domingo, 27 de novembro de 2022

E já está!


Passo-lhe uma fatia de pão com manteiga. Ele vai arrancando a côdea com as mãos. Pergunto-lhe pelos amigos da escola. Quem estava, quem não estava, se apanharam chuva no recreio. Diz-me: “Mamã, eu não quero falar” e durante uns minutos não fala. Os irmãos correm atrás um do outro pela casa e ele beberica o seu leite, come a fatia de pão. Agora olha em frente, contempla o quadro do avô na sala. Ri-se. Diz: “O avô estava sempre a desenhar.” E eu rio-me também. Vou comendo a côdea do pão. Digo-lhe: “Tu também gostas muito de desenhar”. Sim, diz ele. “Gosto de desenhar e gosto muito de carros de corrida azuis”. Depois lá conta uma história qualquer da escola. Que alguém caiu no recreio e fez um grande dói-dói. Termina as histórias quase sempre assim: “E foi assim. Acabou. E já está.” Digo-lhe: “No domingo vais fazer cinco anos.” Ele pergunta: “Porquê?” Eu digo: “Porque nasceste no dia 27 e no domingo é dia 27.” 

Daí a nada estamos a falar desse dia 27, há quase cinco anos. Desta vez conto-lhe mais pormenores. Que estava muito frio, que eu e o pai chamamos um táxi pouco antes da meia-noite, que o táxi nunca mais chegava. Que dormimos num quarto do hospital, a mamã deitada aqui e o papá ali. “E eu? Também estava deitado?”, pergunta ele. Sim, sim, digo-lhe eu. Estavas deitado na barriga da mamã e depois amanheceu e toda a gente passava pelo quarto para saber se o bebé queria nascer, mas o bebé ainda não queria nascer. A mamã à espera, o papá à espera e as enfermeiras e as parteiras e os médicos. Todos à espera e o bebé nada. Ele ri-se. 

Digo-lhe que a certa altura uma parteira anunciou: “Atenção! Vai nascer o bebé!” e que então o bebé lá saiu da barriga da mamã. Estava todo nu e a chorar porque estava cheio de frio. “Era eu”, diz ele. “Pois eras”, respondo eu. Conto-lhe que uma enfermeira lhe pôs um gorro branco na cabeça e que depois o bebé veio para o colo da mamã e ficou muito quentinho e parou de chorar. Que o papá estava muito feliz e tirou uma fotografia ao bebé, que o bebé era muito lindo. Que a mamã também estava muito feliz com o seu bebé que tinha acabado de nascer e tinha um gorro branco na cabeça. Ele insiste: “Era eu”. Eu digo: “Pois eras”. Ele ri-se e aponta para mim. Diz: “E tu eras uma nova mamã”. “Pois era”, respondo. “Eu era uma nova mamã”.

Foi há cinco anos. 

Que dia mais cruel e mais lindo.

Nascia o bebé. Nascia a mamã. Nascia o papá. 

E foi assim. Começou. E já está.