sábado, 8 de março de 2025

Com paus, conchas e pedras

No hemisfério norte, tudo muda. Mas enquanto umas coisas mudam de repente, outras avançam pé ante pé. No momento em que o multilateralismo acaba de forma quase abrupta, a primavera pousa devagar nos telhados.

Os chefes do mundo não ignoram os benefícios da meia-estação. Nada podem contra o pólen e as alergias, claro, mas em geral é mais prudente travar a guerra em dias longos e amenos. 

Por outro lado, os chefes do mundo também estão cientes de que, quando os pássaros piam mais alto, é francamente mais fácil ter esperança. Já se sabe que a primavera é propícia a motins e revoluções. A tirania depende menos dos opressores do que dos oprimidos.

No outro dia, dancei como uma louca no concerto do Branko, onde também estava Dino d’Santiago. Há anos que não dançava tanto, que não ria tanto, que não gritava tanto, os cabelos colados à nuca. 

Aquela música como um mantra: “Vai dar tudo certo, vai dar tudo certo, vai dar tudo certo.”

Na semana passada aterrei em Lisboa e indignei-me um pouco com a barafunda de carros e luzes, não tanto por causa do trânsito, mas pela constatação óbvia de que a cidade vive bem sem mim. Há uns dias sublinhei duas frases da Leila Slimani que têm alguma coisa que ver com isto. No fundo ainda quero pertencer à cidade. Ainda quero que a cidade me queira.

Ouvi na rádio o novo single da Capicua. Dizia assim: “Por cada grunho, um punho em sentido contrário”. Aumentei o volume, cantei também. Eu ainda quero mudar o mundo.

O meu filho pede para ir à praia. Sim, sim, havemos de ir, disse-lhe eu, e depois expliquei-lhe que não podíamos mergulhar na água. Ele esclarece que quer “apanhar paus, conchas e pedras para construir uma casa muito grande”. Levo-o então a apanhar paus, conchas e pedras, e deixo-o trazer a sua colheita para casa. 

De regresso a Bruxelas, o meu filho pega na pasta de modelagem e apressa-se a construir uma casa muito pequenina, que rodeia de paus, conchas e pedras.

Entretanto, ainda no hemisfério norte, há edições estrangeiras dos meus livros. Um chegou à Turquia, outro à Catalunha, outro à Grécia. O título da karateca em catalão é qualquer coisa. Não percebo nenhum destes idiomas e isso emociona-me.

Não vai ser fácil atravessar estes tempos. Lemos a palavra “defesa” demasiadas vezes por dia e, enquanto os países se enchem de tanques e explosivos, vamos nós ficando sem defesas. Andamos todos doentes, cansados, stressados, distraídos.

Apesar disso - ou talvez por isso -, rego mais vezes as plantas, seguro a porta para os vizinhos, abraço os meus pais com mais força, esforço-me a fazer o jantar, vou a concertos, leio, escrevo. Por outras palavras, renuncio ao desespero. Por outras palavras, alimento ativamente o otimismo.

Aquele mantra cá dentro: Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo.

Mais do que nunca, precisamos do nosso punho, da nossa presença, do nosso riso. Não podemos acabar com o sofrimento. Isso é certo e sabido. Mas podemos continuar a construir. 

Com paus, conchas e pedras. 

Com espírito de missão. 

Com esperança.