Cortaram-me a barriga ao meio. Depois cortaram um cordão umbilical e depois outro.
Quarto de hospital. Um silêncio branco à minha volta.
Estou deitada numa maca.
Já fiz dois sudokus e duas sopas de letras. Também fiz dois bebés. Estão num berço ao meu lado.
Todas as coisas quietas e desinfetadas.
Passo os olhos pelas palavras cruzadas, também elas quietas e desinfetadas.
Nunca gostei de palavras cruzadas. A ideia de preencher quadrados com letras não me entusiasma. Mas hoje (ontem? anteontem? na semana passada?), não sei porquê, apeteceu-me. Talvez tenha sido a trovoada que caiu sobre a cidade. Talvez tenha sido a maternidade triplicada que caiu sobre mim.
As palavras salvam-me. Os substantivos, as preposições, os advérbios. A semântica, a fonética, a sinonímia.
Interesso-me por vocábulos da mesma maneira com que me interesso por pessoas. Quero saber de onde vêm, o que pensam, para onde vão.
Os meus filhos acabaram de chegar e eu faço palavras cruzadas. As minhas primeiríssimas palavras cruzadas, e não as segundas ou as terceiras.
Salto de quadrado em quadrado e, de repente, plim: chego ao fim. O quadro todo preenchido com letras.
Senti um orgulho tão infantil, que tirei uma fotografia (esta fotografia).
É verdade que fiz batota: perguntei coisas ao Google, consultei o dicionário de sinónimos. Mas nunca na vida tinha preenchido o quadro todo com letras. E estas palavras existem. Deram-me a mão. Fizeram-me companhia. No sentido literal e no sentido figurado.
A parteira pesava os gémeos e eu projetava palavras na horizontal e na vertical. Imaginava pradarias tropicais, aves de rapina, conchas fusiformes.
O pediatra explicava-me como desinfetar o umbigo dos gémeos e eu perguntava-me se um umbigo também podia ser fusiforme. Eu pensava em coisas como: Que bonita é a palavra “fusiforme”. Que bonitos são os favos de mel. Quantas letras tem a palavra “honra”?
Eu olhava para os meus filhos recém-chegados, com os seus dois dias de idade, os seus dois dedos de testa, e matutava em sinónimos de “derivar”, “ligar”, “ladrar”. O obstetra fazia previsões sobre a contração do meu útero e eu perguntava-me que palavra a começar por “z” poderia ser sinónimo de “idiota”.
A vida acontecia dentro e fora de mim e eu pegava nos meus filhos ao colo, fazia palavras cruzadas e escrevia sobre tudo isso.
É sempre assim.
Na minha vida tudo se cruza e liga e mistura: as palavras, as pessoas, a semântica. A maternidade, a trovoada, a divagação.
A minha alma é fusiforme. Parece um búzio, uma orelha, um umbigo.
A minha alma é um remoinho de poeira. Uma espiral de vento que engole todas as letras, todos os quadrados. A vida toda.
Há palavras lindas. Há dias fusiformes. Há uma primeira vez para tudo.
E esta poderá ser a primeira lição de vida para estes pequenos seres humanos.
Há sempre maneira de dar a volta a isto. Façam palavras cruzadas, filhotes. Façam birras. Façam figuras. Façam figas. Façam qualquer coisa.
Só não fiquem para aí a queixar-se do destino. A chatear cada um.
Façam-se à vida, pequenos seres. Não sejam zotes (sinónimo de “idiota” a começar por “z”).