quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ana Bacalhau



Simpatizaríamos com a Ana Bacalhau, se ela, por exemplo, não cantasse. Se não tivesse uma voz arremessada e não irrompesse pelas casas e pelos ouvidos, chamando por nós. Se não fosse tão circular nem consolada como as coisas verdadeiramente completas. No fundo e à superfície, simpatizaríamos com a Ana Bacalhau, se ela fosse outra pessoa: por exemplo, uma mulher taciturna como um cemitério ou uma criança com necessidades especiais. Uma coitadinha, por exemplo. Ou então uma mulher voluntariosa que ajudasse os coitadinhos. Mas, agora e objectivamente, vendo e ouvindo a pessoa que Ana Bacalhau aparenta ser, não. Não simpatizamos com a Ana Bacalhau, nem com a sua voz esmerada. Estamos em crer que a voz da Ana Bacalhau é um verdadeiro insulto a todas as vozes de todas as outras mulheres e tememos por elas, por nós e pelos respectivos maridos, pelas respectivas casas. Depois da Ana Bacalhau, nada mais soa como dantes e as vozes que outrora eram belas são agora grasnos, guinchos e uivos. Por esta razão, rogamos muitas pragas à Ana Bacalhau e ao tom pérfido e inteligente da sua voz, atiramos-lhe pedras enraivecidas dentro das nossas cabeças e desejamos secretamente que um dia, ao partir na sua longa viagem para Ítaca ou para a Índia ou para o Brasil, caia borda fora da caravela ou do iate ou do veleiro e se transforme em sereia por efeito de uma estranha e momentânea reacção alérgica a cloreto de sódio e seja acolhida por Neptuno e este a leve para a Ilha dos Amores, onde a mulher-agora-sereia se veja obrigada a prostituir o corpo, a alma, o muco e a voz por muitos anos. Desejamos também que, por inveja do seu canto ardiloso, as outras ninfas a matem durante o sono, que atirem o seu corpo ao mar e que Hades a receba no reino dos mortos, lhe arranque a voz e as tripas e a envie muda e compungida de regresso à vida, qual pequena sereia repetida, mas muito mais ridícula, muito mais feia, muito mais burra. Desejamos também que Zeus apague a memória dos homens e estes se esqueçam daquele canto da Ilha dos Amores que todos amaram nos sonhos mas nunca sonharam escutar, que a Ana Bacalhau viva calada e contristada uma longa vida sem música nem sentimento, cheia de dores nas costas e nos dentes, lavrando a terra e comendo batatas cozidas. Desejamos tudo isto enquanto ouvimos religiosamente os Deolinda. Enquanto as casas saem de si próprias para a rua, alvoroçadas. Todos andam apaixonados pela Ana Bacalhau, pela sua voz imaginada que todos continuarão a amar depois do tempo. Todos, menos nós.
Que caia borda fora e regresse feia e caladinha. Para bem dos homens, das mulheres e das nossas casas.