Num acesso de raiva e de sede, pedi um "Crime Passionnel".
Gostei do nome e da maldade. Além disso, apetecia-me um delito à pressão.
Não há mal nenhum nisso.
A minha boca anda cheia de fúrias.
E este mundo está tão frio. Tão desanimado.
Parece mesmo um cadáver.
Uma vez escrevi um policial violento. Tinha onze anos.
Em todos os capítulos morria alguém.
Era uma família grande e eu gostei à brava de matar toda a gente.
Escrevi dezenas de páginas, talvez centenas.
Nos intervalos da escrita, ilustrava o livro com grandes facas e poças de sangue.
Ah, bons velhos tempos.
Um dia hei de escrever outro policial. Mas hoje não.
Hoje estou com um impulso muito pouco criativo.
Estou com um impulso desconhecido para o ardor e a cólera.
Felizmente, o meu "Crime Passionnel" chegou depressa. Era uma cerveja bonita. Tinha a cor misteriosa do âmbar.
Valha-nos isso: a cerveja belga.
Um brinde infame aos malfeitores.
Soltei uma gargalhada perversa e bebi um trago de insanidade borbulhante.
Era uma cerveja amarga. Senti um calafrio na espinha.
No meu sistema digestivo, um crime passional a fermentar.
Estou com uma aversão furiosa ao mundo.
O que fazer perante o estado do mundo?
Não sei.
Por enquanto bebo com sofreguidão.
A minha boca amarga e condenável. Cheia de pensamentos impiedosos.
Estou para aqui a beber "Crime Passionnel" e a imaginar transgressões.
A afogar as mágoas do mundo.
É esta a minha infração. A minha pequena ira.
O meu crime apaixonado. Furibundo. Inofensivo. Não premeditado.
Amanhã vou ter dores de cabeça. Mas isso depois passa.
O tempo passa. Tudo passa.
Se calhar até escrevo um texto.
Para que serve um texto?
Não sei.
Serve para matar a sede. Para matar saudades.
Por exemplo:
Morra o Dantas, morra. Pim!