quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

mãos grandes e inseguras

Quatro poemas:
da esquerda para a direita, 
coluna da direita,
coluna do meio
coluna da esquerda.


mãos
grandes e inseguras
unhas
curvilíneas

sempre
o medo da folha   
branca e vazia
como um princípio

a ponta da vontade


pega na folha
com o final dos dedos

linhas ilegíveis e tremeluzentes

como um princípio
no final
dos dedos 
e não
na folha branca e vazia

dobra a folha ao meio

contempla

é agora metade de si própria

dobra
as pontas
da folha
com a ponta
dos dedos

e é agora uma outra coisa

um avião

o final
dos dedos
não acaba


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Um casal comprido e narigudo

Um casal comprido e narigudo vem aos beijinhos no metro. São 8h da manhã e as pessoas afastam-se do casal, incomodadas com os beijinhos alheios (barulho, lábios, saliva, credo!). Uma rapariga de casaco vermelho fica a olhar para eles e ri-se. Acha curioso observar pessoas de narizes compridos a darem beijinhos, parecem passarinhos e não se atrapalham nada. Observa-os atentamente: Ela de rugas fininhas mas profundas na ponta dos olhos e dos lábios, caracóis ao alto, ele de cabelo grisalho e bem composto. Têm ambos, à vontade, idade para ter juízo. Dão beijinhos curtos e sonoros - chuac, chuac, pio, pio - um som entre o assobio de pássaro e o grasnar de ganso.
A rapariga de casaco vermelho ri-se outra vez. É infantil, apesar de já ser bem grande.
A carruagem vem cheia de gente de hálitos e hábitos esquisitos. Uma mulher com ar de quem começa a dar ordens ao marido às 6h da manhã e lava o chão da cozinha todos os dias porque os três filhos rapazes não sabem comer para cima da mesa encolhe os ombros, sobe e desce as sobrancelhas num tique nervoso, está verdadeiramente irritada com os beijinhos curtos e sonoros do casal comprido e narigudo.
Um senhor de óculos pequeníssimos vem a ler a Economist. De vez em quando suspira e lança um olhar enfastiado para o casal comprido e narigudo. Também lança um olhar enfastiado para a rapariga de casaco vermelho, que se vem a rir (é infantil). Afinal lança um olhar enfastiado para todos os passageiros (nothing personal).
As pessoas estão cada vez mais próximas umas das outras porque querem afastar-se o mais que podem do casal comprido e narigudo (barulho, lábios, saliva, credo!). Uma senhora baixinha e muito magra, de franja pelos olhos para fingir que tem 30 anos, embora seja visível que tem, no mínimo, 50, masca uma pastilha acelerada e olha para o mapa do metro com um ar muito concentrado. Claramente, esta senhora de franja pelos olhos não está a olhar para o mapa do metro, até porque é impossível ver alguma coisa através daquela franja farfalhuda. Está mesmo só à procura de uma distração. Os beijinhos destabilizam-lhe os ouvidos e a senhora já tem problemas de equilíbrio por causa de não-sei-quê nos tímpanos.
A carruagem vem cada vez mais cheia e as pessoas estão cada vez mais unidas contra o casal comprido e narigudo, conspiram e suspiram contra os beijinhos sonoros no metro, uma vergonha.
A mulher dos três filhos está tão enervada que, ao sair do metro, abalroa a rapariga do casaco vermelho, que ainda vem com um sorrisinho parvo no semblante. A rapariga do casaco vermelho, que, apesar de infantil, é grande, vai projetada contra a senhora da franja pelos olhos que, por ser franzina e ter problemas de equilíbrio, acaba mesmo por cair nos braços do senhor dos óculos pequeníssimos. Na carruagem paira brevemente uma esperança de romance que afinal não é mais do que isso: uma esperança de romance. Senhora e senhor dão às asas como pombos assustados, cada um para seu lado. Desolada, pas de soucis.
O senhor dos óculos pequeníssimos dá o último suspiro e guarda a revista debaixo do sovaco, o que é um claro sinal de que o senhor desistiu de se cultivar. Trata-se portanto de uma perda de conhecimento valioso, tanto para o senhor dos óculos pequeníssimos como para a comunidade no geral. A carruagem apoquenta-se.
O casal comprido e narigudo com idade para ter juízo continua aos beijinhos - chuac, chuac, pio, pio. Ela de rugas fininhas, ele de cabelo grisalho, não reparam em nada disto: na mulher dos três filhos, no senhor dos óculos pequeníssimos, no estado do mundo, na senhora da franja pelos olhos, na rapariga de casaco vermelho.
As pessoas que dão beijinhos sonoros passam a vida a transformar o mundo mas nem dão por isso, porque não querem saber de nada e, muito provavelmente, não leem a Economist. São burras.