?
- Não.
- Sou. Sou. Eu sou a tia Ana.
- Não, não.
- Não?!
- És a tia Nada.
Gargalhada geral.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
Uma senhora olha para o chão
Uma senhora olha para o chão e vê o passeio, pedrinhas e o tronco de uma árvore, os pés dos outros, o asfalto, uns saltos altos de verniz, folhas secas, um canteiro de flores mortas, um copo de plástico, uma caneta. A senhora abranda, olha para a caneta. É uma esferográfica azul-escura, tem uma tampa muito mordida. A senhora não pega na caneta, tem nojo da saliva dos outros, segue caminho. Também ela mordia canetas. Agora já não. Olha para o chão e vê uns sapatos velhos que passam, uma criança de gorro, um cão farfalhudo, pedras, pedrinhas, uma garrafa de plástico, folhas espezinhadas, escadas. A senhora desce as escadas, entra na boca do metro, está na plataforma. Vê um cão preto arfando, as sapatilhas sujas de um sujeito, os atacadores desapertados, um lenço de papel, nojo. A senhora entra na terceira carruagem. Olha para o chão, mas não vê o chão da carruagem, vê mãos e cotovelos, anéis, luvas de cabedal, um casaco puído, unhas bonitas, escarlates. Sai duas paragens depois, botas altas, botas curtas, collants roxos, escadas rolantes. Sobe as escadas, está na rua, vento, frio. Olha para o chão e vê um bilhete de metro, uma, duas, quatro, sete beatas de cigarros. De repente, uma caneta no chão. A senhora abranda. Não é a mesma caneta de há pouco. É uma caneta prateada, cintilante, com um botão na ponta de fazer clic-clic. A senhora baixa-se com dificuldade e apanha a caneta. Empurra o botão (clic-clic) e a ponta da caneta aparece, tcharam! É uma ponta fina, 0.3, tinta azul, nada mau. A senhora empurra o botão (clic-clic) e a ponta da caneta desaparece. Guarda a caneta no bolso e segue caminho. Dentro do bolso vai matutando sobre a caneta e empurrando o botão (clic-clic, clic-clic). O que fazer com a caneta prateada? Se a beijasse, talvez se transformasse num príncipe encantado. Se a mordesse, talvez se transformasse num poema. Ou numa epopeia. Se a atirasse, talvez ela voasse. A senhora dobra a esquina e sobe a rua. Dentro do seu bolso, clic-clic, clic-clic. De repente, no meio do passeio, surge a lamparina do Aladino, mas a senhora não a vê, passa por cima da lamparina, porque neste momento não olha para o chão, olha em frente, para as pessoas infortunadas que não encontraram uma caneta prateada como ela.
E a isto se chama desperdício de oportunidades.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
O narrador desajeitado
As pessoas passam pelo narrador deste texto e abanam a cabeça, porque o narrador deste texto é claramente desajeitado, caminha de pernas e braços afastados, escorrega aqui e ali, torce o nariz e os pés. Parece um urso a caminhar na neve, mas não é um urso, porque um urso saberia caminhar na neve e, se calhar, nem precisaria de provar isso a ninguém, estaria a hibernar ou assim. O narrador, se pudesse, também hibernaria, mas não pode, coitado, porque, além de não ser um urso, nem sequer dorme bem à noite, é ansioso, não sabe ausentar-se das coisas. Não havendo comparação melhor, o narrador parece um urso desajeitado. Tem os dedos gelados, porque as suas luvinhas de algodão estão completamente encharcadas e já se sabe que um narrador com os dedos gelados não serve para nada, já que não consegue escrever e, portanto, não cumpre, não narra. As pessoas sabem disso e abanam a cabeça. Param durante uns segundos no meio da rua e ficam a observar o narrador com um sorrisinho no canto dos olhos, na esperança de que ele caia de vez e parta o cotovelo ou o cóccix. As pessoas mais cruéis esperam, aliás, que ele parta o cóccix e não o cotovelo, porque partir o cóccix é mais humilhante. Infelizmente, o narrador não chega a partir o cóccix nem a estatelar-se no chão, desaparece atrás de uma porta. A neve continua a cair devagarinho como se não caísse, e é branca, imaculada, pura, não há nada mais bonito do que a neve. Aaaaah!, exclamam as pessoas com cara de inverno. Depois seguem caminho, já esquecidas do narrador e da candura da neve. São pessoas cruéis e egoístas. No fundo, só queriam uma boa história para contar. Na falta de um entretém, o narrador deste texto bem pode morrer. De bate-cu ou de pneumonia. É indiferente.
Ninguém gosta do narrador deste texto.
Esta é a mais pura das verdades.
Ninguém gosta do narrador deste texto.
Esta é a mais pura das verdades.
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