segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Sea of Words 2010

Fui a Barcelona e a Granada com mais dezanove pessoas. Tenho esta sina de fazer viagens a lugares estranhos com gente estranha, nada de grave. Ganhei um iPod shuffle que será uma óptima prenda de Natal para um dos meus primos e também um Notebook chamado Aspire que tem um teclado espanhol e que ainda nem sequer liguei. Conversei pela primeira vez com uma rapariga de Israel e com uma outra da Palestina. Não falei com elas sobre o conflito porque eu não sabia o que dizer sobre o conflito. Optei por falar sobre homens com a primeira e sobre fotografia com a segunda, assuntos enfadonhos em qualquer parte do mundo. O egípcio escreveu a história dele à beira-mar, disse-me isto umas três vezes. A marroquina não podia beber álcool, tive imensa pena dela. Morava na Holanda. Não conseguia usar muito bem o auricular para ouvir a interpretação do espanhol para inglês, porque tinha os ouvidos tapados com lenços lindíssimos. O turco não podia comer porco, pelo que não pôde saborear a fatia de bacon estaladiço que vinha sentada em cima do salmão. Um desperdício. A lituana era vegetariana por opção, bem como a finlandesa e uma das eslovenas e outras pessoas ainda. O vegetarianismo está na moda. A eslovena vegetariana vestia-se de roxo e tinha uns óculos enormes, estudou dramaturgia. Tinha pinta de dramaturga. O tipo do Montenegro media, à vontade, dois metros. Acho sempre que as pessoas que medem dois metros passam o dia inteiro a jogar basquetebol, por isso estranhei que um tipo de dois metros gostasse de escrever. Não falei muito com o tipo do Montenegro, porque passava o tempo aos segredinhos com uma das polacas. Acabo sempre por me dar bem com eslovenos, não sei porquê. Não temos nada a ver com os eslovenos, mas eu gosto deles e eles também gostam de mim. Vou à Eslovénia no próximo Verão. Já estava decidido antes desta viagem. O espanhol e o italiano diziam piadas que só eles percebiam. Só os latinos percebem os latinos. Não cheguei a trocar uma única palavra com a tipa da Albânia, parece-me. Não houve oportunidade e a tipa da Albânia não gostava lá muito de falar. Não me choca. Uma das polacas falava melhor francês do que inglês, porque vivia em Paris. A outra polaca morava na Finlândia, porque tinha casado com um finlandês. Ossos do ofício. O croata também era casado, mas não tinha filhos, acho. Uma das eslovenas não era casada, mas já tinha um filho. Tinha imensas saudades do filho. Quanto mais próximos estávamos do fim da viagem, mais feliz ela estava. No último dia, andava aos pulinhos. A finlandesa era bissexual. Falámos muito sobre sexo com a finlandesa, como é óbvio. Outro assunto enfadonho. A lituana só tinha 18 anos, falava pouco. O letão usava um chapéu à cowboy, também falava pouco. Fizemos muitas coisas em grupo. Saímos juntos, bebemos juntos, rimo-nos juntos, dançámos juntos. Mas a certa altura não podia ver nenhuma destas pessoas à frente. Queria estar sozinha em casa, a comer pizza, vestida com o meu pijama e o meu roupão, a ver uma série fora de moda como o 24 horas. No entanto, aturei-os até ao fim e quando me vi sozinha no aeroporto de Barcelona, tive pena de não me ter despedido de todos. Com um abraço ou algo do género. Não sei porquê. O palácio da Alhambra é das coisas mais bonitas que vi na vida. Vagueávamos pelos jardins da Alhambra e eu pensava na minha mãe, na sua tez tão escura, no seu nariz árabe. Os árabes estiveram sete séculos na Andaluzia. Isto impressionou-me. Também me impressionou o facto de eu não saber isto. Sou uma pessoa tão inculta, que vergonha de mim própria. Os árabes desapareceram da Península Ibérica. O Hitler não conseguiu tanto. Isto foi dito por uma israelita, não por mim. Granada é uma cidade lindíssima, mas não tivemos tempo para perceber se Granada era, de facto, lindíssima. Gosto de Barcelona. Gosto mais de estar sozinha do que em grupo. Decidi ler As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Na tradução inglesa, talvez. Apenas 3% do mercado livreiro de língua inglesa é dedicado a literatura traduzida. Também não sabia isto. O meu texto foi traduzido para francês, é uma sensação estranha ler um texto meu em francês. O Amin Maalouf esteve recentemente em Bruxelas. Não o fui ver, tinha outras coisas para fazer. Há tantas coisas para fazer. Hoje vou jantar pizza. Já estava decidido antes da viagem.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Jovens Criadores '10

No outro dia fui tirar sangue. Coisas da medicina do trabalho. Não penso muito sobre isso, faço o que mandam. Urinei logo de manhã para uma caixinha redonda muito engraçada que daria imenso jeito para guardar clipes e vim para o trabalho em jejum. A única diferença entre esse dia e os outros dias foi ter feito xixi para a tal caixinha e não para a sanita. De resto, vou sempre em jejum para o trabalho ou quase sempre. Cheguei ao 9.º andar e entrei na salinha de espera. A salinha de espera é tão pequenina que faz lembrar a caixinha do xixi, mas não é redonda portanto não é nada parecida com a caixinha do xixi. Na sala de espera há lugar para umas cinco pessoas e parece-me que, se todas forem espadaúdas como, aliás, o são as pessoas desta terra, haveriam de roçar os joelhos umas nas outras. Felizmente só cá está uma pessoa e eu sento-me ao seu lado, discreta e caladinha como nos meus melhores dias. Nessa altura, olho para o lado e qual não é o meu espanto quando vejo encostadinho a mim aquele tipo da unidade de tradução inglesa, parecido com o valter hugo mãe. A coincidência desceu sobre mim como uma revelação de Nossa Senhora e eu fiquei muito quietinha a observar o valter hugo mãe: está a ler um livro velho com um ar zangado. É estranho que esteja a ler com um ar zangado. As pessoas não costumam ler com um ar zangado. O valter hugo mãe é especial. Está tão metido consigo que dá vontade de lhe dar uma festinha na cara ou de lhe fazer coceguinhas no queixo. Acorda, palerminha.
A enfermeira interrompe-nos e o valter hugo mãe desaparece para sempre. Observo a caixinha onde me encontro: há cartazes nas paredes anunciando eventos antigos a que eu não fui por falta de paciência para a União Europeia fora do horário de expediente, Deus me perdoe. Aposto que o tipo da unidade de tradução inglesa também não foi a nenhum destes eventos, tem o ar mais desinteressado do mundo e, ainda por cima, lê livros com ar zangado, aposto que não liga nenhuma à União Europeia. Gosto dele, mas não por isso.
A enfermeira chama-me. Deito-me na marquesa bem-disposta e a enfermeira vai sugando o meu sangue enquanto eu conto piadinhas sobre as pessoas que correm à chuva com fatinhos de licra. Rimo-nos as duas das pessoas que correm à chuva com fatinhos de licra, já não sei onde começou esta conversa. No final, a enfermeira oferece-me uma maçã e eu mordo-a. Vou trabalhar muito contente por causa do tipo da unidade de tradução inglesa que é parecido com o valter hugo mãe, uma parvoíce.
Ora, nesse mesmo dia tomei conhecimento de que ganhei os jovens criadores. Não é primeira vez que concorro e nunca levo nenhuma bicicleta. Desta vez não foi assim. Fiquei ainda mais contente. Leio a comunicação até ao fim e fico ainda mais contente, porque o valter hugo mãe fazia parte do júri. O valter hugo mãe de verdade, não este clone foleiro, com ar de pessoa importante que não faz xixi de manhã.
Estas coisas deixam-me assim, sem pinga de sangue.
Sou tão mimalha às vezes.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sete pés

Fujo a sete pés, literalmente a sete pés, porque vejo os meus pés e também outros pés correndo, os meus pés e outros cinco pés, olho para mim, sete olhos, e não reconheço o corpo, o meu próprio corpo que é o meu próprio corpo correndo à minha frente, vários corpos à minha frente, toda eu duplicada, toda eu triplicada, toda eu sete vezes, sete pés mas não sete cabeças, o casaco pela mão, só um casaco pela mão, e tenho apenas duas mãos, só duas mãos, apesar de ter sete pés e talvez sete corpos, apesar de a tarde estar fria e de ser só uma tarde, uma só tarde, um só casaco, só um casaco, o coração contando segundos, os segundos ao contrário, 10, 9, 8, o meu corpo ao contrário, o coração que é só um, contando os segundos, sete pés, sete vidas, sete mares, sete colinas, até ao fim do mundo, o meu coração como uma granada ou como a passagem de ano, 3, 2, 1 e eu oiço uma bomba ou uma rolha saltando, qualquer coisa que explode como nos dias de festa ou nos dias de guerra e eu corro ainda mais, por causa dos pés, por causa dos outros, os pés dos outros, que não são meus, que nunca foram meus, os pés dos outros, que me seguem, e não olho para trás, nunca olho para trás, atiro o casaco e corro ainda mais, porque balanço os braços, e toda eu sou velocidade, fujo do destino, para o destino, contra o destino, o casaco azul às pintinhas, o melhor casaco de todos, qual destino, sem destino, e eu fujo a sete pés e não sou um corpo, sou tantos corpos, tenho sete vidas, para quê as vidas, morrer sete vezes e sempre a mesma morte, atirar-me sete vezes, esborrachar-me sete vezes, sempre este terror, sempre este coração, nunca o destino, sempre o destino, que é uma granada e conta os segundos, o mundo ao contrário, até ao fim do mundo, sete colinas, sete mares, sete mortes sempre iguais.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Diálogo com colega insatisfeito

- Bonjour! Estou a ligar a propósito do documento X.
- Diga.
- Tem aí o documento consigo?
- Como?!
- Se tem o documento consigo…
- [hesitante] Não estou a perceber…
- … Pergunto-lhe se tem o documento consigo, porque tenho aqui uma pergunta específica sobre…
- Se tenho o documento comigo?!
- Sim…
- [riso sarcástico] Desculpe, você está a perguntar-me se eu tenho o documento à minha frente?!
- Sim…
- [riso sarcástico] É evidente que não, minha senhora! Eu tenho outras coisas para fazer, sabe?
- Claro, compreendo… Pode então abrir o documento, por favor?
- Um momento. [quinze segundos depois] Diga.
- Ora bem, este documento tem uma versão anterior e…
- Mas está a falar de quê?
- Deste documento que...
- Qual parte do documento?!
- Na página 5, no ponto 2...
- Sim e então?
- A parte Y foi eliminada numa versão anterior...
- Não estou a ver erro nenhum!
- Sim, mas a parte Y foi eliminada numa versão anterior e…
- Qual versão anterior?
- No documento Z, a versão anterior…
- E então?
- Ora bem, esta parte foi eliminada e agora...
- Não estou a perceber nada do que está a dizer.
- Esta parte aparece novamente e eu só queria mesmo saber se se trata de…
- Bem, não sei. Tenho de comparar as versões. Depois telefono. Au revoir.

Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…

[É por estas e por outras que as lambadas devem ser dadas em devida altura. Este senhor, se fosse pequenino, levava duas lambadas e piava fininho. Infelizmente já é demasiado crescido para isso e agora, para ir ao sítio, vai ter de levar um murro nos tomates todos os dias antes de sair de casa. Coitado do senhor. É desagradável.]

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Uma praia feia

De repente lembrei-me daquele lugar onde ninguém estava além de nós. Daquela praia deserta num dia de Inverno. Uma praia feia, aliás, cercada de prédios pardacentos, a ponta de uma cidade, o fim de qualquer coisa. Nem as gaivotas pousavam ali, só os nossos pés. Era uma praia tão triste. Lembras-te? Tanto frio, tanto vento, nem tinha trazido um gorro, doíam-me os ouvidos. Todas as razões para não estarmos ali e, no entanto, estávamos ali. Enrolei o cachecol à volta da cabeça, lembras-te? Não te ouvia, não te falava, não te beijava e, ainda assim, não queria estar noutro lugar. O sol ia tão alto: perfurava as nuvens como um milagre e só nós assistíamos àquilo, uma ilusão pateta de que talvez fossemos especiais. Tão parvinhos. As nossas pegadas na areia, só as nossas pegadas na areia, apesar de não estarmos em nenhum deserto, de nunca termos estado num deserto, de estarmos numa cidade feiíssima cheia de gente e de gaivotas que se escondiam noutro lugar qualquer que não aquele. Conheço tão bem as tuas pegadas. Conheço-as muito melhor do que as minhas. Porque sigo os teus passos e não os meus, claro. Conheço bem os teus ombros, o teu cabelo, as tuas costas, sigo-te. Quanto tempo terão ficado ali as nossas pegadas, já viste? Se calhar tempo nenhum, repara, porque as nuvens escureciam como os dias e é provável que tenha chovido nesse dia, não me lembro. O vento a correr como uma má notícia, o meu cabelo tão desgrenhado, cheio de areia e de sal, e eu feliz com qualquer coisa, distraída com qualquer coisa. Tão arrependida por não ter trazido o gorro. A seguir as tuas pegadas na praia feiíssima, os teus pés muito maiores do que os meus. E era o final da cidade, o final dos dias, onde ninguém estava além de nós.
Não sei por que razão me lembrei disto agora.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Amor correspondido

- Ana?
- Estás a chamar pela Ana, Rodrigo?
- Ana?
- A Ana não está, fofinho!
- Ana?
- A Ana foi-se embora, não foi?
- Abião?
- Pois, foi-se embora de avião.
- Ana?
- Se quiseres, podemos ver fotografias da Ana. Queres ver fotografias da Ana?
- Xim.
- Olha aqui esta fotografia da Ana.
- Mais!
- E olha esta aqui.
- Mais!
- Olha outra aqui também.
- Mais!
- Pronto, agora aqui não tenho mais fotografias da Ana.
- Mais!

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Aveiro Jovem Criador 2010

No sábado passado algo de absolutamente extraordinário se passou em Aveiro: a ria rumorejou a história de todos os amores e os moliceiros soergueram-se na ria, entraram pela praça do Rossio, atravessaram o mercado do peixe e já não eram moliceiros, vejam bem!, eram mulheres empinando os narizes, os lábios coloridos de escarlate, velas cobrindo o cabelo, sirgas penduradas ao pescoço. Infelizmente ninguém deu por isso, o que foi ainda mais extraordinário. Àquela hora todos se distraíam da cidade, imergidos que estavam nas suas vidas ou nas lojas do Fórum. Outros houve que se encontravam no Museu de Aveiro, assistindo à entrega dos prémios aos jovens criadores, que eram jovens e criadores e tinham, por isso, esperança na vida, no amor, na arte e noutros substantivos abstractos.
Oh, grande perda aquela!
Os moliceiros passeando-se na cidade, sabedores de todos os segredos, e os jovens criadores comendo ovos-moles, distraídos, perplexos, regozijados. Tão jovens, tão criativos.
Coitados!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Um homem corre para o metro.

Um homem corre para o metro. O cabelo grisalho e uma calva redonda no cocuruto. Não tem idade para correr nem muito jeito para isso, mas corre na mesma: está com pressa. Pela mão traz uma mala de pele ou a imitar pele, ligeiramente puída, talvez professor de matemática ou vendedor de livros por catálogo. O metro está parado há coisa de cinco segundos, mas o homem ainda não chegou à plataforma. Por isso, corre. Galga agora os degraus da escada rolante, dá um pequeno encontrão numa senhora muito gorda, pede desculpa verdadeiramente arrependido, a senhora parece perdoá-lo. As portas do metro já assobiam, começam agora mesmo a fechar-se e o homem, que tem pernas e braços compridos, tira partido das pernas e dos braços compridos e lança a mão vazia para uma das portas, na esperança de parar o movimento ou o tempo ou coisa que o valha. Infelizmente as portas continuam a fechar-se até que se fecham mesmo. A mão do homem fica exactamente a meio: os cinco dedos dentro do metro e o resto da mão do lado de fora. As portas não voltam a abrir, a enorme carruagem não anda para a frente nem para trás. O homem ali fica especado, a mão entre uma coisa e outra. O condutor do metro não presta atenção a nada disto. De outro modo, abriria as portas agora mesmo. Os passageiros olham atónitos para os dedos pendurados na porta. Do lado de fora, as pessoas mexem-se alvoraçadas como pombos. Por fim, e para horror dos que assistem, o metro parte. Os passageiros amotinam-se, começam a esbracejar e a gritar. O homem de cabelo grisalho não tem outro remédio: corre pela plataforma com o metro que avança, levado pela própria mão. Alguns passageiros correm atrás dele. O homem de cabelo grisalho e calva redonda no cocoruto não tem idade para correr nem muito jeito para isso, mas corre na mesma. Felizmente, a senhora muito gorda está de costas para o homem que corre na sua direcção. Além de muito gorda, é completamente surda, não sabe o que se passa.
A colisão brutal entre os dois corpos foi o que bastou para salvar o homem e a sua mão. Homem e mulher caem no chão como dois amantes.
Um tratamento de choque.
Para onde iria o homem com tanta pressa? Jamais saberemos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Imigrantes, intocáveis e imortais

Quando como lasanha fico com o estômago a levedar durante a tarde inteira. É um facto. O mesmo acontece quando falo sobre multiculturalismo. Fico tão enfastiada que tenho de beber um chá verde para digerir. Mesmo assim, como lasanha porque gosto de comer e falo sobre multiculturalismo porque vivo em Bruxelas, onde o multiculturalismo está sempre na ordem do dia. Trata-se de um tema extremamente cosmopolita e moderno. Ora, num discurso proferido este domingo, a Angela Merkel disse qualquer coisa como "o multiculturalismo falhou redondamente". Como se não bastasse, disse isto em alemão, uma língua medonha e nada cândida, ao contrário do português.
É óbvio que Angela Merkel já sabia que todos lhe cairiam em cima. Há que apreciar Angela Merkel, nem que seja, por isso. Há pouca gente temerária à frente da Europa, são todos demasiado cosmopolitas, demasiado modernos. É certo que, antes de dizer isto, a chanceler também disse outras coisas. Por exemplo, que os alemães aceitaram os Gastarbeiter nos anos 60 na expectativa de que eles se fossem embora passado pouco tempo. Que, constatando o contrário, os alemães resolveram acolher os imigrantes e adoptaram uma perspectiva multikulti, num espírito leviano e contente de coexistência.
Não percebo muito do assunto, porque não sou pessoa para perceber muito dos assuntos mas, como muita gente da minha geração, sou um bocadinho cosmopolita e também um bocadinho modernaça, de maneira que me apetece dizer algo sobre isto.
Só ouvi o discurso de Angela Merkel hoje e devo dizer que as suas palavras não me chocam absolutamente nada. Parece-me, aliás, que a chanceler disse o que outros já disseram ou, pelo menos, queriam ter dito. O multiculturalismo é, na Europa, uma tendência imperiosa como as calças de ganga. Qualquer europeu que se preze tem vários pares de calças de ganga e é multicultural, ou seja, vai ao cinema ver filmes turcos, vai jantar ao indiano e ao vietnamita, tira cursos de cozinha marroquina e fala várias línguas.
A meu favor, digo o seguinte: como kebabs com frequência, dividi o apartamento com uma turca e com uma alemã durante um ano, estou a aprender a quarta língua estrangeira, trabalhei em quatro países europeus, vou de fim-de-semana com amigas búlgaras e eslovenas, jogo vólei numa equipa flamenga e casei com um português porque cheguei à conclusão evidente de que essa era a melhor nacionalidade do mundo. Estou, portanto, integradíssima neste meio multicultural, não tenho nada contra o diálogo intercultural. Adoro multiculturalismo e calças de ganga, desde que não me roubem a identidade.
Admito, no entanto, o seguinte: o multiculturalismo é, como tudo o que é moda, uma verdadeira fachada. Há muito que a Europa enfrenta problemas relacionados com a imigração. Isto é tão verdade que até soa a lugar-comum, desculpem lá. A perspectiva multikulti de tudo-ao-molho-e-fé-em-Deus-desde-que-não-seja-assim-muita-muita-fé não resulta. A Europa foi demasiado branda com os que cá chegaram. Aceitou-os, mas não exigiu ser aceite. Era demasiado cosmopolita e moderna para isso. Chegou a hora de repensar o multiculturalismo.
E quem se choca quando a Angela Merkel diz que os alemães se sentem ligados aos valores cristãos, recomponha-se. Não acredito em Deus, mas acredito na História e é isto que ela nos diz.
Não concordo com as medidas de Sarkozy, não me parece que resolvam o problema. Mas também me parece que não podemos olhar para os imigrantes como se fossem intocáveis. É preciso mexer nos imigrantes, integrá-los nos países que os acolhem. Sobre isto, uma palavra: educação. Já se disse demasiado sobre isso, não vou repetir o que foi dito.
Claro que Angela Merkel não tem a vida facilitada na Europa. Não só por ser mulher, mas sobretudo por ser alemã e discursar em alemão. Já se sabe que o mundo inteiro morre de medo quando alguém diz o que quer que seja em alemão. Esta é, quanto a mim, uma reacção normal. Não quero falar de judeus. Por uma vez, que não se fale em judeus, mas o trauma da Segunda Guerra Mundial está para ficar. Os judeus que morreram são imortais. Mas eu não quero falar nos 6 milhões de judeus que morreram na Segunda Guerra Mundial, porque senão também teria de falar nos 10 milhões de chineses e nos 24 milhões de soviéticos e, mesmo assim, só estaríamos a falar de metade das pessoas que perderam a vida nessa guerra. Não quero falar sobre isso. Prefiro falar sobre o multiculturalismo. Ainda que fique um pouco enfastiada depois.
Nada como um chá verde para ajudar.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pastilhas elásticas

Acabaram-se-me as pastilhas elásticas. Detesto quando isto acontece, sinto-me carente. Como se me faltasse o mimo ou o ânimo ou água ou coisa que o valha. Adoro pastilhas elásticas: entretêm-me a boca e ajudam-me a marcar o compasso das horas. Na falta de pastilhas elásticas, ponho-me a chuchar no dedo ou a tirar macaquinhos do nariz ou a roer as unhas, o que é extremamente deselegante. Há quem considere mais deselegante mascar pastilhas elásticas, principalmente quando a pessoa em causa faz barulho ou gira a boca como um animal ruminante. Não sei se faço barulho ou se giro a boca como um animal ruminante, nunca reparei. Gosto de fazer balões e de espalmar as pastilhas no céu-da-boca como se fossem massa ou plasticina. Costumo ter uns dois ou três pacotes de pastilhas no gabinete. Para variar de sabor. Na verdade, não são bem pacotes, mas sim caixotes de pastilhas. Este último caixote da Mentos, por exemplo, tinha quarenta e cinco "soft cubes". O caixote tinha a forma de um cubo e as pastilhas também. Gosto das pastilhas Mentos. Um caixotinho de pastilhas dá-me para imenso tempo, porque vou debicando de vários. No entanto, nestas últimas semanas distraí-me e agora acabaram-se-me as pastilhas de repente. Costumo comer entre uma e três pastilhas por dia. Felizmente tenho bons dentes. Pelo menos é o que diz o meu dentista, que tem ar de menino bom por causa da tez muito fina e do sorriso ebúrneo. O meu dentista seria incapaz de mentir. Até há bem pouco tempo só comia pastilhas de mentol. Não gostava do sabor das outras, tudo me parecia artificial e nenhuma pastilha me deixava na boca a mesma sensação de frescura. Gosto da sensação de frescura. Ao contrário do que possam estar a pensar, não masco pastilhas para lavar os dentes. Tenho o hábito de lavar os dentes várias vezes por dia, porque também gosto da sensação de frescura das pastas de dentes. Hoje em dia, como tudo o que é pastilha, gosto de variar. Alcancei uma certa maturidade no que diz respeito a pastilhas elásticas. Quando era miúda as minhas pastilhas preferidas eram as Gorila. Gostava do formato do paralelepípedo, do invólucro de papel, do som do papel a rasgar, da textura macia dos desenhos que vinham por dentro. Ficava com dores nos maxilares porque as pastilhas Gorila eram grandes e duras de roer. Mas não havia nada na vida como as pastilhas Gorila. Era um prazer ficar com dores nos maxilares. Depois vieram as pastilhas do gelado Epá. Era difícil dominar aquelas bolas enormes. Como todos os outros miúdos, comia o gelado Epá por causa da pastilha e não por causa do gelado. Tudo isto se passou depois da pré-primária. Lembro-me muitas vezes da pré-primária. Tinha quatro ou cinco anos, não mais. A minha melhor amiga chamava-se Diana, eu gostava muito da Diana. Andávamos de bata azul e de chapéu vermelho, lembro-me disso. Ríamo-nos muito, ainda me lembro das gargalhadas efusivas da Diana. A Diana tinha os dentes podres e muito tortos por causa da chucha, segundo consta. Certa vez enquanto esperávamos que as nossas mães nos viessem buscar à escola, pintámos os lábios com um batom vermelho e demos um beijo na boca. Éramos crianças como as outras, acho, e, como todas as outras crianças, não podíamos comer pastilhas elásticas. Eu e a Diana tínhamos uma frustração enorme por não podermos comer pastilhas elásticas. Falávamos disso, de como era injusto não podermos comer pastilhas elásticas. Até que uma de nós teve uma ideia fantástica, que era tão legítima como a de pintar os lábios de vermelho e dar um beijo na boca. Essa ideia consistia no seguinte: Por que não comer as pastilhas que os outros deitavam para o chão? Era uma ideia tão simples e, no entanto, genial. Ficámos tão entusiasmadas com a nossa descoberta que passávamos, provavelmente, horas à procura de pastilhas. Recuperávamos as pastilhas abandonadas no asfalto ou esmagadas nos bancos da escola, nas portas da casa de banho, nos ferros dos baloiços, nas balizas do campo de futebol, nas mesas do refeitório. Havia pastilhas elásticas por todo o lado, era uma excitação. Guardávamos as pastilhas nos bolsos das batas, não contávamos a ninguém. Como éramos extremamente limpas, lavávamos as pastilhas antes de as metermos à boca. Algumas dessas pastilhas vinham em forma de bola, outras vinham muito prensadas. Umas eram duras, outras rugosas por trazerem pedrinhas ou areia dentro. Havia pastilhas amarelas, verdes, cor-de-rosa, brancas, azúis. Mascávamos as pastilhas pacientemente. Trocávamos sorrisos misteriosos enquanto o fazíamos, não dizíamos nada. Depois, quando a massa ficava mole, engolíamos as pastilhas recuperadas. Tínhamos quatro ou cinco anos, não mais. Nessa altura já sabíamos que aquelas pastilhas elásticas vinham de outras bocas, mas isso não nos chocava. Lembro-me tantas vezes disto.
Não sei o que é feito da Diana.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Comer, orar, amar

Vejamos: Não ando propriamente a correr atrás de bestsellers, mas não tenho nada contra eles. Li O Código Da Vinci com enorme interesse e gostei muito d'A Sombra do Vento. Ando a ler The Girl with the Dragon Tattoo e no ano passado cheguei ao cúmulo de ler os dois primeiros livros vampirescos da Stephanie Meyer, portanto é como digo: Não tenho nada contra bestsellers.
Confesso, no entanto, que livros com tipos de letra frufru e subtítulos do género "A divertida aventura de uma mulher à descoberta de si mesma" provocam em mim uma alergia gravíssima. É de uma rareza estapafúrdia, bem sei, mas quando vejo um livro assim fico logo cheia de borbulhas e incha-se-me a garganta de tal maneira que nem consigo respirar.
Até há coisa de meia hora, o livro Comer, orar, amar inscrevia-se nesse género de livros perigosos e a evitar. A história de uma mulher que se casa aos 25 anos, se divorcia uns anos mais tarde, manda tudo às urtigas e vai viajar pelo mundo durante um ano só não me dá sono por causa da comichão que provoca em mim e eu não consigo parar de me coçar quando tenho comichão. Isto vindo de alguém que se casou aos 25 anos e só ainda não se divorciou porque ainda não ingressou, claramente, numa divertida aventura à procura de si mesma.
Ando pelos cabelos com a mulher moderna e com a sua revelia histérica de emancipação depois da emancipação. A mulher moderna não serve para nada: não quer casamento nem estabilidade nem filhos, anda por aí à procura de si mesma, comendo, orando, amando, não há paciência. A mulher moderna não interessa ao Menino Jesus.
Há coisa de meia hora, o livro Comer, orar, amar simbolizava para mim todos esses lugares-comuns de mulheres que se descobrem na Índia e fazem ioga para se sentirem íntegras. Mesmo assim, até não me importaria de ver o filme por causa do Javier Bardem e da Julia Roberts, mas mais por causa do Javier Bardem do que da Julia Roberts (mais depressa me descobria no Javier Bardem do que na Índia).
Ora, há coisa de meia hora, estava muito bem a ler o jornal, quando me deparei com uma fotografia de Elizabeth Gilbert, a autora do livro. Era (achava eu) a primeira vez que pousava os olhos no rosto de Elizabeth Gilbert, porque, por mais que tenha ouvido falar do bestseller e da senhora, nunca tinha tido a curiosidade (pelas razões acima expostas) de ver o rosto de Elizabeth Gilbert. No entanto, assim que os seus olhos aguados entraram pelos meus olhos dentro, reconheci-a imediatamente. Bastou-me uma pesquisa de cinco segundos para reencontrar este seu discurso de dezanove minutos sobre criatividade (legendas disponíveis).
Foi a Nocas que me enviou este filme no ano passado e eu nunca mais me esqueci deste discurso nem da mulher atrás do discurso: uma mulher que não quer ser mais nada senão uma mulher de quarenta anos com os seus medos, frustrações, ambições e expectativas.
Quando me apercebi de que esta mulher do discurso e a senhora do livro com tipos de letra frufru e subtítulos do género "A divertida aventura de uma mulher à descoberta de si mesma" eram uma só, disse em alto e bom som: "Alto lá."
Andei na Internet a ler entrevistas a Elizabeth Gilbert e descobri que tenho mais a ver com esta americana loira que escreve sobre mulheres à procura de si mesmas do que com muito boa gente com quem saio à noite.
Decidi imediatamente ler o livro. Não que o vá ler já de seguida, porque também não tenho pressa, mas vou ler, sim. Para descobrir a autora e a mulher que há em Elizabeth Gilbert.
Passou-me a alergia.
Acho.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Mario Vargas Llosa

É a primeira vez que conheço o autor que recebe o Prémio Nobel da Literatura.
Li a notícia e fiquei surpreendida por conhecer o nome, os títulos, as personagens. Nunca me tinha acontecido antes. Sinto-me sempre uma ignorante quando leio o nome dos laureados.
No ano passado, quando vi as trombas da Herta Müller, assustei-me. Nunca tinha visto tal ave rara: lábios demasiado rubros, um cabelo que acabava logo depois das orelhas, uns olhos de bruxa má, uma miscelânea esquisita, entre o romeno e o alemão. Tive medo de Herta Müller. Mesmo assim, fui a correr à Fnac comprar o Atemschaukel para fingir que leio em alemão e também porque senti uma obrigação de ler o raio do livro, uma vez que estudei literatura alemã e vivi na Alemanha dois anos. Depois de ler o livro, continuei cheia de medo de Herta Müller e não me parece que vá ler mais livros desta senhora.
Em 1998, quando José Saramago recebeu os milhares de coroas suecas, só lhe conheci o nome por partilharmos a nacionalidade e não propriamente por ter lido A Jangada de Pedra ou a História do Cerco de Lisboa. Era então uma adolescente e interessavam-me títulos mais provincianos como Vai aonde te leva o Coração e Como Água para Chocolate. Antes disso, então, nem sequer era gente quando foi a vez de Gabriel García Márquez e li O Estrangeiro uns sessenta anos depois de o Albert Camus o ter escrito.
Descobri Mario Vargas Llosa quase sem querer.
No final de 2009, eu e o homem ilimitado decidimos ir ao Peru, mas acabámos por não ir ao Peru porque em Janeiro deste ano encerraram o Machu Picchu por causa das cheias. Na altura disse um palavrão, vários palavrões e, para me vingar da Natureza Mãe, decidi ir na mesma ao Peru, mas através da literatura.
Escolhi Mario Vargas Llosa, porque, a bem dizer, não conhecia outro autor peruano e até me dava jeito ler Mario Vargas Llosa, dado que a mãe tinha oferecido ao homem ilimitado A Conversa n'a Catedral e a Tia Carmito me tinha emprestado as Travessuras da Menina Má. Li os dois livros de enfiada e logo a seguir comprei A Casa Verde. Ainda não li A Casa Verde, mas vou ler.
De maneira que, quando li o nome Mario Vargas Llosa, reconheci um bocadinho do homem, do autor, da sua obra. Fiquei contente por Mario Vargas Llosa ter recebido o Nobel. Gosto dele, das suas personangens, da sua escrita desenvolta. Gosto, especialmente, da sua pinta de mulherengo latino-americano, da sua rebeldia contra os outros e contra si próprio.
Confesso que simpatizo com Mario Vargas Llosa também pelo facto de ele ter dado uma pêra valente no Gabriel García Márquez. Não é qualquer um que dá uma pêra valente no Gabriel García Márquez. É preciso ter sangue na guelra para dar uma pêra no Gabriel García Márquez. Gosto de homens com sangue na guelra. Principalmente se, além de mulherengos, forem escritores.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Tipo da unidade de tradução inglesa

Há aqui um tipo na unidade de tradução inglesa que é parecido com o valter hugo mãe. Não, não é parecido com o valter hugo mãe, mas tem o mesmo ar direitinho, uma calvície precoce como o Outono em Bruxelas, uns óculos de massa em cima de sobrancelhas espessas, que são duas centopeias à espera de larvas, uma testa enorme, de alguém que pensa sobre o sentido da vida e lê livros complicadíssimos. Nunca falei com o tipo da unidade de tradução inglesa, mas encontro-o muitas vezes nos corredores e na cafetaria. Nunca lhe digo bom dia nem boa tarde, não sei bem porquê. O tipo da unidade de tradução inglesa não é propriamente simpático, também não diz bom dia nem boa tarde. Ri-se pouco. Ora, hoje encontrei o tipo da unidade de tradução inglesa no elevador. Vinha com um cachecol pendurado no braço e com uns auscultadores nos ouvidos. Nenhum de nós disse nada durante a viagem. No entanto, tive vontade de dizer qualquer coisa, de fazer uma pergunta. Gostaria de saber, por exemplo, que música ouve o tipo da unidade de tradução inglesa. De que quadros gosta. Que livros lê. Gostaria também de dizer ao tipo da unidade de tradução inglesa que li a máquina de fazer espanhóis em três tempos e que eu não costumo ler livros em três tempos, que sou uma leitora muito vagarosa. Gostaria de dizer ao tipo da unidade de tradução inglesa que o valter hugo mãe não é um homem velho mas que podia muito bem ser um homem velho. Por causa da calvície precoce. E da sua escrita de gente velha. Como é possível um homem novo ser um homem tão velho?
Agrada-me a ideia de que há alguém parecido com o valter hugo mãe no meu local de trabalho. Gosto imenso de trabalhar num edifício, onde vejo de vez em quando uma pessoa parecida com o valter hugo mãe. O dia parece-me logo outro.
De resto, estou-me verdadeiramente nas tintas para o tipo da unidade de tradução inglesa.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

As coisas crescem sem fazer barulho.

Deitou-se agora mesmo no sofá. Desdobrou a mantinha preta que estava muito bem dobrada no outro lado do sofá. E cobre-se. Não conseguimos ver a sala inteira daqui, só um pedaço de sala. Primeiro a janela. Depois as plantas.
Dois caules de orquídeas sem orquídeas.
Vasos de várias cores. Molduras ao contrário. Não sabemos o que mostram. Uma escrivaninha do lado esquerdo da sala, um ecrã de computador que parece outra janela por ser tão grande. O sofá à direita. A rapariga está deitada, mas não dorme. Uma mesinha quadrada e branca, talvez do IKEA, provavelmente do IKEA. Envelopes, revistas, cartas, postais, comandos, jornais, canetas, tantas coisas em cima da mesinha quadrada e branca. A rapariga tem um livro na mão, não tínhamos dado por isso. Está a ler. Estica neste preciso momento os braços para cima, não parece estar uma posição confortável.
O livro pesa sobre ela como uma rocha. É um livro robusto. A rapariga está a meio do livro.
Atrás do sofá, uma mesa de jantar sem centro de mesa, quatro cadeiras arrumadíssimas, um candeeiro por cima, quadros coloridos nas paredes. Um desenho abstracto com formas geométricas, uma menina com os pés muitos juntos e as mãos muito juntas, outros quadros imperceptíveis. É o que vemos através da janela.
A trepadeira do parapeito está cada vez maior. Há poucas semanas tinha só uma perninha, agora já tem várias.
As coisas crescem sem fazer barulho. É o que se pode concluir.
Estamos neste silêncio e as plantas crescem, o dia cresce, a rapariga cresce e o livro é cada vez mais pesado, cada vez maior.
Dois caules de orquídeas sem orquídeas. Há tanto tempo sem orquídeas. Um projecto de orquídeas dentro do vaso à janela. E, no entanto, este silêncio. Talvez um relógio de parede a contar os segundos, talvez o computador cogitando, mas nada mais.
Tantas cores na sala. Cortinas amarelas. Almofadas com flores, almofadas com riscas, um tapete vermelho. Porquê uma manta preta? Por que se cobre a rapariga com uma manta preta? Uma rapariga sempre tão calada, crescendo em silêncio, cada vez maior.
O livro enorme, cada vez pesado, igual a uma rocha.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Victor

Para a Tanya, o Vladi e o Victor.

Ainda não conhecemos o Victor, mas imaginamo-lo moreno e brando como certas tardes de Outono, os dentes alinhados num sorriso bom.
Ainda não conhecemos o Victor, porque o Victor ainda não nasceu.
O Victor vai nascer daqui a pouco, hoje mesmo, pelas 18 horas, mais coisa menos coisa.
(No final do texto, é provável que já tenha nascido.)
Ninguém conhece o rosto do Victor, nem mesmo os pais, porque o Victor esteve sempre escondido no ventre da mãe, a olhar para as suas mãos.
Gostaríamos que o Victor tivesse nascido ontem, não por ter sido domingo, mas por ter sido o nosso dia de anos. Seria uma coincidência feliz e teríamos algo em comum com o Victor. No entanto, o Victor não quis nascer no domingo.
O Victor não mostra o rosto a ninguém. O Victor não deu a cambalhota quando devia. Quando a mãe come doces, o Victor dá pontapés.
O Victor quis nascer na segunda-feira, embora não possamos dizer com toda a certeza que o Victor tenha nascido na segunda-feira, porque o Victor ainda não nasceu.
A mãe do Victor, que é morena e branda como certas tardes de Outono, não gostava de chocolate antes de o Victor existir.
O Victor mudou o mundo antes mesmo de nascer.
Imaginamo-lo moreno e brando como certas tardes de Outono, os dentes alinhados num sorriso bom, as mãos nos bolsos, encostado ao muro da escola a fazer promessas de amor em búlgaro, uma língua de sons secretos, de alfabeto secreto, inatingível.
O Victor ainda não nasceu, mas já existe há muito tempo.
Simpatizamos com o Victor.
Porque gosta de chocolate. Porque não deu a cambalhota quando devia. Porque mudou o mundo antes de nascer. Porque decidiu nascer no dia 9 do 8 do 10. O Victor deve ter jeito para números.
O Victor tem uma personalidade forte. Gostamos de pessoas assim.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Funções alternativas para objectos que cumprem uma só função: A borracha Pelikan

Para se distrair, o senhor Barata pensava em funções alternativas para objectos que cumprissem uma só função.
Hoje, por exemplo, escolheu para objecto da sua reflexão a borracha Pelikan que estava mesmo à sua esquerda, em cima da escrivaninha.
A borracha Pelikan cumpria a única função de apagar traços de lápis. (Algumas borrachas também apagavam traços de caneta, mas este não era o caso daquela borracha Pelikan.) Para se distrair, o senhor Barata pegou no paralelepípedo branco e magicou funções alternativas para ele.
A primeira função alternativa que o senhor Barata arranjou para a sua borracha Pelikan foi a de amuleto. Com efeito, era muito melhor apertar uma borracha na mão do que amuletos de madeira ou de porcelana ou de osso, porque a borracha Pelikan tinha uma consistência elástica que era agradável ao toque. O senhor Barata olhou para o seu paralelepípedo branco e acreditou, de imediato, que ele o protegeria do mal e o ajudaria nos momentos decisivos. O facto de a função real da borracha Pelikan ser apagar traços conferia a este amuleto de látex uma conotação figurativa que os outros amuletos não tinham.
A segunda função alternativa que o senhor Barata arranjou para a sua borracha Pelikan foi a de pedra. Era, efectivamente, muito mais amigável atirar uma borracha a um colega do que uma pedra, além de que a probabilidade de o colega sair lesado era mínima. Se as pessoas fossem apedrejadas na praça pública com borrachas e não com pedras, aprenderiam, certamente, a lição e não teriam de morrer. O senhor Barata decidiu que, se alguma vez precisasse de atirar uma pedra, atiraria a sua borracha Pelikan.
A terceira função alternativa que o senhor Barata arranjou para a sua borracha Pelikan foi a de vítima de maus-tratos. Era muito mais sensato descarregar as energias negativas na borracha Pelikan do que nos estagiários ou na mulher. Além disso, o senhor Barata podia maltratar a borracha Pelikan de maneiras extremamente mórbidas, a que jamais poderia recorrer quando maltratava os estagiários ou a mulher, com o acréscimo de que essas práticas não eram puníveis. A borracha Pelikan podia ser, por exemplo, esventrada com a ponta de um clipe ou esquartejada com o x-acto ou simplesmente dilacerada com os dentes.
O senhor Barata riu-se. Tinha agora mais confiança na humanidade em geral e na sua vida em particular.
Graças à borracha Pelikan.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A vingança da mulher na casa dos vinte

Uma mulher na casa dos vinte chegou à conclusão de que o mundo se virou contra ela pelo simples facto de as nuvens, que ainda há pouco eram impossivelmente brancas como nos quadros de Magritte, serem agora cinzentas como os velhos. O facto de as nuvens serem agora cinzentas como os velhos estragava o dia à mulher na casa dos vinte. E isto por diversas razões:
Primeira razão: a mulher na casa dos vinte estava de bicicleta.
Segunda razão: a mulher na casa dos vinte estava a caminho de uma sessão de ginástica ao ar livre.
Terceira razão: a mulher na casa dos vinte não tinha trazido um casaco.
Ora, na cabeça da mulher na casa dos vinte, a qual trazia um capacete redondo como o mundo injusto, o mundo só podia ter-se virado contra ela.
Na cabeça das mulheres na casa dos vinte, o mundo é, tal como elas, uma mulher na casa dos vinte e vira-se, tal como elas, contra as outras mulheres.
(As mulheres na casa dos vinte passam o tempo a ver o seu reflexo nas coisas e nos outros: o mundo inteiro é uma reprodução do seu corpo e da sua cabeça redonda como o mundo injusto.)
A mulher na casa dos vinte decidiu que, para se vingar do mundo injusto e redondo como o seu capacete, ia sentar-se em frente à televisão e ver, de seguida, todos os episódios da quarta temporada das Donas de Casa Desesperadas.
(As Donas de Casa Desesperadas são uma série interessantíssima, precisamente porque as protagonistas são mulheres na casa dos quarenta e não mulheres na casa dos vinte.)
A mulher na casa dos vinte pensava em tudo isto (no mundo que se virou contra ela, nas nuvens cinzentas como os velhos, nas Donas de Casa Desesperadas, nas mulheres na casa dos quarenta, no seu casaco e na sessão de ginástica ao ar livre) enquanto pedalava a caminho da sua televisão, a cabeça enfiada dentro do capacete redondo como o mundo injusto.
De repente, sentia-se francamente mais animada.
Não com a perspectiva de ver, ainda hoje, todos os episódios da quarta temporada das Donas de Casa Desesperadas. Mas com a perspectiva de se tornar uma pessoa mais interessante com a idade.
As mulheres na casa dos vinte são impossíveis como os quadros de Magritte. E ainda mais enfadonhas do que as nuvens desta cidade, as quais são cinzentas (como os velhos) e injustas (como o mundo).

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Da Sinonímia

A Sinonímia era uma menina alegre, o que não quer dizer que fosse feliz ou afortunada. Na verdade, tivera uma infância triste, e não propriamente uma infância dura ou fúnebre. A Sinonímia sorria muito porque era nervosa, o que não quer dizer que fosse agitada ou enérgica. Por causa disso ou apesar disso, a Sinonímia comia muito, o que não queria dizer que dilacerasse a comida ou desfrutasse dela. A Sinonímia era feia, o que não quer dizer que fosse repugnante, era só feia. Usava um par de óculos monumental e não sumptuoso ou magnífico. A Sinonímia não era boa aluna, o que não quer dizer que fosse má. Era uma menina muito preguiçosa, o que não significa que fosse lenta ou frouxa, pelo contrário: era veloz e activa. A Sinonímia aprendeu a tocar piano, o que não quer dizer que compreendesse alguma coisa de música. A Sinonímia não fazia propriamente amigos, o que não quer dizer que a Sinonímia não fosse uma pessoa amigável. No entanto, era uma pessoa apoucada, o que não significa que fosse estúpida. Falava muito, o que não quer dizer que conversasse. Tendia a ser uma pessoa compreensiva, o que não quer dizer que fosse inteligente. A Sinonímia era, como todas as outras pessoas, única.
O que não quer dizer que fosse excepcional ou incomparável. Pelo contrário.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Olha, este blogue morreu. - Parte II

...

Leitor 2 – Mas as pessoas podiam deixar de cá vir e pronto.
Leitor 1 – Pois podiam.
Leitor 2 – Aliás, nem percebo como é que continuam a vir, se não se passa nada aqui.
Leitor 1 – Pois, mas já sabes como são os leitores... Afeiçoam-se!
Leitor 2 – Ao blogue?
Leitor 1 – Não, ao sapo.
Leitor 2 – Os leitores afeiçoaram-se ao sapo?
Leitor 1 – Claro. Só ele é que mantém este blogue a mexer.
Leitor 2 – Bem, nesse caso, o sapo deve estar todo contente.
Leitor 1 – Pois deve. Toda a gente o mima.
Leitor 2 – Está mais gordo que eu sei lá.
Leitor 1 – Pois está.
Leitor 2 – A morte de uns é a fartura de outros.
Leitor 1 – Credo! Isso é algum ditado?
Leitor 2 – Não, acho que não.
Leitor 1 – Achas que o sapo está contente com a morte do blogue?
Leitor 2 – Então, não se vê logo?!
Leitor 1 – Opá! Tu queres ver que foi o sapo que matou o blogue?
Leitor 2 – Olha, se calhar foi.
Leitor 1 – Achas?!
Leitor 2 – Acho. Os sapos são do piorio.
Leitor 1 – Mas este sapo é um príncipe!
Leitor 2 – É?
Leitor 1 – É. Está lá escrito. É um príncipe encantado.
Leitor 2 – Então ainda pior. Os monarcas são completamente doidos.
Leitor 1 – Mas que motivo teria o príncipe encantado para matar o blogue?
Leitor 2 – Não sei. Se calhar queria a atenção dos leitores.
Leitor 1 – Ou se calhar estava deprimido.
Leitor 2 – Se calhar.
Leitor 1 – Ou então com fome.
Leitor 2 – Pois. Queres ver que o sapo comeu o blogue?
Leitor 1 – Olha, é bem possível.
Leitor 2 – Pois é...
Leitor 1 – ...
Leitor 2 – Cabrão do sapo.
Leitor 1 – Podes crer.
Leitor 2 – Então, e agora?
Leitor 1 – Agora o quê?
Leitor 2 – Temos de fazer alguma coisa!
Leitor 1 – Pois temos.
Leitor 2 – Mas o quê?
Leitor 1 – Olha, eu vou continuar a dar de comida ao sapo.
Leitor 2 – O quê?! Mas o sapo comeu o blogue.
Leitor 1 – Pois comeu. Estava com fome, coitadinho! Temos de alimentar o sapo.
Leitor 2 – Não! Nós devíamos era matar o sapo!
Leitor 1 – Matar o sapo?! Porquê?!
Leitor 2 – Porque comeu o blogue.
Leitor 1 – Bolas, também não é preciso matar o sapo por causa disso.
Leitor 2 – Achas que não?
Leitor 1 – Claro que não! Coitadinho do sapo.
Leitor 2 – Então, e não tens pena do blogue?
Leitor 1 – Eu não! Que raio de blogue se deixa comer por um sapo?!
Leitor 2 – Sim, tens razão.
Leitor 1 – Era, no mínimo, um blogue fraquinho.
Leitor 2 – Pois era.
Leitor 1 – E, além disso, não dava de comer ao sapo.
Leitor 2 – Pois não.
Leitor 1 – ...
Leitor 2 – Cabrão do blogue.
Leitor 1 – Podes crer.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Olha, este blogue morreu. - Parte I

Leitor 1 – Olha, este blogue morreu.
Leitor 2 – O quê? Não me digas isso.
Leitor 1 – Ai, digo, digo.
Leitor 2 – A sério? Mas eu não dei por nada.
Leitor 1 – Não deste por nada?!
Leitor 2 - Não, não dei por nada. Achava que ele até estava com boa cara.
Leitor 1 – Como assim, com boa cara?!
Leitor 2 – Opá, com boa cara! Na última vez que o vi continuava com uma corzita saudável e até dizia umas coisinhas.
Leitor 1 – Até dizia umas coisinhas?! Há dois meses e um dia que este blogue não diz absolutamente nada.
Leitor 2 – A sério?! Não reparei…
Leitor 1 – Como é possível ver um blogue e não reparar que o tipo está morto?!
Leitor 2 – Opá, nesse dia estava cheio de pressa. Passei por ele, vi-o assim com os olhos muito abertos e parti do princípio de que estava vivo e de boa saúde. Mas afinal estava morto, coitado.
Leitor 1 - Pois estava.
Leitor 2 - Os peixes, quando morrem, também ficam assim, com os olhos escancarados.
Leitor 1 – E cheiram mal como tudo.
Leitor 2 - Quem? Os peixes?
Leitor 1 - Não, os blogues.
Leitor 2 - A sério? Mas o blogue não me cheirou mal.
Leitor 1 - Se calhar, não te aproximaste muito.
Leitor 2 – Pois não. Por acaso, até reparei que ele estava assim murxito, mas achei que podia estar só deprimido.
Leitor 1 – Pois podia.
Leitor 2 – Então, se calhar até estava.
Leitor 1 – Se calhar.
Leitor 2 – Nesse caso, pode não estar morto.
Leitor 1 - Pois, pode não estar morto. Mas também não está vivo.
Leitor 2 - Mas repara que o sapo aqui em baixo ainda mexe.
Leitor 1 – Mas isso é porque as pessoas lhe dão de comer.
Leitor 2 – A sério?!
Leitor 1 – Claro! Tu não dás de comer ao sapo?!
Leitor 2 – Eu não. Nem sabia que se podia dar de comer ao sapo.
Leitor 1 – Podes, claro. Vais lá com o rato, clicas e depois há assim uns mosquitos a voar que o sapo come.
Leitor 2 – E ele come mesmo?!
Leitor 1 – Come, pois. Lança uma língua super rápida.
Leitor 2 – A sério?!
Leitor 1 – A sério.
Leitor 2 – Que giro! Nunca tinha reparado. Então, os leitores vêm cá dar de comer ao sapo?
Leitor 1 – Vêm, claro. Não se faz mais nada neste blogue há dois meses e um dia.

(continua)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

A rua segundo o cão do vizinho polaco

Não sei como é nas outras ruas, mas na minha rua vivem mais pessoas do que cães. Ando mais na minha rua do que nas outras. Quando fico pela minha rua, não tenho de usar trela. Quando ando noutras ruas, tenho. Gosto mais de andar sem trela, por isso gosto mais de ficar na minha rua do que andar nas outras ruas. Gosto mais de cães do que de pessoas, por isso tenho pena que haja mais pessoas do que cães na minha rua. Vou à rua três vezes por dia. Gosto muito de ir à rua. Outros cães vão à rua mais vezes por dia, mas a maioria vai à rua duas vezes. Há outros cães que só vão uma vez. Por isso, não me queixo. O meu dono vai à rua mais vezes do que eu. Algumas vezes sai com a minha dona de carro, mas normalmente sai sozinho e desce a rua a pé. Não sei para onde vai. Saio três vezes com o meu dono. É raro sair com a minha dona. Só saio com a minha dona, quando o meu dono não está. O meu dono não é daqui, é de outro sítio. A minha dona é daqui. Eu também sou daqui, acho. Os meus donos têm filhos. As pessoas têm mais filhos do que os cães, parece-me. Também têm mais filhos do que cães. O meu dono não me deixa parar na rua para falar com outros cães. Também não me deixa cheirá-los nem lambê-los. No entanto, pára muitas vezes para falar com outras pessoas, mas não as cheira nem as lambe. Não sei porquê. Também não sei por que não me deixa falar com os outros cães. Os meus dias preferidos são as segundas-feiras e as quintas-feiras, porque às segundas-feiras e às quintas-feiras as pessoas põem os sacos do lixo na rua e há muitos cheiros misteriosos no ar. O meu dono deixa-me olhar para os sacos e cheirá-los, mas não me deixa abri-los. Gostava de poder abrir os sacos do lixo e provar todas as coisas misteriosas que vivem dentro deles. Os sacos têm três cores: branco, azul e amarelo. Os sacos brancos guardam mais cheiros do que os sacos amarelos e azuis. Normalmente os sacos amarelos trazem jornais e caixas de cartão. Os sacos azuis trazem muitas embalagens de muitos formatos e feitios. Não percebo a razão de ser destes sacos nem por que motivo os não posso abrir. Os sacos desaparecem às terças-feiras e às sextas-feiras de manhã. Por vezes, eu e o meu dono encontramos o enorme camião do lixo no nosso passeio matinal. Há duas pessoas que vêm agarradas à traseira do camião. São elas que recolhem o lixo. Essas pessoas e o camião fazem muito barulho. Não gosto do camião do lixo nem das pessoas do lixo, tenho medo deles. No geral, também tenho medo dos carros, mas só quando os vejo de fora. Não tenho medo de andar de carro, até gosto de ver as outras ruas através da janela, as outras pessoas, os outros cães. Por vezes também vejo gatos às janelas das casas, mas não na minha rua. Gosto quando o meu dono abre a janela do carro e me deixa morder o ar. Gosto de correr pelas escadas do prédio. O meu dono nunca é tão rápido como eu a subir as escadas nem a descê-las. Gosto de comer. Tenho uma caixa para a comida e outra para a água. Também tenho uma cama e muitos brinquedos. O meu brinquedo preferido é uma bola que faz barulho quando a mordo. Gosto do meu dono e da minha dona. Também gosto da minha rua. Principalmente às segundas-feiras e às quintas-feiras. Sonho muitas vezes com os sacos do lixo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ana Bacalhau



Simpatizaríamos com a Ana Bacalhau, se ela, por exemplo, não cantasse. Se não tivesse uma voz arremessada e não irrompesse pelas casas e pelos ouvidos, chamando por nós. Se não fosse tão circular nem consolada como as coisas verdadeiramente completas. No fundo e à superfície, simpatizaríamos com a Ana Bacalhau, se ela fosse outra pessoa: por exemplo, uma mulher taciturna como um cemitério ou uma criança com necessidades especiais. Uma coitadinha, por exemplo. Ou então uma mulher voluntariosa que ajudasse os coitadinhos. Mas, agora e objectivamente, vendo e ouvindo a pessoa que Ana Bacalhau aparenta ser, não. Não simpatizamos com a Ana Bacalhau, nem com a sua voz esmerada. Estamos em crer que a voz da Ana Bacalhau é um verdadeiro insulto a todas as vozes de todas as outras mulheres e tememos por elas, por nós e pelos respectivos maridos, pelas respectivas casas. Depois da Ana Bacalhau, nada mais soa como dantes e as vozes que outrora eram belas são agora grasnos, guinchos e uivos. Por esta razão, rogamos muitas pragas à Ana Bacalhau e ao tom pérfido e inteligente da sua voz, atiramos-lhe pedras enraivecidas dentro das nossas cabeças e desejamos secretamente que um dia, ao partir na sua longa viagem para Ítaca ou para a Índia ou para o Brasil, caia borda fora da caravela ou do iate ou do veleiro e se transforme em sereia por efeito de uma estranha e momentânea reacção alérgica a cloreto de sódio e seja acolhida por Neptuno e este a leve para a Ilha dos Amores, onde a mulher-agora-sereia se veja obrigada a prostituir o corpo, a alma, o muco e a voz por muitos anos. Desejamos também que, por inveja do seu canto ardiloso, as outras ninfas a matem durante o sono, que atirem o seu corpo ao mar e que Hades a receba no reino dos mortos, lhe arranque a voz e as tripas e a envie muda e compungida de regresso à vida, qual pequena sereia repetida, mas muito mais ridícula, muito mais feia, muito mais burra. Desejamos também que Zeus apague a memória dos homens e estes se esqueçam daquele canto da Ilha dos Amores que todos amaram nos sonhos mas nunca sonharam escutar, que a Ana Bacalhau viva calada e contristada uma longa vida sem música nem sentimento, cheia de dores nas costas e nos dentes, lavrando a terra e comendo batatas cozidas. Desejamos tudo isto enquanto ouvimos religiosamente os Deolinda. Enquanto as casas saem de si próprias para a rua, alvoroçadas. Todos andam apaixonados pela Ana Bacalhau, pela sua voz imaginada que todos continuarão a amar depois do tempo. Todos, menos nós.
Que caia borda fora e regresse feia e caladinha. Para bem dos homens, das mulheres e das nossas casas.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A casa (VII)

Nunca tinha estado tanto tempo longe de casa, por isso, quando abriu a porta, surpreendeu-a o odor intenso da noite imposta, o som real e aturado do tempo nas paredes e nos tecidos da sala, como se a ausência fosse um corpo que ocupasse o seu próprio espaço, alimentando-se de si própria, do pó do parapeito, das madeiras mais-que-perfeitas. Correu os cortinados e o corpo do tempo ergueu-se das coisas, prolongou-se exponencial pela casa. Abriu as janelas da sala, as três janelas da sala. O corpo do tempo era feito de pequeníssimas partículas que emitiam luz como estrelas minúsculas. Essas estrelas morriam no primeiro contacto com o chão ou com o tecto ou com as mãos que estendíamos para elas. O corpo do tempo era frágil. Abriu as portas e as janelas dos quartos. Os seus passos eram estranhos à casa, pesavam sobre ela como relógios de cuco. As paredes espreguiçavam-se, contrariadas. Regressava às coisas com as mãos. Aos braços de napa do sofá, ao ferro forjado do porta-revistas, às rugas da tapeçaria, às arestas da casa dos livros, aos armários ocos da cozinha, à imagem reflectida no espelho, ao colo profundo do quarto, às mãos frias do azulejo. Tocava nos objectos com a ponta dos dedos, dedilhando-os, como se deles saíssem música. Nunca tinha estado tanto tempo longe da casa. Tão longe do tempo e de casa.
Sentou-se na cadeira de baloiço.
E baloiçou-se. Vagarosa. Absorta.
À espera que a casa voltasse.

sexta-feira, 19 de março de 2010

As cartas do pai parecem pautas de música

Para o melhor pai de todos.

O meu pai escreve-me cartas. São feitas de papel de verdade e vêm impecavelmente dobradas ao meio, como mapas de tesouros. As cartas do pai vêm dentro de envelopes de verdade que exibem selos de verdade e chegam às minhas mãos a meio da semana, misturadas com recortes de jornal. Rasgamos o envelope com os dedos ou então com os dentes ou então com uma tesoura ou com a ponta de uma caneta. Rasgamos o envelope de qualquer maneira. Lemos as cartas do pai antes de vermos as capas das revistas ou dos jornais que nos envia. Lemos as cartas do pai antes de tudo o resto. As cartas do pai demoram quatro páginas, as quais demoram todo o tempo do mundo. Cada página demora muitas letras. Cada letra é longa como uma semibreve. As cartas do pai parecem pautas de música, porque as letras são altas e delgadas como claves de sol e caminham ordeiras pelas páginas alvacentas. As cartas do pai parecem pautas de música, também porque têm o ritmo e o som de canções conhecidas. Contam-nos a história das horas e das pessoas, dos centros comerciais, da cidade de Lisboa, do fim-de-semana passado, do próximo fim-de-semana, das actividades da Dona Lina e da Dona Amélia, das peripécias do Dom Rodrigo, dos horários do filho que entretanto se fez pai. A letra do pai é atilada e traz adornos suaves nas pontas e nos acentos. Com as cartas do pai chegam outras histórias: recortes do Expresso, da Visão, da Revista Única, do Público, que são receitas de cozinha, entrevistas, faits divers de Hollywood, crónicas da Clara Ferreira Alves, reportagens sobre lugares desconhecidos no mundo. Não sabemos quanto tempo o pai se demora na escrita e nos seus recortes, quanto tempo se demora nos correios. Também não sabemos quanto tempo nos demoramos na leitura. Provavelmente todo o tempo do mundo, que é quanto demoram as quatro páginas. As cartas do pai viverão certamente mais tempo do que nós e, por isso, escondemo-las numa caixa que escondemos, por sua vez, na casinha dos livros. Faríamos o mesmo a outros mapas de tesouros. Nem sempre leio todos os artigos que o pai me envia, porque me falta o tempo ou o espaço ou outra dimensão qualquer. Também não respondo às cartas do pai. Provavelmente pelas mesmas razões. O pai escreve na mesma. Gostaria de ser melhor filha para merecer o melhor pai de todos, cujas cartas parecem pautas de músicas.

terça-feira, 16 de março de 2010

Conto infantil para adultos: Aladino e a lâmpada mágica

O senhor Aladino tinha sete ofícios. O seu primeiro ofício era ser marido. O segundo ofício era ser pai de três filhos. O terceiro ofício era dar aulas de história numa escola secundária. O quarto ofício era realizar projectos de reabilitação do património com o grupo de arqueologia da junta de freguesia. O quinto ofício era tocar cavaquinho no rancho folclórico. O sexto ofício era ser chefe de um clube do ambiente. O sétimo ofício era jogar Sudoku. No entanto, o senhor Aladino andava enfastiado, porque não tinha tempo para mais nada se não para os seus sete ofícios, que preenchiam a forma e o conteúdo dos dias, mas não a forma e o conteúdo da alma. O senhor Aladino tinha outros desejos. Por exemplo, atravessar o mundo num barco à vela e aprender a dançar o tango. Ora, certo dia, enquanto andava a exercer o seu quarto ofício no Castelo de Alcoutim, o senhor Aladino deu com uma candeia indiana muito misteriosa, porque tinha um corpo ligeiramente achatado e um pescoço muito comprido. Interessou-se, antes de mais, pela luz cintilante que o bronze espelhava, por isso acariciou a lâmpada, a qual se acendeu subitamente, pois tornou-se muito quente e da sua boca emergia agora uma nuvem opaca que foi ganhando a forma de homem. Esse homem era azul, mas em nada se assemelhava aos indígenas daquele filme chamado Avatar, porque não tinha um corpo atilado nem um rosto felino. Era obeso e azul. Esse homem tratou-o por mestre e apresentou-se como génio. Informou, de seguida, que o seu ofício era conceder três desejos a quem o libertasse e ficou à espera desses desejos. O senhor Aladino estava deveras confuso, pois não percebia qual a relação hierárquica entre um mestre e um génio. Queria perguntar ao génio quem mandava em quem, mas teve receio de que a sua pergunta fosse encarada como um dos três desejos, por isso ignorou a sua dúvida e dedicou-se aos seus pedidos. Em primeiro lugar, pediu saúde para toda a família, incluindo para si próprio. Em segundo lugar, pediu dinheiro para toda a família, incluindo para si próprio. E por último, em terceiro lugar, pediu sete vidas para si próprio, para poder dedicar cada uma delas a cada um dos seus sete ofícios e ter, assim, tempo para outras coisas que não os seus sete ofícios. Numa vida seria apenas professor de história e teria aulas de tango nos tempos livres. Noutra vida seria apenas chefe do clube do ambiente e viajaria pelo mundo no resto do tempo. Noutra vida passaria muito tempo a jogar Sudoku, mas também a ler romances e a ver televisão. O senhor Aladino nunca tinha tempo para ver televisão. O génio estalou os dedos e os três desejos realizaram-se. O senhor Aladino estava, de repente, em casa a pôr a loiça na máquina, porque, na sua primeira vida, o seu ofício era, tão somente, ser marido. Não tinha profissão nem filhos, por isso passava muito tempo na cozinha a arrumar a loiça ou a fazer o jantar para a mulher ou simplesmente a comer. Tinha saúde e dinheiro, tal como pedira ao génio. Andava de bicicleta pela vila e era afável com os vizinhos. No início, o senhor Aladino estava extremamente satisfeito com a sua vida de um só ofício, mas depois de muito dormir e descansar, não sabia o que fazer com o tempo que lhe sobrava. Começou então a comprar o jornal diariamente e passava horas no café a ler as notícias. Era formidável saber o que se passava no mundo. Mais tarde começou a apanhar o gosto pelo Sudoku que aparecia na última folha e especializou-se na resolução dessas tabelas. Mesmo assim, o senhor Aladino não tardou a aperceber-se de que não se sentia preenchido. Estava novamente enfastiado e decidiu arranjar uma nova actividade. Era chegada a hora de mudar de vida, pois tinha desejos que ainda gostaria de concretizar. Como ter filhos e aprender a tocar cavaquinho.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A casinha dos livros - Parte II

Entrou na casinha dos livros e esvaziou-a devagar. Tirava os livros um a um e não dois a dois nem três a três. O primeiro livro chamava-se As Naus. O segundo chamava-se Explicação dos Pássaros. O terceiro Memória de Elefante. Os livros de António Lobo Antunes estavam mais perto das mãos do que os outros. Não saberia explicar porquê, mas assim era. Talvez por isso tenham merecido mais atenção do que os outros. Tinha um pano na mão e com ele limpava o rosto dos livros, a lombada, as costas. Abria-os depois com imenso cuidado, como se neles morasse alguma folha seca ou uma pérola ou algum outro segredo. Lia a primeira frase ou a última frase ou outra frase qualquer. Contemplou demoradamente o rosto de António Lobo Antunes, um rosto antiquíssimo, diferente do actual, o cabelo ainda inteiro, um sorriso de pessoa feliz ou imbecil ou conformada e não o sorriso de um escritor presciente que tem um coração negro onde guarda um arado para revolver a alma. O António Lobo Antunes tinha sido um homem bonito. Lera algures que o António Lobo Antunes já não gostava de nenhuma das suas primeiras obras e isto encheu-a de sentimentos estranhos, quiçá, contraditórios, incompatíveis. Certamente, sentimentos incómodos, insólitos, intoleráveis e, por essa razão, esvaziou o quarto de António Lobo Antunes com menos amor do que antes. Atirou para o chão o Conhecimento do Inferno e até a primeira edição autografada do Auto dos Danados, que era, aliás, o único livro autografado que possuía, por não ter paciência nem entusiasmo para o coleccionismo. Era evidente que António Lobo Antunes se tinha transformado num homem feio. No entanto, escrevia cada vez melhor. Questionou-se sobre esta relação entre a beleza do corpo e a beleza da escrita. Não saberia dizer ao certo se a escrita roubava a beleza ao corpo, mas era provável que sim. Vagueia as prateleiras à procura de outros escritores. O Albert Camus, único autor frequentemente revisitado, também tinha sido um homem bonito e só não continuava a sê-lo hoje, porque morrera entretanto, há coisa de cinquenta anos. O José Eduardo Agualusa, por exemplo, também escrevia bem e era um homem bonito. Esta constatação apaziguava-a. O mesmo se passava com Paul Auster. Com Haruki Murakami. E até com o jovenzinho Paolo Giordiano, se bem que este não fosse grande escritor. Entrou outra vez na casinha dos livros, onde viviam, claramente, mais homens do que mulheres. Tirava os livros um a um e não dois a dois nem três a três. Não tinha pressa. Dedicava mais tempo a uns do que a outros. Nem todos os homens que viviam na casinha dos livros eram bonitos. Muitos deles, na verdade, eram muito feios e não interessariam ao menino Jesus, a começar por Truman Capote e a acabar em José Saramago, passando ainda por George Orwell e Thomas Mann. Curiosamente, quase todas as mulheres que viviam na casinha dos livros eram bonitas ou, pelo menos, graciosas em algum aspecto do corpo. Veja-se o nariz de Virgina Woolf, as maçãs do rosto de Lídia Jorge, o sorriso de Toni Morrison, os olhos de Herta Müller, as sobrancelhas de Sophia de Mello Breyner. Naquele domingo arrumava a casinha dos livros e esforçava-se por visualizar esses outros rostos dos livros. O Dostoievski tinha uma barba austera. O Carlos Ruiz Zafón era careca. Achava piada a homens barbudos e também a homens carecas. Apercebia-se agora mesmo de que não conhecia a cara de muitos daqueles homens e mulheres que viviam na sua casa. Perguntava-se: Que rosto teria Roald Dahl? Ou F. Scott Fitzgerald? Ou Nikolai Gogol? Ou Mario Vargas Llosa? Estas perguntas assentavam nela como o pó nos livros, mas continuou a esvaziar a sua casinha, como se nada mais naquele domingo importunasse os ossinhos das suas mãos. Estava ciente de que todos aqueles livros soltavam bichos estranhos pela casa e teve medo desses corpos sem cabeça. De repente, ao esvaziar uma das prateleiras menos exploradas, ocorreu na sua própria cabeça a descoberta de que possuía dois exemplares iguaizinhos do pequeníssimo livro de Gonçalo M. Tavares intitulado Água, cão, cavalo, cabeça. Este título trazia-lhe à memória o inesquecível livro do Camilo Castelo Branco Coração, Cabeça e Estômago, apesar de apenas a palavra cabeça se repetir nos títulos. Curiosamente, o livro duplicado ganhara, há uns anos, o Grande Prémio do Conto "Camilo Castelo Branco" . Talvez por isso o tivesse comprado duas vezes. Não sabe. Senta-se no chão, de frente para a casinha dos livros e de costas para o resto da casa. Pousa a seu lado o pano com que limpava os livros, cruza as pernas e lê um dos exemplares do pequeníssimo livro. Pela casa deambulam agora os tais corpos sem cabeça. Tem medo deles, mas nunca olha para trás. Gosta da cabeça de Gonçalo M. Tavares.

(continua)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A casinha dos livros - Parte I

Naquele domingo decidiu arrumar a casinha dos livros. A casinha dos livros não era uma casinha propriamente dita e muito menos uma casa, porque não tinha um telhado nem uma casa de banho nem uma cozinha nem uma lareira na sala de estar. De resto, a casinha dos livros tinha tudo o que as casas tinham, incluindo portas, janelas, divisões, uma despensa e um sótão e ainda um rés-do-chão, um primeiro andar, um segundo andar, um terceiro andar, um quarto andar, um quinto andar e um terraço com vista para a casa. Contudo, não era uma casinha propriamente dita e muito menos uma casa. Era, somente, um armário de madeira com dois metros de altura e um metro e sessenta de largura, e quatro portas de vidro, de onde se avistavam as vidas dos livros. Naquele domingo decidiu arrumar a casinha dos livros mas, na verdade, a sua motivação era outra, ficcional, anterior àquele domingo e a muitos outros. Essa motivação encolhia-se na prateleira mais profunda da sua cabeça, mas existia no seu corpo com a mesma intensidade que um coração ou um pulmão ou um fígado. Na verdade, não queria arrumar a casinha dos livros, mas apenas visitá-la, espreitar os seus livros nos seus quartos e deixar-se cair nas suas encadernações. Adormecer de exaustão nas folhas dos livros, com a cabeça em cima das palavras mais confortáveis. Esta era a sua motivação real e essa motivação era anterior a tudo o resto. Encarou a casinha dos livros de frente, primeiro à distância e depois ao perto, com o mesmo entusiasmo com que Gretel olhou para a casa de chocolate. O mesmo apetite, o mesmo impulso. Abriu as portas da casinha dos livros como quem abre um cofre ou um tesouro e, de início, percorreu a casinha dos livros com os olhos, de baixo para cima e depois de cima para baixo, e logo a seguir com as mãos, o nariz, o ventre e a boca. Tinha uma relação promíscua com os seus livros e nem sempre os tratava bem. Por norma, não os tratava bem. Nunca os tratava bem. Tinha, por exemplo, o hábito de dobrar os cantos de certas folhas, marcando-as para sempre como os homens faziam ao gado ou a outros homens. Sublinhava as frases mais curiosas, mais estranhas, mais profundas. Usava para o efeito um lápis qualquer ou uma caneta qualquer, incluindo as de feltro. Também assinava e datava os livros como se fossem obra sua. Por vezes introduzia comentários nas margens das folhas, à toa. Abria-os exageradamente para os ler melhor e quando terminava, atirava-os para o lado de qualquer maneira. Os livros ali ficavam muito tempo, ladeando a cama ou o sofá como cãezinhos ingénuos ou porquinhos-da-índia ou qualquer outro animal igualmente estúpido. Na maior parte das vezes, levava os seus livros para a cama. A páginas tantas, se não a satisfaziam, fartava-se deles, batia-lhes e devolvia-os à casinha dos livros. Enquanto pensa nesta sua relação com os livros, apercebe-se, agora mesmo, de que a sua cama é maior do que a casinha dos livros. A sua cama é maior do que muitas coisas porque tinha sido feita para um rei (king size). A sua cama é, exactamente, vinte centímetros maior do que a casinha dos livros. Dir-se-ia que, naquela casa, na sua vida, há mais espaço para dormir do que para ler. Este pensamento chegava novinho em folha à sua cabeça e surpreendia-a. Não tinha a certeza de que gostasse mais de dormir do que de ler, mas era provável que sim. Estava, agora, na casinha dos livros. E falou para eles da mesma maneira com que falava para as suas plantas, de cima para baixo, sorrindo sempre. Era mais carinhosa com as plantas do que com os livros. Muito mais carinhosa com as plantas do que com os livros. Não era carinhosa com os livros. No entanto, gostava mais deles do que das plantas.
A sua forma de amar era cruel.

(continua)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Miúxa

Para a Miúxa,
que nasceu no Dia de Reis
para desviar a atenção do Menino.

Por norma, chega a casa com paisagens dentro da cabeça.
Os outros trazem outras coisas dentro da cabeça: recordações do próprio dia, planos para o dia seguinte, contas por pagar, sentimentos de culpa, expectativas, raciocínios, argumentos. Mas a Miúxa não. As paisagens que traz dentro da cabeça são como fotografias, porque têm cores e são mais concretas do que certas memórias concretas. No entanto, não são como fotografias, porque crescem dentro da sua cabeça como árvores e são tão profundas como o mar. Nos tempos livres, pensa nessas paisagens. Também vê as paisagens dos outros ou lê as paisagens dos outros. Por exemplo, as narrativas de José Saramago ou os livros que os outros recomendam. Ou então, livros policiais. Além disso, gosta de cozinhar, porque tem jeito nas mãos para manejar o forno e construir castelos de claras. A Miúxa gosta de doces e de fazer doces para os que gostam de doces.
Por norma, chega a casa com paisagens dentro da cabeça.
Nessa casa, além da Miúxa, vivem o marido, o filho, o passarinho, a tartaruga e a gata Nani. A Miúxa escreve sobre a sua casa e todos estes seres que habitam a sua casa, mas sobretudo, sobre a tartaruga, que vive na despensa. A Miúxa escreve, igualmente, sobre as suas paisagens. Por vezes, desenha-as no papel ou no próprio computador. Por causa do jeito que tem nas mãos, também passa as suas paisagens para a tela. Os quadros da Miúxa têm pedacinhos de Monserrate, de Monet, da praia de São Pedro. A Miúxa vive na cidade, mas é possível que preferisse morar longe da cidade. Não sabemos. Por ser Dia de Reis, imaginamos que esteja, neste preciso momento, a desmontar o seu presépio. De outra maneira, talvez estivesse a fazer um bolo de iogurte ou de noz. Gostamos de doces, em geral, e dos doces da Miúxa, em particular. Também gostamos dos quadros da Miúxa. Na verdade, gostaríamos de plantar as paisagens da Miúxa na nossa casa, mas receamos que sejam difíceis de criar em vaso. Como as pessoas. E as ervilhas-de-cheiro.