terça-feira, 31 de agosto de 2021

Fósforo

Isto de ter filhos, larvas, girinos, pintainhos, tanto faz. Isto de ser fêmea, mulher, mamífera, matrona, madame.

Cá está ele: “Fósforo”, o meu poema afogueado que brilha no escuro.

Obrigada ao João Pedro Azul pelo convite, apoio, esmero, revisão, edição, confiança e sensibilidade.

Um caderno poético da coleção “ElemeNTário”, com chancela da Flan de Tal.

https://www.flanzine.com/product/fosforo-ana-pessoa/

Estou em brasas.

sábado, 28 de agosto de 2021

Dois vezes dois


Marcámos o parto como quem marca uma consulta ou uma reunião. Quinta não dá. Sexta também não. Fica então para quarta-feira, às 8 da manhã. “Isto é só uma data indicativa”, disse o médico. “Indicativa, o tanas”, pensei eu. 

Numa consulta de monitorização, uma parteira preparou-nos para os diferentes cenários. Era comum os gémeos nascerem antes de tempo. Era possível que um precisasse de incumbadora, ou os dois até. Era possível que nenhum dos dois ficasse a dormir comigo na maternidade. 

Ai de vocês que me façam isso, disse eu para os meus botões e também para os meus bebés. Ai de vocês que nasçam antes de tempo. Levam já um estalo para perceberem como é a vida. 

Os bebés piaram fininho. Nasceram na data marcada, por cesariana. Faz hoje dois anos. Um pesava três quilos e o outro dois quilos e trezentos. Nenhum de nós precisou de assistência por aí além. Estávamos todos incrivelmente vivos da Silva, prontos para o destino.

Nos primeiros dias dormiam juntos num berço do hospital. Encostavam a cabeça um no outro, davam as mãos, entrelaçavam os dedos.

Depois viemos para casa. Eram bebés calmos. Quando começava a escurecer, choravam. Eu sentava-me na cama e, num movimento de precisão e equilíbrio, deitava os dois em cima de mim, um de um lado, outro do outro. Adormeciam assim, espalhados pelo meu peito. Por vezes começavam a resvalar pelos meus braços e eu devolvia-os à posição inicial. Ali ficávamos uma hora, duas horas. No escuro. Eles dormiam, eu também. 

Durante a noite era raro acordarem ao mesmo tempo. Ainda hoje é assim. Primeiro acorda um, depois acorda o outro. Há sempre alguém que vai parar ao sofá: mãe ou pai com um deles nos braços.

Ainda adormecem ao colo. Ainda não dormem a noite inteira.

Foi sempre mais difícil adormecer o mais pequeno. É o mais sensível, o mais dramático, o mais apegado à mãe. Está sempre a dar-me beijinhos, está sempre a dizer “dói-dói”. Até aos seis meses dormia com três elétrodos colados no torso, que o ligavam a um aparelho encarregue de monitorizar a sua respiração e batimento cardíaco. Esteve internado três vezes, sempre com infeções respiratórias.

O irmão gémeo também apanha as mesmas infeções, mas aguenta-se à bomboca. É maior e mais resistente. É também o mais compenetrado cá de casa. Concentra-se nos seus afazeres, inventa brincadeiras, não entra em grandes conflitos. Apesar disso, é o que chora mais alto, é o que morde com mais força, é o que põe toda a gente a rir. Tem os dentes tortos e é meio desajeitado, cai muitas vezes. Quando acaba de comer, atira o prato para o chão com toda a força. Os irmãos partem-se a rir.

São a nossa dupla maravilha. Brincam com o irmão mais velho. Brincam juntos. Brincam sozinhos. Quando um está a dormir, o outro faz tudo para o acordar. Se um estiver doente, ficam os dois em casa. Adoram saltar no sofá. Adoram andar de baloiço. Comem iogurte a mais. Têm muita cera nos ouvidos. Um é mais ponderado que o outro. Um é mais extrovertido que o outro. São completamente diferentes, mas quase ninguém os distingue.

Vieram de repente, em dose dupla. São o dobro do cansaço. O amor ao quadrado. Duas vezes tudo, tudo, e mais alguma coisa.



quinta-feira, 12 de agosto de 2021

FILbo 2021

Mañana lá estarei em formato virtual hablando portunhol na Feira Internacional do Livro de Bogotá (Filbo). Às 10h na Colômbia, 17h na Bélgica, 16h em Portugal.

#FILBo2021



segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Cache-cache


Cascais. Aqui estamos os cinco. 

Vento, sol e buganvílias. 

Uma gaivota guincha, um cão ladra e eu faço 39 anos. 

Perco-me a caminho do mini mercado. Perco-me a caminho do restaurante. Quando cá vivia também era assim: perdia-me facilmente. 

Desço a rua da Panisol e lembro-me. Eu a descer esta mesma rua quase sempre sozinha, quase sempre empolgada, a caminho da estação, do café, da praia, da casa de alguém. 

Passo pelo cabeleireiro onde, aos 13 anos, cortei o cabelo à rapaz. Passo pelo centro comercial onde furei as orelhas. 

Jardim Visconde da Luz, Galileu, Santini, McDonald’s, estação. Passo por todos estes lugares sem pertencer a nenhum deles. 

Caminho no espaço como se caminhasse no tempo. Primeiro ciclo, segundo ciclo, terceiro ciclo. Secundária, universidade.

O meu filho mais velho tenta dizer o nome da minha vila. Diz: “Cache-cache”. 

Ando pelas ruas com a sensação de que não vou inteira, de que ainda não cheguei completamente, apesar de ter chegado há mais de uma semana. 

Um comboio parte. Ficamos a vê-lo passar. 

Tiro os óculos escuros para ver melhor. Tiro a máscara para respirar melhor. Mas não chego a sentir qualquer coisa que devia estar a sentir. O alívio. A euforia. A consolação depois da saudade. 

O que se sente depois da saudade?

Chegamos à praia da Conceição.

Os meus filhos brincam na areia. O homem da minha vida também. Já ninguém joga vólei na praia. O bar Brisa ainda existe.

Vou até à água. A espuma das ondas toca nos meus pés e qualquer coisa desperta em mim. O frio. A pele. A existência. 

No momento em que mergulho apercebo-me de que uma parte de mim esteve sempre ali à minha espera, de que uma parte de mim afinal não vinha a caminho. Cache-cache.

Eu nunca hei de ser inteira, real, completa. Serei sempre a menina perdida. 

Estou de passagem. A mergulhar na água. A apanhar o comboio. A descer a rua.

Sou estrangeira. Vou a caminho de um lugar qualquer. E não sei de que terra sou.