segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Victor

Para a Tanya, o Vladi e o Victor.

Ainda não conhecemos o Victor, mas imaginamo-lo moreno e brando como certas tardes de Outono, os dentes alinhados num sorriso bom.
Ainda não conhecemos o Victor, porque o Victor ainda não nasceu.
O Victor vai nascer daqui a pouco, hoje mesmo, pelas 18 horas, mais coisa menos coisa.
(No final do texto, é provável que já tenha nascido.)
Ninguém conhece o rosto do Victor, nem mesmo os pais, porque o Victor esteve sempre escondido no ventre da mãe, a olhar para as suas mãos.
Gostaríamos que o Victor tivesse nascido ontem, não por ter sido domingo, mas por ter sido o nosso dia de anos. Seria uma coincidência feliz e teríamos algo em comum com o Victor. No entanto, o Victor não quis nascer no domingo.
O Victor não mostra o rosto a ninguém. O Victor não deu a cambalhota quando devia. Quando a mãe come doces, o Victor dá pontapés.
O Victor quis nascer na segunda-feira, embora não possamos dizer com toda a certeza que o Victor tenha nascido na segunda-feira, porque o Victor ainda não nasceu.
A mãe do Victor, que é morena e branda como certas tardes de Outono, não gostava de chocolate antes de o Victor existir.
O Victor mudou o mundo antes mesmo de nascer.
Imaginamo-lo moreno e brando como certas tardes de Outono, os dentes alinhados num sorriso bom, as mãos nos bolsos, encostado ao muro da escola a fazer promessas de amor em búlgaro, uma língua de sons secretos, de alfabeto secreto, inatingível.
O Victor ainda não nasceu, mas já existe há muito tempo.
Simpatizamos com o Victor.
Porque gosta de chocolate. Porque não deu a cambalhota quando devia. Porque mudou o mundo antes de nascer. Porque decidiu nascer no dia 9 do 8 do 10. O Victor deve ter jeito para números.
O Victor tem uma personalidade forte. Gostamos de pessoas assim.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Funções alternativas para objectos que cumprem uma só função: A borracha Pelikan

Para se distrair, o senhor Barata pensava em funções alternativas para objectos que cumprissem uma só função.
Hoje, por exemplo, escolheu para objecto da sua reflexão a borracha Pelikan que estava mesmo à sua esquerda, em cima da escrivaninha.
A borracha Pelikan cumpria a única função de apagar traços de lápis. (Algumas borrachas também apagavam traços de caneta, mas este não era o caso daquela borracha Pelikan.) Para se distrair, o senhor Barata pegou no paralelepípedo branco e magicou funções alternativas para ele.
A primeira função alternativa que o senhor Barata arranjou para a sua borracha Pelikan foi a de amuleto. Com efeito, era muito melhor apertar uma borracha na mão do que amuletos de madeira ou de porcelana ou de osso, porque a borracha Pelikan tinha uma consistência elástica que era agradável ao toque. O senhor Barata olhou para o seu paralelepípedo branco e acreditou, de imediato, que ele o protegeria do mal e o ajudaria nos momentos decisivos. O facto de a função real da borracha Pelikan ser apagar traços conferia a este amuleto de látex uma conotação figurativa que os outros amuletos não tinham.
A segunda função alternativa que o senhor Barata arranjou para a sua borracha Pelikan foi a de pedra. Era, efectivamente, muito mais amigável atirar uma borracha a um colega do que uma pedra, além de que a probabilidade de o colega sair lesado era mínima. Se as pessoas fossem apedrejadas na praça pública com borrachas e não com pedras, aprenderiam, certamente, a lição e não teriam de morrer. O senhor Barata decidiu que, se alguma vez precisasse de atirar uma pedra, atiraria a sua borracha Pelikan.
A terceira função alternativa que o senhor Barata arranjou para a sua borracha Pelikan foi a de vítima de maus-tratos. Era muito mais sensato descarregar as energias negativas na borracha Pelikan do que nos estagiários ou na mulher. Além disso, o senhor Barata podia maltratar a borracha Pelikan de maneiras extremamente mórbidas, a que jamais poderia recorrer quando maltratava os estagiários ou a mulher, com o acréscimo de que essas práticas não eram puníveis. A borracha Pelikan podia ser, por exemplo, esventrada com a ponta de um clipe ou esquartejada com o x-acto ou simplesmente dilacerada com os dentes.
O senhor Barata riu-se. Tinha agora mais confiança na humanidade em geral e na sua vida em particular.
Graças à borracha Pelikan.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A vingança da mulher na casa dos vinte

Uma mulher na casa dos vinte chegou à conclusão de que o mundo se virou contra ela pelo simples facto de as nuvens, que ainda há pouco eram impossivelmente brancas como nos quadros de Magritte, serem agora cinzentas como os velhos. O facto de as nuvens serem agora cinzentas como os velhos estragava o dia à mulher na casa dos vinte. E isto por diversas razões:
Primeira razão: a mulher na casa dos vinte estava de bicicleta.
Segunda razão: a mulher na casa dos vinte estava a caminho de uma sessão de ginástica ao ar livre.
Terceira razão: a mulher na casa dos vinte não tinha trazido um casaco.
Ora, na cabeça da mulher na casa dos vinte, a qual trazia um capacete redondo como o mundo injusto, o mundo só podia ter-se virado contra ela.
Na cabeça das mulheres na casa dos vinte, o mundo é, tal como elas, uma mulher na casa dos vinte e vira-se, tal como elas, contra as outras mulheres.
(As mulheres na casa dos vinte passam o tempo a ver o seu reflexo nas coisas e nos outros: o mundo inteiro é uma reprodução do seu corpo e da sua cabeça redonda como o mundo injusto.)
A mulher na casa dos vinte decidiu que, para se vingar do mundo injusto e redondo como o seu capacete, ia sentar-se em frente à televisão e ver, de seguida, todos os episódios da quarta temporada das Donas de Casa Desesperadas.
(As Donas de Casa Desesperadas são uma série interessantíssima, precisamente porque as protagonistas são mulheres na casa dos quarenta e não mulheres na casa dos vinte.)
A mulher na casa dos vinte pensava em tudo isto (no mundo que se virou contra ela, nas nuvens cinzentas como os velhos, nas Donas de Casa Desesperadas, nas mulheres na casa dos quarenta, no seu casaco e na sessão de ginástica ao ar livre) enquanto pedalava a caminho da sua televisão, a cabeça enfiada dentro do capacete redondo como o mundo injusto.
De repente, sentia-se francamente mais animada.
Não com a perspectiva de ver, ainda hoje, todos os episódios da quarta temporada das Donas de Casa Desesperadas. Mas com a perspectiva de se tornar uma pessoa mais interessante com a idade.
As mulheres na casa dos vinte são impossíveis como os quadros de Magritte. E ainda mais enfadonhas do que as nuvens desta cidade, as quais são cinzentas (como os velhos) e injustas (como o mundo).

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Da Sinonímia

A Sinonímia era uma menina alegre, o que não quer dizer que fosse feliz ou afortunada. Na verdade, tivera uma infância triste, e não propriamente uma infância dura ou fúnebre. A Sinonímia sorria muito porque era nervosa, o que não quer dizer que fosse agitada ou enérgica. Por causa disso ou apesar disso, a Sinonímia comia muito, o que não queria dizer que dilacerasse a comida ou desfrutasse dela. A Sinonímia era feia, o que não quer dizer que fosse repugnante, era só feia. Usava um par de óculos monumental e não sumptuoso ou magnífico. A Sinonímia não era boa aluna, o que não quer dizer que fosse má. Era uma menina muito preguiçosa, o que não significa que fosse lenta ou frouxa, pelo contrário: era veloz e activa. A Sinonímia aprendeu a tocar piano, o que não quer dizer que compreendesse alguma coisa de música. A Sinonímia não fazia propriamente amigos, o que não quer dizer que a Sinonímia não fosse uma pessoa amigável. No entanto, era uma pessoa apoucada, o que não significa que fosse estúpida. Falava muito, o que não quer dizer que conversasse. Tendia a ser uma pessoa compreensiva, o que não quer dizer que fosse inteligente. A Sinonímia era, como todas as outras pessoas, única.
O que não quer dizer que fosse excepcional ou incomparável. Pelo contrário.