É a última folha do último caderno do último dia do ano.
O narrador deste texto também é o último narrador do ano, por isso poupa no papel, encolhe as asas e as letras. Tem poucas linhas, poucas palavras, pouca terra, pouca terra.
O narrador deste texto está num comboio.
Vem sentado à janela, claro. É um narrador contemplativo e sensível. Observa os pinheiros que passam, as casas que passam e pensa precisamente nisso: que tudo passa, todas as coisas de todos os dias, incluindo aquele avião ao longe, estas duas galinhas ao perto, certas dores por dentro. As dores também passam, o corpo passa, a alma passa. Somos passageiros do tempo. Andamos sobre rodas sobre carris sobre terra. O narrador decide dedicar a última folha do último dia a esta sua reflexão medíocre, mas felizmente um homem interrompe-lhe o texto. Pergunta-lhe: Deseja tomar alguma coisa? O narrador abana a cabeça antes de perceber a pergunta. Não, não deseja tomar nada, deseja só narrar o seu texto, mas este seu desejo também passa. O narrador passageiro está sem palavras na ponta da língua nem na ponta dos dedos. Tudo passa, a literatura passa, as palavras passam. A última folha do último dia suspira. O narrador busca inspiração na sua garrafa de água mineral natural Luso e regressa à janela pendular. Uma família de oliveiras passa ao longe e ao perto. São oliveiras muito bem comportadas, parecem militares camuflados. De vez em quando, o sol lança raios e coriscos à cabeça do narrador.
A ponta dos dedos aponta para a folha.
Próxima estação: Coimbra B. As pessoas estão muito alinhadas na estação, muito quietas. Parecem bonecos disfarçados de pessoas.
A nuvem de um cigarro passa, a nuvem do céu também passa.
O narrador boceja e logo a seguir apressa-se para chegar ao fim da última folha do último dia.
Apetece-lhe fazer outra coisa qualquer.
Por exemplo, ler.
Por exemplo, dormir.
Ler e depois dormir.
O narrador deste texto não é um narrador a sério.
É um narrador a fingir. Está só de passagem por aqui.
A última folha do último caderno chegou ao fim.