Na montra da papelaria do bairro: “more amor por favor”.
Entro. Compro vários postais, compro uma última prenda e compro também uma recarga para a minha caneta. Escrevi pouco com a minha caneta este ano. Por um lado, não tinha tempo. Por outro, não tinha tinta.
De quando em quando a sensação de que isto já deu o que tinha a dar.
Isto: a literatura, o ser humano, o planeta.
Cinco livros na mesa de cabeceira. Um deles ainda não comecei a ler, outro vai a meio, outro a dois terços, outro a três quartos, outro quase no fim; e nenhum deles me entusiasma por aí além. Ainda assim, leio. Para quê?
Vi a Annie Ernaux em março. Ela de microfone na mão, aos 82 anos, a dar-me respostas. “A literatura é ter uma frase para nós próprios, que possamos ler em silêncio.” Acrescenta: “E essa frase ajuda-nos a viver”.
Viemos ontem para Portugal. Eu, a minha caneta, o homem da minha vida, os nossos três filhos e as malas cheias de roupa e chocolates e um livro qualquer para ler nos intervalos.
2023 quase no fim. Último capítulo.
Comecei a fazer bolos. Bolo de iogurte, bolo de chocolate, bolo mármore. O milagre da levedura, uma ideia a aumentar de volume.
E de novo a sensação de que afinal sempre vamos dar a volta a isto. Cessar-fogo, eleições, energias renováveis.
Apercebi-me este ano de que os meus pais são fortes pra caneco. Sorte a minha, andar assim no mundo, rodeada de força. Os meus pais são a minha frase.
Os meus filhos deram um pulo. Já ninguém usa fralda nem chucha. Já ninguém faz sestas. Todos tão diferentes. Os meus queridos três porquinhos.
Vi o Djavan em junho. O Caetano em setembro. A Madonna em outubro. A Mayra Andrade em dezembro.
Esta frase da Sheila Heti. “Only when a woman is no longer attractive to men, can she be left alone for enough moments to actually think.”
Este sambinha do Caetano: “Sem samba não dá.”
Pus finalmente o dispositivo intrauterino. Não quero mais filhos. Chiça. A ginecologista para mim. “Posso dizer-lhe uma coisa?” Pode, pode, claro. “O seu útero é muito bonito.” Eu e a médica na amena cavaqueira, duas mulheres, duas pessoas.
Uma reflexão da Djaimilia Pereira de Almeida: Pode uma escritora negra falar sobre outros assuntos que não o racismo? “Se eu falar sobre outras coisas, sobre a vista da minha janela ou uma futilidade qualquer que me apareça à frente… Posso fazer isso? Será que há espaço para isso, sendo eu uma mulher negra?”
O privilégio da escritora branca: escrever sobre futilidades, não escrever sobre raça, não escrever sobre privilégio, não pensar nisso sequer.
Ganhar consciência disso. A importância da ideia, da levedura.
Uma pessoa faz a diferença. Annie Ernaux, Caetano, Djaimilia, Mayra Andrade. Uma pessoa, uma voz, uma montra, uma frase.
Para quê? Para isto.
Boas entradas, amigos! Para o ano há eleições.
More amor por favor.