Apanho o comboio para Bruxelas em dia de greve dos comboios. Paciência.
Apesar de tudo, estou com os trabalhadores ferroviários, ainda que o seu direito à greve prejudique o meu regresso a casa. Há que protestar contra a liberalização planeada dos caminhos-de-ferro belgas, contra o aumento da idade de reforma, contra o fim anunciado do estatuto de funcionário ferroviário.
Não há democracia sem justiça social. Não há democracia sem negociação. Não há democracia sem equilíbrio de poderes. E na Bélgica (na Europa) vemos o que não temos visto nos Estados Unidos. As pessoas vão para a rua, protestam, fazem greve.
Somos livres, apesar de não sermos livres. Foi também sobre isto que falamos nas escolas que visitei no Luxemburgo.
Vocês são livres? Uns diziam «sim», outros «não». Como é que podemos dizer que somos livres se temos trabalhos de casa? Por que razão se diz que ir à escola é um direito quando é claramente uma obrigação? Porque é que existem tantas regras?
Uma proposta: Se estivéssemos completamente sozinhos, sem pais nem professores nem vizinhos, não teríamos de seguir tantas regras, certo? Mas será que seríamos mais felizes? Será que seríamos de facto mais livres? Nããão, diziam todos.
O que significa ser livre afinal? Então diz-me lá uma coisa: Alguma vez te proibiram de rir? Alguma vez te ameaçaram por discordarem de ti? Alguma vez te impediram de aprender? Os teus pais já decidiram com quem vais casar? Risinhos, credo, que horror! Não, não, não e não.
E então? Somos livres? Já tinhas pensado sobre isto? Para que serve a liberdade? Se ela é assim tão importante, por que razão não se fala dela? Será que vivemos num país onde a liberdade está tão presente que nem pensamos nela? Ou será que ela é tão pequenina, que ninguém a vê? Braços no ar. Sabiam todos a resposta.
Que flor simboliza a liberdade? Ai, como é que se chama a flor?, dizia um. É vermelha. Sim, sim, é vermelha.
Das sessões guardo o entusiasmo dos alunos. Os olhos escancarados, algumas mãos sempre no ar, às vezes apoiadas no outro braço, a resistirem. Queriam dar respostas, queriam fazer perguntas. A Matilde assim: «Nós vamos à escola para aprendermos e para termos melhores oportunidades no futuro e isso quer dizer que vamos ter melhores empregos, melhores condições e por isso vamos ser mais livres». Babum!
Também falamos das «coisas» que existem e das palavras que designam essas coisas. Sempre que possível resvalamos pelo surrealismo. Aquele verso da Gertrude Stein: «Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa».
O Ethan pediu-me para explicar aquela parte de a palavra rosa não ser uma rosa. «Na altura percebi, mas agora deixei de perceber».
A Matilde e o Enzo faziam perguntas à vez. Agora ela, agora ele. A Anita tinha respostas para tudo. Numa das sessões muito se falou das coisas que picam e cortam. Uma menina tinha-se cortado pouco antes com uma folha de papel. É que os livros também magoam.
Por que razão há coisas que abrem e fecham? Porque é que uma janela se abre? Porque é que um frigorífico tem porta? Porque é que os livros se fecham? Uma menina levantou o braço. «Os livros fecham-se para guardar as histórias, para elas não saírem».
Na sessão mais concorrida de todas (70 alunos numa sala e eu de microfone em punho), apercebemo-nos de que o objeto livro poderia estar em várias listas de coisas: as coisas que abrem e fecham, as coisas que picam e cortam, as coisas com coisas dentro.
Uma menina muito tímida quis dizer-me que na lista das coisas que abrem e fecham também deviam estar os olhos. Abri muito os olhos. «Tens razão!»
Recebi prendas a dar com pau. Trouxe para casa uma rosa de origami, um cartaz sobre a liberdade, uma caixa de chocolates a dizer «Merci», um postal com uma rosa desenhada com giz. Uma menina fez um bolo. A mãe dessa menina ofereceu-me uma rosa feita com a casca de um limão.
Não vi o palácio do Grão-Duque, não visitei o museu de arte moderna, mas fui ao Festival das Migrações, desci no elevador panorâmico, abracei uma amiga, bebi um copo no centro.
Ao pequeno-almoço cruzei-me com a Tânia Ganho e com a Susana Amaro Velho, que também andaram pelo Festival das Migrações.
Depois de tanta conversa sobre rosas e cravos, reparei num cravo cor de rosa que decorava a nossa mesa de jantar.
De resto, comi mesmo bem. Fui quase sempre servida por portugueses, que são os imigrantes cá do sítio e que, durante anos (décadas!) também foram «ilegais». Fazem hoje parte da paisagem luxemburguesa. Mais de 90 mil pessoas no Luxemburgo é de origem portuguesa. São a maior comunidade estrangeira.
Portugal mantém no Luxemburgo 29 professores de português que trabalham diariamente nesta importante missão de promover a língua de herança. Conheci uns quantos. A Carmen, o Renato, a Isabel, a Angelina, a Fátima, a Cátia, a Teresa, a Sílvia, a Daniela, e outros ainda. Obrigada a todos eles e obrigada a Mónica Bastos, que tem em mãos a coordenação do ensino de português no Benelux e que me fez este convite.
Há muito trabalho a fazer. A esmagadora maioria dos alunos lusodescendentes fala 4 línguas, mas não chega a frequentar o ensino superior. É preciso continuar a batalhar, a debelar estereótipos, a combater a discriminação, a motivar alunos, pais, educadores.
Adoro fazer parte deste esforço. Pela língua. Pela aprendizagem. Pela liberdade!
Chego a Bruxelas à hora prevista. Os trabalhadores fazem greve, mas os comboios funcionam na mesma. Parece que o direito à greve não prevalece sobre o interesse público. Mas isso agora é outra conversa.
Seguem-se algumas fotografias desta passagem pelo Luxemburgo.