Há uns anos comecei a tentar escrever argumento para banda desenhada. Logo na primeira tentativa percebi que não ia ser pera doce.
Nunca fui estruturada nem sintética. Ainda hoje não sei dividir cenas por páginas, não percebo nada de vinhetas. Ainda assim, tento.
Em certos momentos, quando tenho de mudar a sequência das cenas, ando para ali a desenhar setas e asteriscos, e sinto uma pressão na cabeça, como se estivesse prestes a explodir.
Hoje em dia, se por alguma razão, volto a ler parte dos meus argumentos, tenho vontade de rir.
Quando escrevi o Mar Negro, o Bernardo bem que se queixou. O texto era longo e demasiado descritivo, dizia ele. Tinha razão, claro, mas eu não conseguia ajudá-lo. O argumento incluía descrições deste tipo: “Inês abre gaveta, saca faca do pão e tábua do pão. Tira pão saloio de um saco, corta fatias. Põe duas fatias na torradeira. Abre frigorífico, tira manteiga, queijo e fiambre fatiado.”💤🥱
Ao longo do processo fui deixando espaço para o Bernardo fazer o que quisesse, mas até essas minhas indicações de liberdade eram extensas e mesmo nada libertadoras. Veja-se este exemplo: “Transição para noite, talvez Inês a fechar os estores ou prédio visto de fora no escuro. Uma sugestão qualquer de que já é de noite.”
Credo! Apercebo-me agora de que podia ter escrito apenas as três palavras iniciais: “Transição para noite.” Ou só mesmo: “Noite.” Duh!
Resultado: o Bernardo andou com o Mar Negro ao colo durante um ano, desenhou que se fartou, ficou com uma tendinite e a novela virou um calhamaço.
Na reta final decidimos que tínhamos de encurtar o livro. Certo dia, juntámo-nos os três - eu, o Bernardo e a Isabel - e passamos mais de três horas a riscar diálogos, desenhos, duplas inteiras. Antes de darmos esse golpe, tirei uma fotografia a estes meus dois companheiros. Adoro a Isabel. Adoro o Bernardo. Adoro o Planeta Tangerina. E adoro esta nossa banda desenhada, não pensem!
O Mar Negro entrou na gráfica uns meses depois. Tinha (tem!) 320 páginas. Entretanto já saiu na Turquia (!) e em breve sairá a edição francesa (oh là là !).
Ora, há coisa de uma semana fiquei a saber que este nosso Mar Negro recebeu uma menção honrosa no Prémio Jorge Magalhães para Argumento de Banda Desenhada. Na notícia dizia que a menção tinha sido atribuída à minha pessoa, mas como se vê, o argumento não é só meu. É nosso!
Nesta altura do campeonato, o reconhecimento faz-nos bem. Já estou aqui cheia de vontade de tentar outra vez, de aprender mais, de fazer melhor. É que entretanto estamos todos mais crescidos e já aprendemos umas coisas.
Nos últimos tempos, tanto no que toca à banda desenhada como no que toca à vida, tenho vindo a apreciar precisamente a concisão e também o silêncio, embora este texto não seja exemplo disso.
Seguem-se as legendas das cinco fotografias que acompanham este texto: a capa do Mar Negro, uma das duplas (que contém a tal “transição para noite”🙄), a foto da Isabel e do Bernardo antes do golpe, a maqueta do livro durante o golpe e uma selfie minha no dia em que o Mar Negro me chegou às mãos.
🏆O Prémio Jorge Magalhães para Argumento de Banda Desenhada - “o prémio a sério” - foi atribuído ao Mangusto da Joana Mosi. É um livro muito fixe. Sou fã da Joana Mosi. Se puderem e quiserem, assinem a newsletter dela. É só pérolas!