sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Annie Ernaux


Senti uma vertigem quando soube. Como se a Annie Ernaux fizesse parte do meu corpo. Como se a Annie Ernaux circulasse no meu sistema nervoso.

Acabei há poucos dias de ler “L’écriture comme un couteau”. Foi um amigo que me ofereceu o livro há coisa de um mês, pelos meus 40 anos. Sublinhei-o todo, dobrei cantos, reli certas frases, certos parágrafos. 

A propósito do seu processo criativo, diz Annie Ernaux que não gosta da chamada “escrita feminina”. Que ela não é uma mulher que escreve para mulheres. Que ela trouxe para a literatura a sua vivência como mulher, mas que a sua vida não era bem singular, que ela não se considerava um ser único. Que a escrita era a transformação das suas experiências pessoais numa entidade exterior a ela. Que escrever era o seu dom, o seu ato político. Que a sua forma de escrever era dura e violenta, que as frases estavam impregnadas de realidade, que o seu objetivo na literatura era que as palavras deixassem de ser palavras, que passassem a ser sensações e imagens. 

Que escrever era difícil. Que durante muito tempo - anos, décadas - não podia viver nesse outro universo que era a escrita. Que trabalhava como professora, tratava dos filhos, ia ao supermercado e cozinhava. Que essa vida lhe trazia sofrimento. Que lhe faltava sempre o tempo ou a força para escrever. Que nessa fase pensava em desistir de escrever. Que sentia estar a estragar a vida do marido e dos filhos. Que nunca se perguntava o contrário: se seriam eles que estragavam a vida dela.

Que viveu sempre em dois universos ao mesmo tempo: no universo da vida e no universo da escrita. Que o seu objetivo na escrita ou na literatura era sentir e pensar nos outros como outros tinham sentido e pensado nela.

O amigo que me ofereceu o livro escreveu-me a dizer: “Por uma vez, um nobel para alguém que amo”.

É mesmo isso!

Ganhamos todos hoje. Os que escrevem. Os que sofrem por não conseguirem escrever. Os que, mesmo assim, escrevem aos bochechos. Os que não dormem para escrever. Os que querem sentir, existir, pensar, sonhar nos outros como outros têm sentido, existido, pensado e sonhado neles.

Como não sentir uma vertigem?

Eu sou a Annie e a Annie sou eu.