sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Na ponta dos dedos, a arte começa

Para a mãe, a maior artesã.


Na ponta dos dedos, a arte começa. Um pedaço de tecido, um pedaço de arame, uma planta, uma obra de arte. Concentra-se, sonha, faz. Sem música, sem nada, só a arte na ponta dos dedos. Um colar, uma flor, uma borboleta, uma outra natureza paralela. Abre as mãos amplas, põe um anel grande. Dedos longos, um anel grande. Faz as suas próprias unhas: corta, lima, trata, pinta, sopra. Unhas fortes e bonitas. As misteriosas mãos da minha mãe, uma obra de arte. A minha mãe, os pequenos prazeres da vida: um petisco, um café, um gelado, um mergulho, uma cerveja, ameijoas à bulhão pato, uma ginjinha. Caminha em frente, sempre em frente. Não sabe para onde vai nem por onde vai, esqueceu-se, vai em frente. Fala alto, ri-se alto, encolhe os ombros, Estou-me nas tintas. Dentes fortes e bonitos, gargalhadas fortes e bonitas. Um nariz sensível a todos os cheiros: ai, cheira-me a isto, ai, cheira-me àquilo. Cheiros paralelos. Sonha, cresce, faz, cheira, caminha em frente. As suas mãos cada vez maiores, cada vez mais belas, a minha mãe cada vez maior, cada vez mais bela, a ocupar todas as coisas no mundo – o mar, o sol, as montanhas –, a minha mãe igual a uma obra de arte. As misteriosas mãos da mãe, dedos longos, unhas fortes. Uma gargalhada. E na ponta dos dedos, a arte começa.



quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Os números redondos ou a negação dos trinta

Não gosto dos números redondos. Soam-me a falso, não sei. Quando dou com um número redondo, hesito. No supermercado, por exemplo, não compro nada que custe exatamente 10 euros. Cheira-me logo a esturro. Um produto de jeito custa 9 euros e 90 ou 10 euros e 43. 10 euros é um preço ridículo, não compro. O mesmo se aplica ao tempo. Não gosto que me digam: Aquilo é coisa para 20 minutos. Nada demora exatamente 20 minutos, toda a gente sabe isso. Os números redondos são gordos e traiçoeiros. Um comboio com nível também não parte às 10 em ponto. A ideia em si dá-me logo vontade de rir. Ninguém levaria a sério um comboio que parte às 10 em ponto. Os comboios dignos desse nome partem às 10 e 8 ou às 10 e 23, eu jamais entraria num comboio que partisse às 10 em ponto. Ainda outro exemplo: Num bom livro ou num bom filme, a personagem principal nunca tem exatamente 30 ou 40 anos. Uma personagem como deve ser tem 31 anos ou 46, não tem 30 nem 40. Vocês dirão: Não concordo. The 40-year-old virgin é um bom filme. Sim, é um bom filme. Mas é um filme com o Steve Carell, não é para levar a sério. Os números redondos são foleiros. Na vida real, ninguém tem 40 anos. Eu ontem, por exemplo, não fiz 30. É que não fiz mesmo. 30 anos é coisa inventada, os números redondos não existem. Voltei a fazer 29. Sim, 29.
Sou repetente.

domingo, 5 de agosto de 2012

O turista ocidental

O turista ocidental não é turista, é outra coisa. Não vai onde os turistas vão, não usa a piscina do hotel, não quer sequer um hotel com piscina. O turista ocidental é aberto e curioso, quer coisas simples. Dorme em hostels baratuchas e vai onde os autóctones vão. Os autóctones são diferentes e especiais de corrida. O turista ocidental, que é uma pessoa culta, observa-os e aprende. O turista ocidental é uma autêntica criança adulta. Tem a vida toda pela frente, é imaginativo. Traz uma mochila de 60 litros às costas com muitos bolsos e fechos. Dentro da mochila complicada traz um livro de um autor autóctone, roupa suja, roupa lavada, o guia do Lonely Planet, acessórios. O turista ocidental tem o mapa da cidade no bolso, não se perde, é escuteirinho. Senta-se num bar dos autóctones, é simpático e comunicativo, quem o viu e quem o vê. Diz Bom dia! e Obrigado! na língua dos autóctones, é uma pessoa interessada. Lê as dicas do Lonely Planet: o que ver, o que comer, a história dos autóctones, a cultura dos autóctones, a religião, o comportamento, tudo sobre os autóctones. O turista ocidental sabe tudo sobre os autóctones, é incrível. Passeia-se pelas ruas e olha para os edifícios, para as pessoas, para as montras, é uma criança adulta. Mete conversa com os vendedores, faz perguntas inesperadas, ri-se. Como se isso não bastasse, tira fotografias artísticas ao pôr-do-sol e às sombras das árvores, é uma pessoa criativa. Passadas três semanas, o turista ocidental está um autêntico autóctone. Come como os autóctones, bebe como os autóctones, faz tudo o que os autóctones fazem, é incrível. Quando volta para casa, sente-se diferente, único, especial de corrida, é finalmente uma parte do todo. Porém, engana-se, coitado. O turista ocidental não é especial de corrida. É igualzinho aos outros turistas ocidentais, sem tirar nem pôr. Faz tudo o que os outros fazem, come o que os outros comem, bebe o que os outros bebem. Não é um autóctone na terra dos autóctones, é um estranho, um estrangeiro, um turista ocidental. Está tão sozinho como os estrangeiros sozinhos, é tão diferente como eles, é arrogante. Não sabe nada sobre os autóctones e não é uma parte do todo, é um peixe fora de água. Um turista. Uma pessoa estranha ao serviço. Uma criança adulta sem imaginação.
O turista ocidental é um autóctone de outro mundo. Um autêntico Lonely Planet.