segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Ele e ele. Este e aquele. Um e outro.

Aí vêm eles. Os gémeos. Os dois.
Ele e ele. Este e aquele. Um e outro.
Dizem-me: é a maternidade ao quadrado, é o amor em dose dupla, é o júbilo duplicado.
Eu penso: será a angústia vezes dois, o dobro das dificuldades, a multiplicação do cansaço. 
São as duas faces da mesma moeda, as duas versões da história.
Dupont et Dupond. Tico e Teco. Ego e alterego.
Sempre as mesmas perguntas: se são verdadeiros ou falsos, se são meninos ou meninas, se a gravidez foi espontânea, se há gémeos na família, se tenho mais filhos, se tenho ajuda.
Abstraio-me. Penso noutra coisa. Penso em duas coisas. Penso em tudo e no seu contrário.
Dois pesos. Duas medidas.
No fundo estava-se mesmo a ver. Os sinais estiveram sempre lá. 
A dualidade, o duplo sentido.


Um brinquedo cá de casa

A verdade é que tenho uma alma gémea: um homem duplicado que vale por dois.
A minha avó materna teve gémeos falsos.
Um dos meus amigos mais próximos tem um irmão gémeo.
Gosto de dormir em beliches. Em camas duplas, em twin beds. 
Acho uma certa piada a casas geminadas. E a duplexes.
Tenho duas amigas que trato por “gémea”. Ambas se chamam Joana.
A maternidade, para mim, sempre foi dose dupla. Dois abortos, duas gravidezes ectópicas, duas gravidezes de jeito.
Guerra e paz. Crime e castigo.
O signo do homem duplicado: gémeos.
O meu ascendente: gémeos.
O meu chocolate: Twix.
E sempre gostei de duetos. Sempre gostei de parelhas, de casalinhos, de dicotomias.
Frente e verso. Ponto e vírgula.
O que mais me marcou na literatura alemã foi a noção de Doppelgänger, o duplo presente ou então ausente. O homem que vendeu a alma, o homem que vendeu a sombra, o homem que matou o seu duplo.
Durante anos tentei escrever sobre um autor que andava à procura do narrador e também sobre um homem que perdia o seu reflexo, mas não cheguei a lado nenhum.
Sujeito e predicado. Pessoa e seu heterónimo.
Portanto, olhem, estava-se mesmo a ver. Um mais um, igual a dois.
Noite e dia. Yin e yang.
E depois não é só isso. 
Tenho dois olhos. Dois ovários. Duas narinas. Duas mamas. Eu própria sou uma dupla maravilha.
Venham eles. Os gémeos. Ambos os dois. Tu e eu. Tuta e meia.
Venham como vierem. Verdadeiros ou falsos. Para cima ou para baixo. Muito parecidos. Completamente diferentes.
Água e sal. Coiso e tal. Tanto faz.
Hão de ter duas bochechas. Duas orelhas. Dois pés. 
Hão de ser inseparáveis. Insuportáveis. Dois amores. Dois estupores. 
Duas pessoas.
Ele e ele. Eu e eles. Nós e eles.
Os dois da vida airada.
As duas metades que faltavam.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O gordo da passadeira

No outro dia choveu, e bem. 
Lá vínhamos nós a rastejar pela vida, eu e o meu barrigão. Calçávamos umas sandálias de cortiça que escorregavam na água.
A certa altura atravessámos a passadeira. O meu barrigão à frente e eu atrás.


“Eu sou Eu Sei”, Madalena Matoso

De repente, a meio da passadeira, entre uma poça de água e outra, para nosso grande espanto e indignação, levámos com uma buzinadela nas trombas. Eu, o meu barrigão e as sandálias de cortiça até andámos de lado.
Dentro do carro buzinador estava um homem branco e gordo, sessenta e tal anos, as duas mãos ao volante.
Parámos ali mesmo, no meio da passadeira. Tirámos o capuz do impermeável, apontámos para a barriga. Para que não restassem dúvidas.
O homem gordo sacudiu os ombros e a cabeça naquele jeito impaciente dos homens brancos, que sabem tudo sobre a condição humana e não estão para choradinhos. 
Pelo amor da Santa, a grávida que saia da frente. A grávida e os outros todos também, dizia o homem gordo de si para si, as mãos sapudas ao volante. 
Anda tudo com as mulheres ao colo hoje em dia, já repararam? E com os paneleiros e os ciganos e os pretos e os imigrantes e os velhos e sei lá mais o quê. Estou pelos cabelos com essa gentinha.
Ali estava ele, o homem branco todo-poderoso, protegido da chuva e da lentidão pela sua caixa de metal com quatro rodas. Cheio de urgência e virilidade. Tão desiludido com a vida. Tão cansado das minorias e das suas queixinhas menores. Gente feia e zangada. Sempre a apontar o dedo. Parecem umas crianças. “Ó mãe, olha ele!” 
O homem gordo dá uma buzinadela geral às pessoas chatas. Saiam todos da frente. 
Ali estava ele, o homem branco - gordo por opção e não por fecundação - a olhar com desprezo para os fracos de espírito e de corpo.
É curioso e meio esquisito. Durante a juventude, o homem gordo até era de esquerda. Lutou e acreditou na igualdade e na democracia. Mas entretanto a vida passou-lhe por cima e o homem gordo esqueceu-se desse sonho. Já não pode ouvir falar em coitadinhos. Nem em reivindicações e lamentos.
Que mal fez ao mundo este homem branco, que até paga os impostos e é bom pai de família? Lá porque nunca foi oprimido nem vítima de abusos. Lá porque nunca foi excluído nem discriminado. Lá porque os homens brancos antes dele andaram por aí no bem-bom durante séculos a excluir e a oprimir cada um. 
A culpa agora é deste homem barrigudo por acaso? Só por ser homem, branco e gordo? Vão discriminá-lo por causa do seu género, da sua orientação sexual e da cor da sua pele? Tenham paciência. Já ninguém faz isso. 
A grávida que se puxe à calma. Já ninguém é misógino, minha senhora, e a minha mãe teve cinco filhos e não fazia queixinhas. Deixem-se lá de protestos e dessa mania das injustiças. Saiam da frente.
E, por favor, parem de dizer que o homem branco é um privilegiado, porque eu cá não tenho privilégios nenhuns. Na verdade devo ser o único não privilegiado. Reparem que não existe um Dia Internacional do Homem Branco nem ONG para defender os meus interesses de homem branco nem ajudas especiais ou quotas para os homens brancos. 
Tenham dó do branco barrigudo. A vida não está nada fácil para ele: espera-se tanto do homem branco e tão pouco dos outros todos.
Eu e o meu barrigão temos muita vontade de fazer um manguito prolongado ao homem gordo, mas neste momento não há pilinha que nos valha, porque também não é bem uma piça que queremos mostrar ao senhor. O que gostávamos de gesticular ao homem gordo era precisamente o contrário de uma pichota. Era um gigante par de ovários ou de mamas. Uma vagina obscena para mandar abaixo esta visão do mundo tão masculina e sobranceira e simplória ao mesmo tempo. Infelizmente, esse gesto de fêmea enraivecida nem sequer existe. O poder da pichota continua a ser supremo, até mesmo na comunicação gestual.
Ó homenzinho branco, meu patego a dar com pau. Ainda não percebeste nada. Este mundo foi feito à tua imagem, mas já não é teu. Este mundo agora é de todos. E esta estrada também não te pertence. Esta estrada é de quem andar nela. É dos velhos e dos seus cãezinhos, é das grávidas e dos deficientes e dos outros todos. 
Não fiques assim, com esse arzinho amuado e contrariado. Há muita coisa que tu não entendes. Na verdade, a maior parte das experiências humanas estão-te vedadas. Nunca saberás o que é ser um preto no meio dos brancos, nunca saberás o que é ser um imigrante ilegal, nunca saberás o que é ser uma grávida de gémeos a duas semanas do parto. Por isso, puxa-te tu à calma, homenzinho gordo. Um pouco mais de empatia e humildade, por favor. 
Não buzines nas passadeiras. Não continues a oprimir os mais fracos. Sobretudo, não venhas com conclusões e generalizações sobre vidas que desconheces. Tu já não mandas nisto tudo. 
Devias levar com um par de ovários nos olhos, mas toma lá um abracinho. Sei bem que a sociedade espera isso de mim e de todas as mulherzinhas: empatia e candura; e não agressividade e rebeldia.
Enfim. Eu e o meu barrigão respiramos fundo e avançamos pela vida, ligeiramente desequilibrados por causa das sandálias e da nossa indignação. Estafermo do homem gordo e de todos os que me fizeram razias nas passadeiras e me ultrapassaram nas filas e não me deram lugar no elétrico nem no autocarro. É que não foram assim tão poucos. Foram bastantes. Homens, mulheres, velhos e novos. Mundo cruel, este, que não cuida dos que precisam.
Tenham dó da mulher grávida, pá. A vida não está fácil para ela: vai passar os próximos tempos a lavar pichotas.
Uma buzinadela geral para vocês todos, que ficam desse lado a rir e a fazer o que vos apetece.
Uma buzinadela e um maguito também, sim?

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

A minha mãe aos 70

A minha mãe faz hoje 70 anos. Não tem rugas nem botox. É uma mulher natural.
Toda a gente acha que é 20 anos mais nova. Eu cá tenho a certeza que a minha mãe é 20 anos mais nova.
Quase nunca está doente. Raramente se cala. Quase nunca se cansa. Quase sempre estrebucha, refila, parte a loiça toda e depois parte-se a rir. Não gosta de cozinhar nem de passar a ferro. Diz muitas vezes que se esquece da idade que tem. Eu também me esqueço da idade da minha mãe.
A minha mãe, aos 70, tem energia e paixão para dar e vender. Dança sempre que pode. Estica o seu próprio cabelo, arranja as próprias unhas. Não é de lamúrias nem de queixumes.
Nunca recusa um chocolate. Nunca recusa um copinho. Dantes bebia whisky. Agora só bebe vinho. E talvez conhaque. E também ginjinha. E cerveja, claro. Come queijo da serra, alheiras de caça, Magnum de amêndoas. Fumou durante décadas. Passou horas ao sol.
Numas coisas somos muito parecidas. Noutras somos o total oposto.
A minha mãe, aos 70, é muito mais nova do que muita gente nova que por aí anda. Parabéns, mãezinha! És uma inspiração.


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Coitada da Ana Pessoa

Coitada da Ana Pessoa. Está para ali assim, vagarosa e inchada. Tão duplamente grávida. Já nem consegue respirar até ao fundo de si própria. Não consegue andar até ao fundo da rua. Mete muito dó.
Até a Ana Pessoa tem pena de si própria. Só lhe apetece escrever um texto a começar assim: “Coitada da Ana Pessoa”. Felizmente tem alguma noção de si e dos outros, por isso não vai escrever esse texto.
Faz hoje 37 anos, mas podiam ser muito mais. Está pesarosa e pesadona. Um feliz aniversário, Ana Pessoa. É o que eu te desejo.
Antes a vida era mais ligeirinha, não era? Liam-se umas páginas de um livro e havia uma certa beleza nas horas. Depois o corpo virava-se para o lado e adormecia.
A Ana Pessoa lembra-se dessa vida e tem saudades de si própria, da pessoa original. Da pessoa sozinha que, a bem dizer, já era bastante. Mas ultimamente, coitada, a Ana Pessoa confunde-se. Já não sabe bem onde começa a sua pele nem onde acaba a sua existência. 
É uma pessoa ao cubo. Tem três cabeças, três corações. O ego triplicado, cheio de varizes e estrias, o umbigo virado do avesso. 
Coitada da Ana Pessoa. 
Nunca sentiu tanto com tanta intensidade. Nunca ocupou tanto espaço. Nunca pesou tantos quilos. 
E isso, na verdade, talvez queira dizer que a Ana Pessoa nunca existiu com tanta força, com tanta pujança. Nunca a sua existência foi tão pronunciada. Toda ela é uma abundância que só visto. Uma presença inegável. E portanto, ouçam: não tenham pena dessa tal Ana Pessoa. Anda por aí fértil e generosa a largar óvulos em dose dupla. 
É bem feito. Ovulasse menos. Com recato e moderação, que é o que se espera de uma mulher.
Quem diria, Ana Pessoa. 
Logo tu, que durante tanto tempo acreditaste que a maternidade não era para ti ou que tu não eras para a maternidade porque o universo te dizia precisamente isso, que tu e a maternidade não eram feitas uma para a outra, e portanto andavas tão ocupada a fazer outras coisas na vida, como, por exemplo, a ser tu própria ou, pelo menos, a tentar ser e estar neste mundo, como toda a gente.
Agora, olha, vais ter a casa cheia de homens, que até te lixas toda. 
Um marido e três rapazes. 
É obra, Ana Pessoa. Coitadinha da tua existência. Vais passar as passinhas do Algarve, deixa-me que te diga.
É da maneira que começas a falar baixinho e a existir um pouco menos. Só te fica bem, Ana Pessoa. Pode ser que fiques mais pequena, mais frouxa, mais razoável.
E durante essa tua subtração a caminho do desaparecimento, pode ser que algo bom aconteça. Pode ser que te caiam umas respostas em cima da tola quando o teu ego escorregar pelo ralo da banheira. Pode ser que compreendas, por exemplo e por fim, que as mães são culpadas de tudo.
Que não há volta a dar. 
E pode até ser que nessa existência minguante passes a escrever alguma coisa de jeito, Ana Pessoa.
Imagina. Isso é que era bom! Uma prosa sem ego. Sem merdas. Sem estrias. Era mesmo muito bom. Tu não achas, Ana Pessoa?
Eu acho. 
Doem-me muito as pernas. 
Dói-me esta existência triplicada. 
Mas cá estamos todos, eu e eles, para dar a volta a isto. 
Quero o meu umbigo de volta. 
A minha pessoa.
O meu ego original.

Ilustração de Bernardo P. Carvalho para “O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca”



terça-feira, 6 de agosto de 2019

Rui Gonçalves

O Rui Gonçalves morreu.
Era um homem muito alto e muito magro. Vivia sozinho num apartamento em Oeiras. Não tinha filhos nem cães nem gatos.
Era amigo dos meus pais e também meu amigo. Ligeiramente louco. Profundamente preconceituoso. Homofóbico. Racista. 
Andava sempre armado. De manhã à noite. Dormia com a pistola debaixo da almofada. Mas não era um homem violento. Era até doce na sua loucura varrida.
Fazia paraquedismo. Não comia queijo. Contava histórias incríveis do Ultramar, mas só as que davam para rir no fim. Nós ríamos sempre no fim.
Durante a minha infância trazia-me prendas a toda a hora. Coisas pequenas e banais, que ele apresentava com grande pompa. Fazia introduções enormes a esses pequenos tesouros. Podiam ser berlindes. Lápis de cor. Borrachas. Pouco importava. Tinham uma história. Eram valiosos. 
Sempre que me dava um desses tesouros, o Rui fazia questão de esclarecer que aquela prenda era uma exceção. Que não ia estar sempre a trazer-me prendas quando nos viesse visitar. Ora essa, comentavam os adultos, claro que não. Os miúdos depois habituam-se, já se sabe. Mas a verdade é que o Rui me trouxe sempre prendas. Sempre sempre sempre.
Uma vez, eu e a minha vizinha Aurora estávamos sentadas no chão da sala a rir às gargalhadas. Não me lembro por que razão nos ríamos, mas sei que nos ríamos muito. O Rui observava-nos em silêncio, com aquela alegria triste dos adultos que perderam a infância. A certa altura virou-se para a minha mãe e disse: “Se há coisa que estas miúdas vão poder dizer é que tiveram uma infância feliz”. E depois virou-se para mim e para a Aurora - que ele tratava por “Orora com O grande” - apontou o dedo e disse: “Nunca se esqueçam que tiveram uma infância feliz”. Eu e a Aurora parámos de rir. Um pedaço da nossa infância talvez tenha chegado ao fim naquele momento. E foi uma infância feliz realmente, graças também ao Rui Gonçalves, que me trazia prendas sempre que ia lá a casa e fazia umas entradas muito cómicas nas minhas festas de aniversário: primeiro chegava a voz dele e depois talvez um braço ou uma perna e só depois ele inteiro.
Conheci-lhe algumas namoradas e também uma esposa, com quem casou duas vezes. Se bem me lembro, ele dizia “esposa”. Não dizia “mulher”. Eu adorava esta história dos noivos que se casaram duas vezes.
O Rui nunca gostou de nenhum dos meus namorados. Tratava-os com frieza e desdém. A semanas de me casar, foi até bastante indelicado com o meu futuro “esposo”. Inquisidor, severo, desagradável. Na altura levei a mal, mas agora levo a bem.
É que o Rui Gonçalves gostava à brava de mim. Nunca tive dúvidas disso. E não há muita gente de quem se possa dizer isto assim, sem reservas: que gostam à brava de nós.
Durante a minha adolescência, dizia-me coisas espantosas. Por exemplo, que eu devia sentir gratidão por ser uma pessoa normal e saudável, que a normalidade e a saúde eram preciosas, que o melhor que me podia acontecer na vida era ter uma relação como os meus pais tinham, uma relação para toda a vida, com intimidade e amor e sexo e família como ele nunca tivera. Também me dizia: “Promete-me que não te vais casar com um preto” e eu ficava sempre muito envergonhada e indignada com aquele pedido. Não podia prometer tal coisa. Como não? Claro que não. Ele desafiava-me: “Eras capaz de casar com um preto?” Claro que era. Que disparate. O Rui muito desgostoso. A insistir: “Por favor, não te cases com um preto.” E eu com a certeza adolescente de que me ia casar com um preto lindo de morrer, porque o destino é mesmo assim: mete sempre a pata na poça.
Volta e meia, perguntava-me pela “Orora com O grande”. Eu respondia sempre a mesma coisa: que nos tínhamos afastado, que eu não sabia nada dela. E o Rui ficava sempre assim, com aquela alegria triste das pessoas sem infância, a pensar na vida.
Durante uma fase da adolescência interessei-me pela implantação da República. Não sei por que raio, mas queria escrever qualquer coisa sobre essa época. Até já tinha um protagonista: um rapaz que fumava beatas do chão e ganhava uns tostões a trabalhar como ardina.
O Rui entusiasmou-se muito com a ideia. Durante meses trouxe-me fotocópias de livros que ele encontrava nas bibliotecas: imagens de ardinas, páginas sobre a revolução de 5 de outubro, apontamentos sobre o Partido Republicano Português. Infelizmente, nunca escrevi nada sobre a implantação da República, mas lembro-me muitas vezes do rapaz ardina. Era uma boa personagem. Talvez venha a existir um dia. Talvez se venha a chamar Rui.
No meu aniversário, o Rui telefonava-me e dizia-me apenas isto: “Saúde saúde saúde”. Eu dizia obrigada e perguntava-lhe se estava bem. O Rui nunca me respondia. Repetia “Saúde saúde saúde” e eu ria-me. Gozava à farta com aquela frase: “Saúde saúde saúde”. Se ele estivesse em casa, talvez me dissesse que estava a olhar para as fotografias que tinha na parede, que eu estava em várias dessas fotografias e que só me desejava “Saúde saúde saúde”.
Nos últimos anos desfez-se de tudo. Vendeu o apartamento, ofereceu o conteúdo da casa a este e àquele. Depois zangou-se com toda a gente. Depois adoeceu. E depois morreu um pouco mais sozinho do que antes, parece-me.
Neste último ano, enviou-me algumas cartas e recortes de jornais, incluindo artigos sobre os meus livros que ele encontrava aqui e ali. Agrafava uma
folha em branco à capa da publicação e explicava tintim por tintim onde e quando encontrara o artigo. Sublinhava algumas palavras a vermelho. Da casa do Rui herdei uma saladeira de porcelana que era dos pais dele. Uso-a muitas vezes. Tem um bom tamanho para saladas de fruta.
Nunca me vou esquecer do mantra “Saúde saúde saúde”. 
Nunca me vou esquecer que tive uma infância feliz. 
Nunca me vou esquecer do meu amigo Rui, esse homem improvável, louco e racista que andava sempre armado.
Parecia uma personagem de ficção, mas era um homem de verdade.