sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Discurso sensorial

Diz-me qualquer coisa que não seja azul nem amarela, apetece-me algo um pouco mais dramático, irónico, brutal. Toca-me ao de leve para eu me arrepiar. Preciso de um cor-de-laranja com sabor a álcool, dá-me a provar desse fósforo, sabes bem que adoro o cheiro a madeira queimada.
Diz-me qualquer coisa em degradé que comece lilás e acabe roxa como as noites no castelo do drácula. Canta-me em si menor uma sílaba fugaz de asas negras. Bato com os pés no chão e sou vampiro, vou por aí cheirar as chaminés das casas. Pouso no final da noite e fico a ouvir o crepitar lento do sangue atrás da pele.
Vamos ficar aqui, nesta praça castanha, a ver os pombos passar. Senta-te comigo aos pés da estátua, somos a pedra azeda da calçada. Um pouco mais de branco e esta tarde era perfeita, as minhas mãos a traço grosso pousadas no colo, as tuas ao fundo, desfocadas, inconcebíveis.
Grita qualquer coisa com contraste, uma palavra definitiva, imprevista, acidental.
Um pouco mais de amarelo nos olhos, por favor, para que o feitiço funcione. Dá-me água à boca, quero ser um pouco mais elástica, maleável, transparente.
O eléctrico guincha no fundo da rua como um beijo imprevisto, gosto do sabor do ferro na língua, do sol repentino à flor da pele. Diz-me qualquer coisa no tom impossível do vinho tinto e desce comigo por esta escada, dois degraus de cada vez, quatro oitavas abaixo do chão.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

A fadista

Há uma rua com poucos carros que separa as duas margens. De um lado um prédio baixo, do outro uma paragem de autocarro. No prédio baixo há uma janela com vista para a rua. A janela e a paragem estão frente a frente. Do lado de lá da janela há uma senhora reformada que se senta todas as tardes em frente à janela. Vista da paragem, a senhora mais parece um quadro e a janela uma moldura. A senhora reformada era fadista mas deixou de o ser por causa da vida e não da voz. Há meses que vem pousar à janela esperando as pessoas que esperam o autocarro. Curiosamente, o tempo pára todas as tardes e a senhora fica parada a ver as pessoas pararem na paragem. Certo dia, a solidão da senhora comoveu a própria senhora e saltou um choro da ponta da voz. O nó na garganta lembrou-a do fado, por isso pegou nas cordas vocais e tocou-as para dentro como já não fazia há muito. A senhora era viúva, portanto já estava vestida de negro. Abriu a janela e cumprimentou o público do lado de lá da rua com um sorriso. Encheu o peito de ar, esperou o primeiro acorde, fechou os olhos e pôs-se a cantar. Nesse momento o tempo acordou e fez-se ao caminho, ou seja, voltou para trás.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Toma lá, dá cá

Disse Abdullah a Alá: "Então pá, já sou presidente, estás contente?" e Alá pediu impaciente: "Opá, deixa-me cá beber o meu chá!". Abdullah sussurrou: "É para já!" e fez-se um silêncio profundo. Depois, querendo meter a colher, disse Alá a Abdullah: "Olha lá, que é feito do véu da tua mulher?" e Abdullah olhou para o céu, depois para Deus e respondeu: "Deixa lá a mulher e o seu véu. O presidente aqui sou eu!". "Mas eu é que sou Deus", respondeu Alá com cara má. "Aaaaaahh", exclamou Abdullah e enterrou-se caladinho no sofá. Disse Alá: "Anda lá, Abdullah, dá-me cá o véu! Tanto na terra como no céu, tudo é toma lá, dá cá!". Abdullah ficou sem ar e disse para o seu crachá: "Assim não dá!". Mas não há discussão possível com Alá. "E para que queres tu o véu?", lá perguntou Abdullah. E Alá recostou-se no sofá como um paxá e respondeu: "Do véu farei um chapéu do tamanho do céu para tapar os olhos dos ursos e abafar soluços. E tu, Abdullah, enfiarás o barruço". Abdullah tinha apanhado um grande susto, mas logo ficou contente por ser presidente e andar de barruço.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

A velha e o cão

A velha batia-lhe com o jornal se o visse, por isso ele esperava que a dona fosse à cozinha. O cão apoiava-se então nas patas traseiras, levantava a mão da frente e coçava a nuca com enorme fúria. Por vezes, a velha apanhava-o em flagrante e enrolava o jornal com as mãos muito trémulas. Enquanto lhe batia, cuspia asneiras entre lábios já que não tinha dentes e dizia-lhe que era mau, que as carraças vinham da mão de Deus, que ele seria punido depois da morte no Inferno por ser um cão tão reles. Em certos dias não lhe dava de comer para o castigar ainda mais e o cão já nem gania de lamento.
Certa manhã, a velha deu com o cão ao lado do sofá, deitado quase de costas. "Queres mimo, queres! Cão imundo, em ti não te toco eu!", jurava a velha e depois praguejava em silêncio, o queixo balbuciando alguma verdade. De facto, o cão estava deitado em posição de festinhas, mas já estava morto havia dias e a velha tardou em aperceber-se disso. Até que, certa vez, reparando que o peito do cão não crescia nem encolhia, lá sentenciou: "Vais pró Inferno!". A velha sentou-se no sofá com a ajuda da bengala enterrada na carpete. Explicou ao cão que o criado de Lúcifer o viria buscar e resolveram esperá-lo juntos durante dias, a velha no sofá e o cão a seus pés, deitado quase de costas, a língua desenrolada no chão. A velha só então se apercebeu do comprimento exagerado daquela língua. Possivelmente, articulando-a bem, aquele cão conseguiria falar. Assim como assim já era tarde para isso pois os mortos não falavam perante o Diabo.
Finalmente alguém abriu a porta da rua. A velha ajeitou a almofada satisfeita, o criado que viesse levar o cão imundo. Mas em vez do mensageiro de Lúcifer, entravam afinal a filha e o genro, um ao lado do outro, gordos como balões. Já não os via há anos, a filha estava cada vez mais feia e ficava ainda mais horrível quando vociferava por causa das veias em relevo no pescoço. O que a filha dizia era incompreensível, a sua dicção era péssima, antes fora que lhe tivesse amarrado uma língua de cão à boca quando a ensinara a falar. A velha levantou-se e disse que não era boa hora para estarem ali, pois esperavam o criado de Lúcifer. Depois coçou a nuca em compasso de espera, mas nenhum dos dois arredava pé. O genro disse qualquer coisa incompreensível à filha, mas esta não respondia, parecia em estado de choque. É que a mãe, em vez de falar, ladrava e tinha carraças no corpo todo.
Cão que ladra não morde, dizia o genro de si para si. Era um pensamento deveras estúpido.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Olhos em bico

Aquele menino chinês tinha os olhos em bico. Tão em bico, tão em bico, que mais parecia que os trazia sempre fechados. Ninguém sabia dizer qual a cor dos seus olhos (nem mesmo a mãe) pois, tanto ao longe como ao perto, nada se via no meio das quatro pálpebras quase unidas além de uma pequena fresta sem brilho. "Abre bem os olhos", mandava a mãe, mas o menino chinês só os abria enquanto dormia. Pelo menos assim dizia a irmã mais velha, que acordara numa certa madrugada e vira os olhos do irmão muito abertos para a noite escura. Revelava com um tom grave à família: "São castanhos-mel como os do pai".
Numa manhã de Inverno, decidida a desvendar aquele mistério, a mãe anunciou que ia levar o menino ao médico estrangeiro. A família levou as mãos ao peito com o susto e foi despedir-se dos dois parentes à porta de casa. Mãe e filho caminharam quilómetros até à aldeia mais próxima, onde vivia o médico. Dizia-se do estrangeiro que era melhor que os curandeiros, que via o que era visível e invisível, que tinha olhos tão redondos que pareciam nunca respirar.
O médico estrangeiro apertou com força a mão da mãe, depois a do filho, aceitou o dinheiro, contou-o com destreza e mandou-os sentar. Com uma mão desajeitada abriu as pálpebras do menino e observou com um só olho o olho do paciente. Depois pegou na lupa e examinou com um olho enorme os pequenos olhos misteriosos. O menino parecia interessado no efeito da lupa porque, ao ver o olho gigante do médico estrangeiro, abriu um pouco mais os olhos. A mãe disse "Óóóóó" com a boca em forma de lua cheia. O menino agarrou na lupa e o médico deixou que ele brincasse com ela. Doutor e paciente trocaram então de papéis e o menino de olhos quase fechados examinou o médico através da lupa. De repente, como que por milagre, o olho do menino abriu-se completamente, tinha agora o tamanho de um ovo cozido e a cor era castanho-mel como dissera a irmã. "Tens olhos de Outono" dizia a mãe e o estrangeiro escreveu decidido num caderno. O menino voltou a semicerrar os olhos, a mãe abriu-os o mais que podia. O médico apoderou-se da lupa, arrumou-a, sorriu por dentro e por fora. Diagnosticou num chinês imperfeito: "Este menino precisa de óculos".

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Génesis

O teu corpo é um caos nesta noite de trevas, passeio pelos teus cabelos durante eternidades e tenho vertigens nesta espiral sem limite. Digo "Faça-se luz" e os teus caracóis são agora brancos, labirínticos, indecifráveis. Chamo-lhes Via Láctea e salto para o espaço. Os teus cabelos são para mim um céu sem nuvens e, ao regressar ao teu corpo magnético, chamo ao teu peito Terra e à tua boca Mar. Pouso os olhos nos teus olhos e vejo estrelas e astros, vejo a noite e o dia, chamo a um olho Lua e ao outro Sol. No centro da Terra sinto o pulsar da vida e nascem seres vivos do teu corpo. Abres as mãos e voam aves das tuas palmas. Dizes uma palavra e saltam peixes na tua boca. Andam anfíbios pelas tuas pernas e saem insectos das tuas orelhas. Do teu sexo nascem árvores de fruto e do teu peito o jardim do Éden. És tu o milagre da vida. Da costela nasce a costela, costas contra costas, somos anca contra anca, peito contra peito, uma só carne, somos o início de todas as coisas.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Adamastor revisitado

Olha para mim, homem ousado, eu sou aquele oculto e grande Cabo a quem chamais vós outros Tormentório, sou o dono do promontório sobre o fim do mundo, o tal monstro negro do mar profundo, filho dos amores da Terra, todo eu sou fera e guerra e espera. Tu que temes o meu tacto e este corpo invertebrado, sentirás hoje as ventosas do meu abraço. Nesta noite escura sem estrelas nuas, lançarei um braço silencioso e caminharei réptil e tenebroso pela tua caravela. Escutarei o teu sono atrás da vela içada e, para meu consolo, pegar-te-ei ao colo. Três vezes enrolarei o meu braço à volta do teu peito, ó marinheiro, e levar-te-ei comigo para o leito do fim do mundo. Esta é a vingança do monstro ressuscitado, a dança das trevas, é o fim da bonança, da maré mansa, da boa esperança. A morte do mar português.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Erros de pontuação

O professor de português, que era uma pessoa ponderada, profunda, progressista, pró-activa, mandou: "Escrevam uma composição sobre as várias fases da vida!" e os alunos escreveram. Nessa noite, o professor sentou-se contente à secretária para corrigir os trabalhos. Um dos rapazes, que era mau aluno, mau escritor, mal amado, malcriado, mau humor e mau-olhado, escreveu um texto com vários erros de pontuação. O professor abanava a cabeça enquanto lia. Pensou: "Este rapaz não respira enquanto escreve" e releu o texto para o corrigir:

"Há três fases da vida: a infância a adolescência e a vida adulta, a diferença entre elas prende-se com a forma como a felicidade é encarada, senão vejamos: as crianças dizem que estão felizes quando estão felizes e que estão tristes quando estão tristes para que os outros saibam como se sentem, os adolescentes dizem que estão tristes mesmo quando estão felizes porque acham que estão sempre tristes e os adultos dizem que estão felizes quando estão tristes e que estão tristes quando estão desesperados porque acham que controlam o que sentem e não querem que os outros o saibam, assim a fase mais feliz da vida é a infância porque as crianças sabem o que querem."

O professor concluiu: "Este rapaz põe vírgulas quando deve pôr pontos e não põe nada quando deve pôr vírgulas!". Levantou-se e foi à casa de banho. Por uma estranha associação de ideias, o professor lembrou-se do ponto de interrogação e fez várias perguntas aos seus botões. Depois desenhou mentalmente um ponto e vírgula e respirou fundo. Sentou-se à secretária, corrigiu o texto do mau aluno a vermelho e escreveu no final: "Atenção aos sinais de pontuação".
De seguida o professor fechou a caneta e ficou a olhar para ela alguns segundos. Pensou: "Abre um parêntesis" e, de repente, sem pré-aviso, começou a chorar convulsivamente como nunca chorara antes. O seu descontrolo era tal que chorou até adormecer de exaustão.
Acordou de madrugada com a cabeça em cima do mesmo texto, tinha os olhos inchados e a boca seca. Leu a frase a vermelho: "Atenção aos sinais de pontuação" e releu-a várias vezes. O professor não percebia o que lhe tinha acontecido e quis fingir que nada se tinha passado. Pensou: "Ponto final, parágrafo" e gritou enraivecido: "Fecha parêntesis, fecha parêntesis!". Dir-se-ia que o professor não conseguia controlar o que sentia.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Frustrações

Há duas coisas que detesto:
uma é ter um chocolate no bolso e descobrir que está derretido;
outra é que me passem à frente na fila como quem não quer a coisa.

A primeira frustração é de mim para mim:
recrimino os meus bolsos, revolto-me, engulo a água contracorrente que nasce na boca.

A segunda frustração é de mim com os outros:
somos tristes, estendemos a tigela para a sopa e comemo-la em silêncio, mais sozinhos do que queríamos.

O chocolate derretido no bolso dá-me vontade de bater com a mão na minha testa.

Quando me passam à frente, dá-me vontade de bater com a mão na testa dos outros.

Lembro-me agora que bato mais na minha testa do que na dos outros.

Hipótese:
talvez ponha chocolates no bolso com mais frequência do que perco o meu lugar na fila.

Tento contar com os dedos das mãos e apercebo-me:
nunca bati com a mão na testa de ninguém.
Nunca. E sinto-me frustrada com isso.

Bato na minha testa para aliviar a frustração, mas ela estala na cabeça e permanece.

Cresce-me água na boca.
Imensa água na boca.

Vou por aí bater na testa dos outros.
Como quem não quer a coisa.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Conversa de final de dia

Um amigo disse ao amigo: "Epá, isto em Espanha deve estar um calor!" e o outro acrescentou: "Devíamos lá estar agora!". Os dois beberam da cerveja, daí o silêncio repentino. O primeiro amigo era mais demorado do que o outro, mais sôfrego, mais entusiasmado. Por ser melhor bebedor, tinha mais ideias e nesse segundo propôs: "Epá, podíamos fingir que íamos de férias! Só para chatear a malta. Tirávamos dias, fazíamos reservas, líamos guias. O pessoal ia ficar cheio de inveja!". O outro considerou a sugestão e olhou para o copo como quem procura respostas. Bebeu um gole demasiado curto e perguntou: "E depois íamos mesmo para Espanha?". O outro abriu os olhos atrás do copo, acenou com a cabeça, engoliu a cerveja à pressa. "Claro, íamos de sandália no pé e chapéus no cocuruto! E depois chegávamos lá e fingíamos mesmo que éramos turistas, só para chatear os trabalhadores da praia. Iam pensar: Olha, dois turistas contentes! e roíam-se de inveja." O outro ficou contemplativo, parecia gostar da ideia. Perguntou ainda: "E por que não vamos mesmo de férias para Espanha?". Houve um silêncio quase demorado, durante o qual nenhum dos dois bebeu da cerveja por acabar. Olharam-se surpreendidos, depois o menos bebedor sorriu e começaram os dois a rir muito alto. Foi um riso em simultâneo, escorregavam nas cadeiras com o peso das gargalhadas. Depois brindaram com lágrimas nos olhos, ainda riam enquanto bebiam, um engasgou-se, o outro não. Disse o melhor bebedor: "Que ideia tão estúpida!" e o outro desatou a rir outra vez.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Os leitores

No lançamento do seu livro, o escritor anunciou: "Não escrevo mais". Os leitores ficaram em estado de choque, preocuparam-se com o escritor e depois com o homem atrás do artista. Depois olharam para os seus umbigos e preocuparam-se com as suas leituras de Verão, alguns desmaiaram, degeneraram, desidrataram. Alguém disse: "Há tomates espanhóis no supermercado" e os leitores afluíram sôfregos ao supermercado, compraram tomates, comeram alguns e os outros atiraram ao escritor demissionário. A associação de protecção dos leitores tomou medidas imediatas, marcou a greve para os meses do Verão causando o caos no mundo livreiro. Fecharam-se livrarias e editoras, queimaram-se livros, penduraram-se cartazes na rua: "Queremos artistas responsáveis". Numa manifestação de 20 mil pessoas em Lisboa, várias dezenas de leitores invadiram a casa do escritor, amarraram-no à sanita, pontapearam-no. Depois soltaram-no, arrastaram-no até à rua, levaram-no para a prisão. Deram-lhe uma caneta e um caderno. Ordenaram: "Escreve!" e ele escreveu porque estava desesperado (o desespero inspira). Os leitores voltaram a ser felizes.
Meses mais tarde, o escritor disse: "Não escrevo mais!" e os leitores pontapearam-no outra vez. Num fôlego sofrido que parecia o último, o escritor murmurou: "Não consigo escrever!". Os leitores acharam o caso realmente insólito, discutiram o caso, chamaram um especialista. O médico dos artistas chegou a horas, examinou o escritor, deu ordens: "Abra a boca!", "Diga Aaaaaaaah!", "Inspire!", "Expire!", "Levante-se!", "Sente-se!". No final o doutor arrumou o estetoscópio e fez uma careta grave. Disse: "Tem falta de abstracção!" e os leitores ficaram horrorizados, era uma doença rara, quase sem cura, havia quem morresse disso. Que fazer?
Os leitores reuniram-se em plenária para a votação final e decidiram falar com a musa inspiradora. Ao vê-la, o escritor sorriu, a musa deu-lhe um beijo seco e perguntou: "Então, já passou?" e ele abanou a cabeça desanimada. A musa saiu da cela encolhendo os ombros e anunciou aos leitores: "O escritor precisa de férias!". Os leitores revoltaram-se, ameaçaram processá-la, atiraram cadeiras ao ar, apresentaram contas, diziam percentagens. Mas a maré vazou e com ela partiu a musa inspiradora na sua barca silenciosa. Marcaram encontro para o dia seguinte.
Após uma negociação que se arrastou por mais de uma semana, os leitores e a musa celebraram um contrato, no qual os leitores se comprometiam a dar anualmente uma semana de férias ao escritor. Soltaram o prisioneiro numa cerimónia orquestrada e o escritor partiu de Belém com a musa. Os leitores despediram-se dele no cais, abanavam as cabeças com os soluços e os lenços brancos com as mãos. O escritor ficou a vê-los e, de repente, começou a chorar. A musa inspiradora levou as mãos à cabeça, disse-lhe palavras meigas, lamentou para dentro: "Artistas!". O escritor ficou muito tempo de olhos postos em Belém. Depois pediu à musa: "Não me leves para longe!" e começou a escrever. Tinha saudade da prisão.

PS – Esta história baseia-se num único facto real: há quem vá de férias amanhã e só volte para a semana, ou seja, dia 20 (escusam de me procurar por aqui entretanto)! O resto é tudo ficção: o escritor só podia ser inventado, os tomates não vinham de Espanha, a musa era uma boneca mecânica, o médico nem sequer tinha canudo e os leitores eram muitos mais violentos (tive a aligeirar a coisa).

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Mais olhos que barriga

O filho diz à mãe: "Tenho mais fome que barriga!" e a mãe corrige-o. O menino não percebe como é possível ter-se mais olhos que barriga e está na idade dos porquês, por isso pergunta: "Porquê?". A mãe explica que, quem tem mais olhos que barriga come mais com os olhos do que com a barriga. O menino fica chocado, estava realmente convencido de que só se podia comer com a boca. Pergunta: "Como é que se come com os olhos?" e a mãe ri-se. "Quem tem mais olhos que barriga, tem olhos muito maiores do que a barriga, ou seja, tem mais vontade de comer do que fome". O menino olha para o seu umbigo e imagina-se com olhos maiores do que a barriga. Pensa: tinha de ter olhos enormes para serem maiores do que a barriga. Assustado com o pensamento, quer saber: "E quem tem mais olhos que barriga?". A mãe diz com um ar dramático: "O lobo mau". Riem-se os dois e a mãe explica: "De vez em quando, toda a gente tem mais olhos que barriga!". Com a ajuda dos dedos, o menino abre muitos os olhos e espreita o seu reflexo no vidro. Não, não tem olhos maiores do que a barriga. O menino parece mais aliviado. Depois olha para a barriga da mãe e fica com medo. Pergunta: "De vez em quando também tens mais olhos que barriga?" e a mãe responde divertida que sim. O menino quer saber quando, mas a mãe não sabe dizer. "E o pai gosta de ti na mesma?". A pergunta surpreende-a, provoca-lhe risadas, é a vez de a mãe perguntar "Porquê?". O menino encolhe os ombros e diz: "Não sei! Com essa barriga tão grande, deves parecer um monstro!".

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Com a cabeça no tecto

A senhora do metro informa-me: "Para o mês que vem já não tem desconto!" e eu, apesar dos bons ouvidos e do raciocínio rápido, pergunto: "Como?". A senhora do metro explica-me que no próximo mês já não tenho idade para ter desconto para jovens. Esboço um sorriso esclarecido, compro o último passe com desconto e desço as escadas rolantes. O metro tinha acabado de passar e fico à espera do próximo. Enquanto espero, olho para dentro, penso na vida (há dias assim): eu e os meus pais a rirmo-nos, eu de olhos fechados na praia, eu a vir da escola com o João, eu a correr para o comboio, eu a beber café, eu e a Marta no trem velho, eu e a Isabel nas Avencas, eu na faculdade de tantas letras, eu e o Henrique no Pico, eu no aeroporto de Lisboa, a minha mãe a dizer: "Não chores!", eu noutras cidades, noutros aeroportos, noutras vidas. Depois faço planos: casar, ter filhos, escrever um livro, plantar uma árvore, comprar uma casa, ter desconto para reformados. Finalmente começo a rir de mim própria, abano a cabeça, lembro-me do Peter Pan, do nosso pacto de sangue, da Sininho aos pulos, da Terra do Nunca e, de repente, bato com a cabeça no tecto.
É que entretanto tinha começado a voar na paragem do metro e nem tinha dado por isso. Tenho uma sensação de vertigem quando olho para o chão, mas abro bem os braços e equilibro-me. Digo: "Detesto o metro" e voo dali para fora. Quando chego à rua, já voo a grande velocidade. Sem querer, arranco o chapéu de uma senhora e peço desculpa num berro. Um miúdo com óculos de Harry Potter corre atrás de mim e grita-me: "Então e a vassoura?". Olho para ele divertida, o cabelo à frente da cara: "Não sou dessa geração!" e a mãe do rapaz, que o espera nas escadas do metro, sorri-me um sorriso cúmplice. O miúdo acena-me, eu aceno, a mãe acena. Mãe e filho reúnem-se outra vez na entrada do metro, abraçam-se e ficam a ver-me desaparecer nas nuvens. Penso: "Gosto do vento!".

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Lei de Murphy

Independentemente da hora a que acordasse, o engenheiro era sempre o último a chegar ao trabalho. Se acordava cedo, atrasava-se. Se acordava tarde, já era tarde. Se ia de carro, a sua fila era sempre a mais lenta. Se ia de autocarro, perdia-o (mesmo que corresse), sendo que o segundo tardava sempre em chegar. Praguejava: "Cabrão do Murphy!".
O engenheiro começava a fumar pelas 7 da manhã, assim que saía de casa. Quando chegava à paragem, esmigalhava a beata contra o chão. Se viesse cedo, ainda arriscava acender outro cigarro, mas o autocarro teimava em chegar depois do primeiro bafo. Conclusão: a sua manhã começava invariavelmente mal.
Até que, numa noite como as outras, antes de adormecer, o engenheiro disse de si para si: "Já sei!" e no dia seguinte acordou tarde, cantou no duche, comeu torradas com manteiga, beijou a mulher antes de sair de casa, assobiou pela rua.
Quando chegou à paragem disse entre dentes: "Toma, cabrão!" e acendeu um cigarro com o gesto perfeito das estrelas de cinema. Como previsto, depois do primeiro bafo, o autocarro chegou. O homem riu-se de felicidade. Afinal também havia maneira de contornar a lei de Murphy, o engenheiro sentia-se todo-poderoso. Começou a chuviscar, mas o homem não quis saber da água nos ombros (pela lógica, amanhã traria o chapéu-de-chuva e não haveria chuviscos). Pisou o cigarro recém-aceso e quando ia a entrar no autocarro, ouviu atrás de si: "Mas o que é isto?".
Era um agente da autoridade e o engenheiro olhou-o com respeito. "Sabe que pode ser multado por deitar coisas para o chão? Limpe lá as pontas dos cigarrinhos!". A porta do autocarro fechou-se antes de o homem entrar mas, mesmo assim, o engenheiro petrificou em frente à estrada e assim ficou durante cinco segundos, a sentir o peso da chuva nos ombros. O polícia esperou-o pacientemente. O engenheiro baixou-se e apanhou as duas beatas em silêncio. Praguejou para dentro: "Cabrão do Murphy!". Não havia recipientes do lixo ali perto, por isso o homem atravessou a rua, desceu até à rotunda e deitou as beatas num contentor verde.
Voltou para a paragem e o polícia felicitou-o pelo acto. Depois deu-lhe uma breve lição de cidadania. Não se contendo, o engenheiro declarou gravemente: "Vou fazer queixa de si!" e o outro riu-se indignado: "De mim? A quem? Aqui quem manda sou eu!". Desafiaram-se com um olhar afiado, afinado, afidalgado. O engenheiro tirou um bloco de notas do bolso da camisa. Depois tirou uma esferográfica barata, olhou-a com interesse, apertou-lhe a cabeça e a caneta fez clic-clic. Pediu com ar importante: "O seu nome, por favor" e na boca do outro explodiu uma gargalhada, tinha agora o queixo e o peito para fora.
"Chamo-me Murphy!", disse o agente já recomposto, "Escreve-se com ph e tem um ípsilon no fim". O engenheiro petrificou outra vez e foi homem-pedra durante cinco segundos. Entretanto, ao fundo da rua, aparecia mais um autocarro mas nenhum dos homens deu por isso. O engenheiro escreveu demoradamente o nome do polícia enquanto este o soletrava. Desafiaram-se outra vez com os olhos. O homem viu o autocarro, quando este já estava parado à sua frente, mas não quis correr. Tinha medo do ridículo.
O polícia afastou-se devagar e atravessou a rua fora da passadeira. Gritou-lhe já do outro lado: "A minha lei é transcendente!". O autocarro partiu e o engenheiro petrificou outra vez em frente à estrada. E agora sim, chovia torrencialmente.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Discurso falacioso

Tenho pouco tempo. Tenho muitas ideias. Logo, tenho muitas ideias em pouco tempo. Tenho pouco tempo para as ideias que tenho. Tenho muitas ideias para o tempo que tenho. (Não tenho tempo, logo não tenho ideias.) Se tivesse metade do tempo, teria metade das ideias. Preciso de um quarto de tempo para um quarto das ideias. Quero apenas uma ideia. Quanto mais tempo, mais ideias tenho. O tempo que tenho é proporcional à quantidade de ideias. Tenho muitas ideias, logo tenho muito tempo. Preciso de limitar o tempo para limitar as ideias. Divido o tempo em unidades. Conto as ideias que tenho. Tenho uma ideia por cada 100 unidades de tempo. Tenho 100 unidades de tempo, logo tenho uma ideia. Tenho 50 unidades de tempo, logo tenho metade de uma ideia. Perco todo o tempo que tenho para uma ideia. Tenho poucas ideias porque demoro muito tempo a tê-las. Tive uma ideia. Logo, tenho muito tempo. Para ter duas ideias demoro o dobro do tempo. Quanto mais ideias tenho, mais tempo terei para elas. Preciso de ter ideias para criar tempo. (Não tenho ideias, logo não tenho tempo.) Tenho todo o tempo do mundo para as minhas ideias.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Vermelho

Era uma tarde quase noite e estávamos no sofá. Dizíamos palavras vermelhas que saíam pesadas e vagarosas, letra ante letra. Por vezes, entrava pela boca um vinho arredondado que penetrava as veias, confundindo-se com o próprio sangue. Quando a tarde foi noite já a cor volumosa do néctar tinha manchado os teus lábios e lembro-me disso, do vermelho líquido e espesso do primeiro e único beijo (duas línguas répteis entrançadas num nó direito). Nessa altura éramos apenas duas bocas, tínhamos a cor inquieta das cerejas. Disse-te: Engole-me! e a tua boca abriu-se um pouco mais, pegou-me ao colo, pousou-me devagar. Foi uma noite bonita. Obrigada por me trazeres na tua língua, gosto da tua boca por dentro, de mergulhar na tua saliva, de ver as estrelas do teu céu vermelho.


(Daqui a muitos anos talvez alguém nos encontre no fundo do lago, à sombra dos nenúfares: tu agora concha e eu redonda, em forma de pérola.)

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

A cozinheira preta

Jamais se esqueceria dela, do volume da cozinheira na casa, as ancas enormes, o peito pato-do-mato, as pernas grossas e as panelas redondas nos braços duros. Ninguém se lembrava do nome da cozinheira e agora, que o tempo era cada vez menos real, o seu rosto era cada vez mais difuso. Um dia a mulher decidiu que a cozinheira era parecida com Cesária Évora, substituindo-a para sempre pela cantadeira. De tal forma que, quando ouvia o primeiro verso de Sodade se lembrava da cozinheira a cantar para os tachos, o dialecto sempre risonho e o nariz dilatando no vapor da cozinha, como se a canção fosse dela. Quem mostra' bo ess caminho longe?, perguntava-se agora. Naquele final de tarde lembrou-se da cozinheira. Estava em Gibraltar com os filhos e a mais nova apontou para o mar dizendo: "Ali já é África". O pai falou da Conquista de Ceuta e a mulher ficou a pensar na sua. Veio-lhe à memória a despedida, a cozinheira rindo sempre, o choro da menina a colar-se ao corpo como suor.
A cozinheira enorme, agora com o rosto de Cesária Évora, dizia-lhe com o mesmo sorriso: "Se calhar é melhor assim, menina, cada um para seu lado, assim fica tudo preto no branco. Talvez não voltes mais aqui, mas não tem mal, desde que faças coisas boas do outro lado. A vida é como os tachos da cozinha, menina, não se sabe o que fazer com ela até lhe darmos uso. É preciso aprender a mexer nos tachos, é muito difícil, tudo tem a sua medida certa, o seu tempo de cozedura, é preciso prestar atenção aos pormenores. Não te esqueças dos pormenores, menina. Faz coisas boas na vida, cozinha bem, convida os teus amigos para a tua casa, arranja um moço bonito, dança kizomba com ele, dança sempre kizomba!".
Estava frio e era tarde. Os miúdos entraram no carro primeiro, o pai abriu a porta da frente, ela a do outro lado, quase sincronizados. Olharam-se antes de entrar. Ele perguntou: "Que fazemos agora?" e ficou um segundo suspenso a olhar para ela. Ela pensou: "O moço bonito" e disse: "Vamos dançar".

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Agosto

Entre, entre, Senhor Agosto, muito gosto, sente-se aqui neste encosto que eu ando bem coxo, o que o traz a este posto, belo cachopo, espero que seja o ar de Agosto e o fogo posto no corpo dos moços, venham inglesas mete-nojo com cinturinhas pele e osso, venham 40 graus e postas de bacalhau, haja grilos e mamilos tranquilos que eu ando farto disto, quero o povo em alvoroço e biquinis de mau gosto, que em Agosto é tudo nosso, não há desgostos nem impostos, só azeitonas sem caroços, pernas ao léu de tirar o chapéu e o resto é céu estrelado, um beijo doirado no novo namorado e noites longas como as ondas, um corneto da Olá a andar de cá para lá, uma cerveja para já, a praia da Rocha bem-disposta e a merenda às costas, a tenda atrás do arbusto (ai, que susto) e por que não, pois então, se o Verão é só isto, ó petisco, e já me dói o pescoço, ó Agosto, de estar a comer um caracol de olhos postos no sol.