Acabei de ler o primeiro volume daquele norueguês.
Aquele da autobiografia.
Nunca me lembro do nome do senhor. Mas lembro-me do rosto.
Sim, lembro-me.
Vem na capa. Até lhe tirei uma fotografia.
Assim.
Um rosto impetuoso e desobediente. Com toques de insano.
Uma pessoa olha para aquele rosto e tem vertigens.
Eu, pelo menos, tenho.
É um rosto à beira do desequilíbrio.
Se o visse na rua diria: "Aquele é o escritor norueguês que mete medo aos leitores mais robustos."
O escritor papão.
Parece um homem bonito, mas não é um homem bonito. Olhem bem para ele. É tenebroso. O rosto cheio de fissuras.
O Karl Ove - sim, é esse o nome - tem cara de fiorde. Espanta e assombra.
Acabei de o ler na praia. Sentei-me na toalha e fiquei a olhar para o mundo. Era tudo tão aborrecido. O mar sempre igual, a areia aos bocados. Um rabo muito feio ali à frente. Credo. O mundo é tão desengraçado.
Nem as bolas de Berlim me devolveram o ânimo.
Entrei na água e fiquei a boiar nas ondas medíocres.
A culpa era do sol e também daquele norueguês papão.
O Karl Ove escreve de forma lenta e corrosiva. Fala-nos do pai e do irmão, da mulher e da ex-mulher, faz uns desvios por Rembrandt, escreve sobre a neve e as nuvens, sobre o alcoolismo, a incontinência, a imundície. Sobre a "insuportável banalidade" da vida.
Sim, é disso que eles nos fala. Sublinhei esta expressão no livro, traduzido com minúcia por João Reis. A "insuportável banalidade".
A certa altura vamos com o Karl Ove ao supermercado. Compramos produtos de limpeza. Estamos com ele a lavar a casa com luvas amarelas. A esfregar o corrimão das escadas. Perguntamo-nos: Para que interessa a marca do produto de limpeza? Para que serve esta descrição detalhada do processo?
Não sabemos, mas não paramos de ler.
Karl Ove cozinha salmão com batatas e couve-flor e nós cozinhamos com ele.
O livro avança devagar como certas horas. Como certos males.
A sua prosa parece enfastiada ou apática, mas não é. É uma prosa sinuosa, aterradora, perturbada.
Eu fico a pensar no rosto deste escritor papão. E também fico a pensar na couve-flor.
Neste volume o Karl Ove comeu couve-flor umas três vezes.
É o legume mais enfadonho que conheço.
Fiquei a pensar nisto.
Não sei porquê.