quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Dentista

Ontem fui ao dentista. Não me importo de ir ao dentista; tenho dentes fortes. Além disso, o gabinete do meu dentista é espaçoso, tem uma janela ampla com vista para umas árvores grandes. Não sei o nome dessas árvores (não percebo nada de árvores), mas gosto de olhar para elas.
(As pessoas que escrevem deviam perceber de árvores.)
As árvores que vejo do gabinete andam agora de ramos descalços, sem som nem movimento, por causa do Inverno e da crise. Ainda assim, são bonitas. (Há gente que continua bonita apesar do Inverno e da crise. O meu dentista, por exemplo.)
Sento-me na cadeira, olho para as árvores. O dentista conta-me qualquer coisa e entra agora na minha boca escancarada, caminha pelos meus dentes com os seus dedinhos e uns instrumentos de plástico e metal. Fala-me dos malefícios do tártaro, uma história com moral.
Há claramente um outro mundo dentro da minha boca. A propósito disso apercebo-me de que não conheço o céu da minha própria boca.
As árvores descalças devolvem-me uma tristeza boa.
(Não é mau sofrer.)
O dentista diz-me que os meus dentes são fortes, que as minhas gengivas são sensíveis. Que não é saudável ter gengivas sensíveis.
Um dia como os outros, porque o tempo passa e os meus olhos andam pelas árvores como passarinhos. No entanto, subitamente, algo acontece.
Uma mudança resoluta, definitiva, e o dia já não é o mesmo.
Sinto essa mudança na pele, na cabeça. E o dentista também. Desliga imediatamente os seus instrumentos de plástico e metal. Pergunta-me: "É uma canção portuguesa?" e os Madredeus entram-me pelos ouvidos, pelo céu da boca. Não respondo; tenho a boca escancarada assim como os ouvidos, e eu nem gosto dos Madredeus.
As mesmas árvores descalças na rua, o mesmo Inverno, a mesma crise, e o céu é de repente um outro céu, o mundo é um outro mundo, e eu já não quero estar ali, no gabinete do dentista, a ver as árvores descalças. Tenho agora pressa de chegar a casa e saio a correr do gabinete, o casaco por vestir num dia de chuva, onde está o guarda-chuva?
Estou na rua das árvores descalças, mas já não olho para elas, ando num outro lugar como um passarinho, num outro mundo dentro de mim, no céu da minha boca, onde o tempo não passa.
Tenho gengivas sensíveis.
Eis o meu ponto fraco.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Papel, canetas e escrita

Há várias coisas que me irritam. Uma é passarem-me à frente na fila; outra é ter vontade de escrever (o que implica tempo, espaço e energia) e não ter à mão um pedaço de papel ou uma caneta.
Esta situação irrita-me de tal maneira que se me rebentam na cabeça palavras zombeteiras como bombinhas de Carnaval e eu cerro os olhos e os punhos com muita força, ranjo os dentes. Fico assim durante horas. Nas semanas seguintes, esta irritação de pele fica a morar nos meus dias e nos meus sonhos, é insuportável. Não quero que esta situação se repita, acordo encharcada em suor durante a noite, faço tudo ao meu alcance para que nunca me falte papel nem canetas nem escrita.
(Nada me parece mais importante do que papel, canetas e escrita. É ridículo.)
Durante esse período de prevenção, compro, por exemplo, um caderno de argolas e folhas pautadas ou uma caneta azul Stabilo 0.4, uma esferográfica preta Staedler triplus ball M, uma caneta mais clássica, mais cara, talvez uma Sheaffer maneirinha, um diário de capa dura e folhas lisas, um caderno ainda mais pequeno, muito engraçado, com um elástico à volta para andar na bolsinha mais pequena da mala, uma caneta minúscula para trazer dentro da agenda, uma agenda com páginas em branco no fim, um exemplar amarelo de uma edição especial da Moleskine com o Pac Man, coisas assim. Além disso, colecciono folhas de rascunho no escritório, folhas de rascunho em casa, faço cadernos pequeninos com folhas velhas, compro cadernos reciclados porque são reciclados, uma caneta bonita porque é bonita, uma caneta simples porque é simples, uma lapiseira porque é uma lapiseira.
Por vezes, quando mudo de mala reparo que andava a passear cinco canetas e três cadernos. Reparo também que, durante um período de tempo desconhecido, não utilizei nenhuma das canetas nem nenhum dos cadernos para o efeito devido. Começo, por isso, a desistir das canetas e dos cadernos um a um: este caderno foi ao mercado, esta caneta ficou em casa, esta lapiseira comeu rosbife, e assim por diante.
É evidente que, quando chega a vontade de escrever (o que implica tempo, espaço e energia), não tenho um pedaço de papel na mala nem uma caneta. Volto, pois, a cerrar os olhos e os punhos e a ranger os dentes, ouço as tais bombinhas de Carnaval nos ouvidos, talvez solte um gemido ou um guincho; provavelmente um rugido.
Nos dias piores, tenho papel, mas não caneta. Não há nada mais frustrante do que ter papel e não ter caneta. É como ter um cigarro, mas não um isqueiro nem um fósforo nem um pedaço de madeira seco nem coisa que o valha. Escarafuncho a mala à procura de uma resposta, igual aos maluquinhos que vasculham os caixotes do lixo. A eterna esperança no movimento dos braços, risível como uma bombinha de Carnaval, como uma palavra zombeteira.
A título de exemplo, hoje trago um caderno de folhas lisas na mala e uma caneta, mas não me apetece nada escrever.
A propósito de tudo isto, lembro-me do seguinte: O caderno amarelo com o Pac Man continua à minha espera, deitado na prateleira de baixo da casinha dos livros. No entanto, quando o comprei, há cerca de dois meses, parecia não haver no mundo coisa mais urgente do que comprar um exemplar amarelo da edição especial da Moleskine com o Pac Man. (Não fosse a edição esgotar-se e a oportunidade perder-se para sempre.)
Esta recordação do caderno amarelo irrita-me ainda mais do que não ter papel ou caneta.
É como ter mais olhos que barriga.
Mais fama que proveito.
Mais buracos que um queijo suíço.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Rapariga com saquinho de pano

O narrador deste texto anda interessado em raparigas muito magras que não sorriem e têm dentro da mala um saquinho de pano que utilizam para ir às compras. Há muitas raparigas assim nesta cidade, por isso o narrador coloca-se estrategicamente na porta de saída do supermercado para as ver passar.
Não precisa de esperar muito tempo, porque já ali vem uma a dobrar a esquina.
Descreve-a no seu bloco de notas: uma certa falta de cadência nas ancas, um rosto desinteressante como um sinal de trânsito.
A rapariga passa pelo narrador e não deixa nenhum rastro, nenhuma pegada, nenhum perfume. Entra agora no supermercado com o mesmo que ar com que entraria numa repartição de finanças, sem especial interesse. Deambula pelos corredores sem olhar para as prateleiras, sabe exactamente o que quer. Tira cinco coisas para o cestinho, não mais, e encaminha-se agora para as caixas. Respeita a fila educadamente, o rosto igual a um sinal de trânsito, o corpo muito magro, exibindo ossos. A alma escondida atrás de tudo isto a fazer não se sabe o quê.
Tira cinco coisas do cesto: um pacote de quatro iogurtes magros, uma alface, um saco transparente com cinco cenouras lá dentro, uma caixinha com três fatias de queijo e uma pasta de dentes. Não fica muito tempo à procura do seu saquinho de compras, sabe exactamente onde está. As cinco coisas cabem perfeitamente no saquinho de pano que traz dentro da mala. Os seus dedinhos mexem-se com sonolência, sem apetite.
Sai do supermercado, ainda o mesmo ar de repartição de finanças.
O narrador deste texto continua a tirar notas, mas está tão interessado nesta rapariga muito magra que acaba de ter uma erecção ao vê-la passar.
Este fenómeno é único, porque nenhum outro homem tem erecções quando vê esta rapariga passar.
Ora, o narrador deste texto é, claramente, muito mais interessante do que a rapariga com saquinho de pano.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Este blogue passa a vida a mudar de look.

1.º leitor – Este blogue passa a vida a mudar de look.
2.º leitor – Pois. É escrito por uma mulher...
1.º leitor – Como é que sabes?
2.º leitor – As mulheres passam a vida a mudar de look!
1.º leitor – Os homens não mudam de look?!
2.º leitor – Mudam, claro. Mas é diferente.
1.º leitor – É diferente?
2.º leitor – Sim. Os homens mudam de look com o tempo. Porque ficam carecas e gordos.
1.º leitor – E as mulheres não mudam de look com o tempo?
2.º leitor – Mudam, claro. Mas, além disso, também mudam de look quando lhes apetece. Dá-lhes pr'aí!
1.º leitor – As mulheres mudam quando lhes apetece?
2.º leitor – Sim.
1.º leitor – Mas isso é fantástico! As mulheres têm super poderes?
2.º leitor – Não. As mulheres têm problemas de identidade.
1.º leitor – As mulheres mudam de look porque têm problemas de identidade?
2.º leitor – Sim.
1.º leitor – E os homens? Não têm problemas de identidade?
2.º leitor – Têm, claro, mas disfarçam mais. Daí não mudarem de look só porque lhes apetece!
1.º leitor – As mulheres mudam de look para exibir os seus problemas de identidade?
2.º leitor – Sim.
1.º leitor – As mulheres gostam de exibir os seus problemas de identidade?
2.º leitor – Sim. Para atraírem os homens!
1.º leitor – Os homens sentem-se atraídos por problemas de identidade?
2.º leitor – Não.
1.º leitor – Então qual é a lógica?
2.º leitor – Nenhuma…
1.º leitor – Isso parece-me tudo muito complicado.
2.º leitor – As mulheres são muito complicadas.
1.º leitor – Porquê?
2. º leitor – Porque têm problemas de identidade.
1.º leitor – Bolas, coitados dos homens…
2.º leitor – Podes crer.
1.º leitor – Este blogue tem problemas de identidade?
2.º leitor – Claro. É escrito por uma mulher...
1.º leitor – Coitadinho do blogue!
2.º leitor – Coitadinhos mas é de nós!