sábado, 31 de dezembro de 2022

2022

Cartoon do Hugo van der Ding


Não tirei tantas fotografias aos meus filhos. Não li muito. 

Os mais novos largaram as fraldas. Fizeram 3 anos. Começaram a ir à escola.

Voltei a cozinhar. Voltei a ir ao ginásio.

Compramos uma figueira e uma laranjeira. Morreram as duas.

Fui às urgências com dificuldades respiratórias. Não era covid. Era uma pneumonia. 

Li Ana Margarida de Carvalho, Manuel Vilas, Jane Lazarre, Adília Lopes.

Fiz 40 anos. O Gilberto Gil fez 80. A Gertrude Stein morreu há mais de 70. Este verso dela: “Sugar is not a vegetable”. Adoro a Gertrude Stein e adoro açúcar e adoro alguns vegetais, sobretudo os subterrâneos e obscuros. Batata, alho, cebola, rabanete.

O autoclismo deu o berro.

Perdi os meus óculos escuros, que eram redondos e graduados. Perdi o cartão do cidadão. Comecei a usar batom. 

Tirei uma selfie com a Capicua. Descobri o trabalho do Hugo van der Ding.

Tive uma quebra de tensão num dia de calor. Deitei-me na calçada. Várias pessoas ofereceram ajuda.

Regressei às urgências com dificuldades respiratórias. Já não era pneumonia. Era covid.

Compramos um beliche para o quarto dos rapazes. 

Um dos meus filhos partiu o candeeiro da sala. Arranjamos outro. Partiu esse também. Não arranjamos outro.

Tomei nota de algumas frases dos meus filhos:

A boca tem um buraco. O fogo é dos bombeiros. Eu gosto de ti todos os dias. Isto é um planeta e nós estamos no espaço.

Li um conto do Sandro William Junqueira, em que um homem pesaroso parece andar sempre com uma jiboia aos ombros. Esta imagem tem-me acompanhado estes tempos. Andamos todos com uma jiboia aos ombros. 

Em 2023 só espero que ela não se enrole à volta do nosso pescoço. 

Mais amor, menos guerra. Mais poesia, menos futebol. Aquelas coisas.

Bom ano, amigos! A esperança é sempre a última.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Are you crazy

 Como é que diz o provérbio? Que errar é humano? Que os erros se pagam caros? Mas como evitar o erro? Como determinar quem errou? como corrigir o incorrigível?

Ontem, ao final do dia, optei por não ir buscar os meus filhos de bicicleta. Chovia, estava escuro e eu sentia-me cansada pra chuchu. Além disso, tinha tempo. Fui então buscar os meus três filhos de autocarro. Talvez fosse mais prudente.


Cheguei à escola pouco depois das 16h. Os miúdos estavam bem. Não tinha havido acidentes com chichi, todos tinham comido ao almoço. Um deles trazia um enorme saco com um presépio de plasticina lá dentro.


Enquanto seguíamos pela rua, fui explicando - com os poucos conhecimentos que tenho sobre o assunto - que hoje (ontem) era o dia mais curto do ano, que a partir daqui os dias seriam cada vez mais longos, cada vez mais luminosos, cada vez mais quentes. O mais velho ficou feliz com essa perspetiva. Os mais novos não reagiram. Para eles, talvez os dias fossem sempre longos e luminosos, não sei.


Atravessamos a primeira passadeira em rebanho. Não havia carros nem bicicletas, éramos só nós. Na segunda passadeira, parei-os na berma da estrada. Continuava a chover e já era noite total, era preciso cautela. Além disso, estávamos numa rua movimentada e meia inclinada, o que também afeta o campo de visão.


Um carro que vinha a descer a rua parou na passadeira. Começamos então a atravessar, eu ligeiramente à frente, a dar indicações aos três meninos que vinham imediatamente atrás. 


Na direção oposta, o carro que subia a rua parecia vir demasiado depressa. Apercebi-me a tempo e parei a nossa turminha no meio da passadeira, eu à frente das crianças, ao estilo polícia sinaleiro, mas sempre na expectativa razoável de que o condutor veloz nos visse e parasse. Ia dizendo aquelas coisas: cuidado com o carro, venham sempre com a mamã, vamos esperar. De súbito, o mais velho, distraído do mundo nas suas fantasias de carros de corrida, atravessou-se à minha frente e já não o consegui agarrar. Só então percebi a tragédia que se avizinhava: o carro que subia depressa não só não abrandava, como não fazia mesmo tenções de parar. O mais provável é que não nos estivesse a ver.


Felizmente o outro condutor, parado na passadeira, buzinou com afinco e o carro largado estacou bruscamente, a tempo de se evitar a maior tragédia da minha vida. Estávamos todos em choque: eu, os meus três filhos, o condutor estacado mesmo à nossa frente, o condutor parado na passadeira e algumas pessoas que observavam a cena nos passeios.


Mas eis que o condutor desatento que circulava em excesso de velocidade e que estava prestes a atropelar uma criança numa passadeira em frente a uma escola, sai do carro, aponta o dedo indicador ao meu rosto e grita-me em inglês: “Are you crazy? What are you doing?” 


Está de noite, está a chover, uma mãe atravessa a rua na passadeira com os seus três filhos pequenos. Respondi-lhe incrédula: “You’re driving in front of a school. Isto é uma passadeira.” Respondeu-me irritado: “Não há semáforos aqui!” E depois voltou a entrar no seu carro, bateu com a porta e zarpou. Eu e os meus três filhos, utilizadores vulneráveis da rodovia, atravessamos a passadeira muito devagar, ainda em choque. 


Entretanto a fila de carros atrás do automóvel parado na passadeira já se alongava, era necessário avançar. Antes de seguir viagem, o condutor-herói baixou o vidro e disse-me em francês: “Tem de ter atenção. Eles andam muito rápido e não conseguem ver.”


Mais atrás, um jovem condutor perguntou-me se eu estava bem. Foi o único. Dos meus filhos ninguém quis saber.


As pessoas na paragem do autocarro olhavam-me desconfiados. Eu aflita e desfeita em lágrimas, rodeada de três crianças confusas. Nenhuma palavra de consolo ou preocupação. 


Apesar de a lei dizer repetidamente o contrário, no nosso sistema de crenças, a culpa pelos acidentes será sempre do peão indefeso, sobretudo das mães incapazes de controlarem os filhos. 


Ontem, nenhuma das testemunhas daquele incidente parece ter considerado a possibilidade de o peão - no caso a mãe, acompanhada pelos seus três filhos - ser a vítima e não a pessoa culpada. A mãe, prestes a perder um filho na passadeira, além de culpada, é louca. Não merece qualquer compaixão.


A nenhuma destas pessoas lhe ocorreu pôr em causa o condutor, que circulava em excesso de velocidade à noite e à chuva, distraído das passadeiras numa zona residencial onde abundam escolas. O peão, que corre evidentes riscos, é que deve velar sozinho pela sua segurança.


Assim vai o mundo, sozinho, avançando sobre rodas em piloto-automático e em evidente excesso de velocidade. Mães esgotadas, condutores enfurecidos, crianças indefesas, todos nós pressionados, atrasados, magoados, culpados, carentes, doentes, exaustos, esmagados, mas cada vez mais eficientes, cada vez mais rápidos, cada vez mais ágeis, versáteis, qualificados, conectados, sozinhos, deprimidos e nunca errados, sempre prontos a apontar o dedo, a acusar o próximo de todos os males, de todos os erros. “Are you crazy?”


O planeta aos gritos, sobrelotado, sem recursos, também ele carente, doente e exausto, mas ainda são poucas as pessoas que se questionam verdadeiramente sobre os malefícios de tudo isto: o nosso domínio sobre a natureza, sobre a tecnologia, sobre o tempo e o espaço, a começar pela omnipresença do automóvel no meio urbano, que veio criar esta constante sensação de urgência e de perigo, dominar o espaço público, mudar o comportamento das pessoas e alterar drasticamente a paisagem com rodovias muito feias de asfalto, já para não falar da inadmissível poluição sonora e atmosférica provocada por estas banheiras de metal e vidro. Para todos podermos chegar mais rápido e no maior dos confortos, para cumprirmos todos os marcos, todas as metas, todos os prazos que, passo a expressão natalícia, não interessam ao menino Jesus.


Não sei como vou lidar com este trauma, com esta fratura, com este erro, mas espero não cair de vez neste negrume, nesta loucura. Em 2023 espero continuar ligada às estações, a pensar nos dias que aí vêm, que hão de ser cada vez mais longos, cada vez mais luminosos, cada vez mais quentes. 


Por outras palavras, espero continuar a viver, a ler, a escrever, a amar, a brincar com os meus filhos e a agradecer todos os dias ser mãe deles, mesmo sabendo que nem sempre estarei à altura e que poderei não conseguir salvá-los.