quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Amor e outono

Anda aos saltos no bosque. Corre atrás dos pombos. Vai sempre em frente. Eu fico a vê-lo ir. 
Ele corre e grita. Nunca olha para trás.
Afasta-se cada vez mais, é cada vez mais pequeno.
Já não corre atrás dos pombos. Corre só por correr. 


Chamo-o. Não reage. 
Chamo outra vez. Não reage. 
O meu filho corre sempre em frente e eu corro atrás dele.
A certa altura tropeça e cai. Fica no chão a chorar.
Eu pego nele ao colo. Ele pára de chorar. Quer ir para o chão outra vez. 
Desata novamente a correr. E eu fico a vê-lo ir. O meu filho sempre em frente. 
Aos gritos. Às gargalhadas. Aos tombos.
E eu cá atrás. A chamar por ele. A correr atrás dele. 
Amor e outono por todo o lado.
E sempre aquela esperança. De que não tropece. De que não caia. De que olhe para trás.

sábado, 23 de novembro de 2019

Tio Tuca

O Tuca morreu. Era o meu tio mais desatinado, meu vizinho de cima, meu padrinho alcoólico, um homem muito lúcido e ao mesmo tempo destravado. Tinha um tom de voz incomum: muito baixo, sem nuances. Um riso seco e implacável, sarcástico. Mexia as mãos quando falava. Mãos pequenas e subversivas, que se esfregavam uma na outra, que se agitavam no ar, que apontavam o dedo indicador. 
Durante grande parte da vida adulta viveu do whisky e do seu humor negro, das suas ideias frenéticas sobre o mundo e a condição humana.
Nos últimos anos não saía de casa. Primeiro não lhe apetecia, depois continuou a não lhe apetecer. Passava os dias a fumar. Há anos e anos que não bebia. Deixou-se disso de repente, de um dia para o outro.
Sempre que vínhamos a Portugal, íamos lá a casa. Eu e o maridão. Telefonávamos antes para saber se podíamos aparecer. A minha tia atendia, dizia-me que sim, venham. Ele ficava feliz de nos ver, cheio de vontade de conversar. “Sentem-se aí.” Acendia um cigarro, lançava uma pergunta, que podia ser sobre a nossa vida ou sobre o estado do mundo. Podia ser só: “Como estão?” 
Trazíamos-lhe chocolate belga. Ele dizia: “Oh, obrigado, não era preciso”, mas depois corrigia-se: “Era, era, era”. Nunca nos oferecia dos chocolates que trazíamos. Dizia que aqueles chocolates eram só para ele e que não nos dava nem um. E realmente não dava. Nem um.
Nesses encontros, durante umas horas, falávamos da vida e do mundo. O meu tio, sempre tão fechado em casa, tinha uma cabeça voadora, aberta ao mundo. Comentava coisas que via na televisão. Um debate, uma notícia, um anúncio. Tinha sempre uma observação peculiar a acrescentar. Fazia perguntas sobre a Bélgica, sobre as nossas viagens, sobre as minhas idas a escolas secundárias, sobre a Europa, sobre esta coisa de estarmos por aqui a existir. Entusiasmava-se com a conversa, falava de tudo e mais alguma coisa, as mãos pequenas e exaltadas. 
Ultimamente, quando nos despedíamos, trocávamos um olhar no corredor. Um olhar cheio de reconhecimento e admiração. O meu tio desejava-me uma boa viagem, eu dizia para ele cuidar de si. E depois trocávamos esse olhar, que era um olhar de despedida. Um olhar que dizia: esta poderá ser a última vez, este poderá ser o último olhar. Era isto que eu pensava e sei que era isto que o meu tio pensava e sei que ele sabia que eu também pensava.
Não posava para as fotos, não me telefonava nos anos, não me dava prendas de Natal. Nunca quis saber das minhas notas. Não era esse tio. Era um outro tio. Sentava-se comigo a conversar, fazia-me perguntas, ria-se de mim e ouvia-me de olhos e ouvidos muito abertos. Sempre atento aos pormenores. Só ele reparou na mãozinha do meu filho quando dormia ao meu colo. A mãozinha agarrada à minha blusa, a dizer-me: “Não me deixes”. Só ele reparou que o meu pai me passou a mão pelos ombros no dia do meu casamento. “Aquilo era um pai a despedir-se da filha”, dizia ele. “Que coisa tão bonita, aquela festinha nos ombros. Boa sorte, minha filha.”
Uma vez, perguntou-me com um certo fascínio nos olhos: quando começa a vida? Já pensaste nisso? Sim, pensei, pensamos todos, não é verdade? Não, mas aquele momento em que passamos a existir. Em que momento se faz faísca? E nisto estalou os dedos a exemplificar o fósforo que se acendia, a vida a começar. Era um mistério extraordinário, não era? Era, pois.
Durante a minha adolescência, mostrava-lhe os meus textos e ele emocionava-se. Uma vez, chorou tanto para cima do papel que eu lhe interrompi a leitura para lhe dizer que aquele texto não era triste. Ele continuou a ler e a chorar.
Passava a vida a provocar-me com os direitos das mulheres. Que a igualdade era uma parvoíce. Que eu não devia jogar futebol. Que nenhum homem queria uma mulher com pernas de futebolista. Que um homem devia abrir a porta a uma mulher, que um homem devia levar os sacos das compras. E eu muito irritada e confusa. A pensar que os direitos das mulheres não tinham nada a ver com portas nem com sacos de compras. A igualdade era a igualdade. O meu tio ria-se de mim. Que grande seca passarmos a ser iguais, termos os mesmos interesses, querermos as mesmas coisas. Vamos passar a vida à bulha. Uma mulher igual a mim não me ia dar pica nenhuma. O lugar da mulher era na cozinha e era um belo lugar, um lugar feliz. Que mal tinha a cozinha? Havia muito conhecimento numa receita. O dedo indicador apontado para mim: “Podes dar voltas e mais voltas, querida sobrinha, mas vais parar à cozinha.” Depois ria-se, inquieto, desafiador. 
Quando publiquei o meu segundo livro, perguntou-me se eu não tinha vontade de escrever um livro a sério, a dizer quem sou. Eu respondi que o Supergigante era um livro a sério e ele encolheu os ombros. Não era nada. Era um livro para miúdos. Leste? Não. Então lê. Não vou ler.
Que eu saiba nunca leu esse livro nem nenhum dos outros. 
Uma vez, depois de citar um escritor qualquer que falava sobre a duração da vida, o meu tio anuiu que realmente era uma estupidez as pessoas dizerem que a vida era curta. Que na nossa perceção do mundo, nada ia durar tanto tempo como a nossa própria vida. Absolutamente nada. E insistiu: Nada nada nada. Depois o meu tio riu-se e eu ri-me com ele. Era uma frase verdadeira e bonita. Nunca me esqueci dela e já a disse várias vezes: nada dura tanto tempo como a nossa própria vida.
Certa vez, na Bertrand do CascaisShoppingg, o meu tio decidiu oferecer-me os livros todos que eu quisesse. Eu escolhi três ou quatro. Talvez Laura Esquivel e Isabel Allende, mais “Os Cisnes Selvagens”, coisas assim. O meu tio disse: “Está bem. Primeiro lês essas pachachadas, depois lês este.” Eram “As Regras da Atração” do Bret Easton Ellis. “Não li, mas deve ser um deboche completo”. Eu li e confirmo: era um deboche completo.
Quando fiz 18 anos, o tio Tuca ofereceu-me um quadro feito por ele. Era o número 18 rodeado de frases. Assim:

Uma das frases dizia (e diz): “Os dezoito anos são tão bonitos como os setenta e quatro e contudo os dezoito anos são mais bonitos”. 
O meu tio Tuca não chegou aos setenta e quatro. Chegou aos setenta e um. Mas nada durou tanto tempo como a vida do meu tio Tuca. Absolutamente nada. Nada nada nada.
O tio Tuca morreu pelas 5h da manhã. Eram 6h da manhã em Bruxelas. Os meus três filhos acordavam ao mesmo tempo e eu acordava com eles. O maridão na cozinha a tirar cafés. Um dos meus filhos a ler um livro, outro ao meu colo, outro na cadeirinha. 
Tantas saudades vou ter do meu tio Tuca. Que homem tão desassossegado, tão ele próprio. Era tanto do que sou e quero ser, e tanto do que não sou nem quero ser. 
Olho para os meus filhos e penso: Quando acaba a vida? Em que momento se apaga o fósforo e passamos a não existir? 
No quadro que o meu tio fez para mim há uma frase que diz assim: “Para falar com franqueza os rios estão sempre a nascer”.
Nunca uma sobrinha gostou tanto de um tio. E nunca um tio gostou tanto de uma sobrinha.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Assim ou Assado no Deus Me Livro

Olha que coisa mais cara ou coroa, pão ou broa.



O “Assim ou Assado” aterrou frito ou grelhado no Deus Me Livro. Crítica de Júlia Martins:

(...)  “Assim ou Assado” (Planeta Tangerina, 2019) é um delicioso poema de alternativas. Um magnífico pretexto para ler a pares ou sozinho, para ler ou ver, para começar pelo princípio ou pelo fim, para conversar ou ficar, simplesmente, a pensar. As palavras de Ana Pessoa, ilustradas por Yara Kono, levam-nos ao mundo da filosofia, reflectindo sobre conceitos, discutindo as questões deterministas e do livre-arbítrio. Serão as nossas escolhas completamente livres? Ou não passarão estas de meras ilusões? (...)

O que acham vocês?
Eu acho muito nice ou baril, catita ou gentil.

domingo, 10 de novembro de 2019

Um domingo doce ou salgado

Que lindo! Um domingo muito frio que se fez muito quente na livraria La petite portugaise. Houve conversa, histórias e ateliê para os mais novos. 
Obrigada, Susi Pratt, Regina Barbosa e Ana Paula Faias Ambrosio, pela organização e animação. 
Obrigada, Henrique Rodrigues, pela boa onda e pelo bate-papo. 
E obrigada a todos os que vieram! Com companhia é sempre melhor.




sábado, 9 de novembro de 2019

Assim ou assado na livraria La petite portugaise

Amanhã às 15h, eu e o escritor brasileiro Henrique Rodrigues estaremos assim ou assado na livraria La Petite Portugaise (Ch. de Wavre 214B).
Bate-papo doce ou salgado sobre literatura infantil para leitores grandes e pequenos. Vinde vinde!

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Assim ou assado

Terra ou ar, sorte ou azar!
Cá vai disto: um novo livro ou um livro novo, assim ou assado, doce ou salgado.
Eu escrevi mole ou duro, a Yara ilustrou claro ou escuro. E o resultado é este álbum mais ou menos, para leitores grandes ou pequenos.


Espero que o encontrem aqui ou ali. Eu cá nem estou em mim! É que a Yara, essa mulher muito cinema ou teatro, vale por três ou quatro. Graças a ela, este livro é muito oito ou oitenta, sal ou pimenta.
Obrigada a toda a equipa do Planeta Tangerina, essa casa muito sim ou não, laranja ou limão, e em especial à editora e amiga Isabel Minhós Martins, pessoa toda floresta ou deserto, que avistou este livro longe ou perto.
Cá vai ele. Tarde ou cedo, amargo ou azedo. Agora ou nunca, resposta ou pergunta!
https://www.planetatangerina.com/pt/loja/livros/assim-ou-assado