sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Setembro

Tenho frio
e lembro-me
daquele Setembro de sempre
quando o vento varria o tempo
da calçada.

Por dentro
era madrugada
e só as folhas contavam segredos.

Ao longe
um sol
alinhado ao centro

e a tristeza era bem-vinda
e mais bonita
por ser Setembro
e madrugada.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Contemplação

O quadro ocupava várias paredes, mas naquela altura isso era irrelevante porque as paredes deixavam de existir e o mundo era agora o quadro. As telas gigantes representavam um jardim e era tão bom olhar para elas, que a mulher se lembrou do Jardim do Éden. A arte emocionava-a e ela disse bem alto: "A mão de Deus nas coisas". A mulher chamou-se a si própria Eva e atravessou o quadro. Primeiro com a mão, depois um pé, depois o outro.
Tinha chovido naquela manhã, adivinhou, pois a relva estava húmida e as últimas gotas desequilibravam-se das árvores. A mulher estava agora nua e o seu corpo era tão branco que mais parecia uma estátua em movimento. Afastou a cortina de um chorão e sentou-se à beira do lago: era bom ouvir a água pousar nas margens.
Horas mais tarde sentiu-se sozinha e foi então que pensou no primeiro homem. Imaginou-o nu e branco como ela e antecipou o primeiro beijo. Depois levantou-se e encheu os pulmões de ar. Gritou: Adão!, mas nesse momento caiu sobre o jardim uma nuvem enorme e a mulher calou-se. A sombra ia descendo na sua direcção e Eva dirigiu-se a ela sem medo. Finalmente reconheceu cinco dedos enormes que, acariciando-lhe primeiro o rosto, a pegaram ao colo. A mão de Deus nas coisas.
Neste caso, era a mão do pintor. Vinha ver o seu jardim de tempos a tempos e gostava de colher os seus frutos. Pintor e obra olharam-se com demora, ele enorme e ela muito pequena.
Quem os vê, pensa: Um não existe sem o outro.
Mais uma história de amor.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Conto infantil para adultos: Cinderela sem pés nem cabeça

A Cinderela foi à praia. A água estava fria, mas mesmo assim a Cinderela mergulhou e logo de seguida perdeu o pé. Assustada, começou a procurar o seu pé pois sem ele não podia andar. Nisto apareceu a raia madrinha que lhe explicou o feitiço: "Não tens pé porque tens uma barbatana. Ou seja, hoje és sereia em vez de Cinderela".
A Cinderela feita sereia achou aquele discurso uma estupidez e quis saber qual o sentido daquele feitiço. A raia madrinha contou-lhe que, durante aquela tarde, passaria um marinheiro que se apaixonaria por ela. A Cinderela agora sereia riu-se. Na história que lhe cabia só havia príncipes e sapatos, por isso ignorou a raia madrinha e foi antes passear para o fundo do mar, que era realmente bonito. Tão bonito, tão bonito, que a Cinderela sereia se distraiu com as horas e, à meia-noite certinha, a sereia virou Cinderela. Uma vez que não conseguia respirar no fundo do mar, começou a nadar em direcção à superfície, mas infelizmente morreu a meio do caminho. Não tinha pés para tanto.
A raia madrinha chorou de desgosto mas o marinheiro não. Na história que lhe cabia não havia Cinderelas. Apenas sereias e a ilha dos amores.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Gesto repetido

Ao meu lado vem sentada uma rapariga e classifico-a de estranha. Senta-se muito direita e sacode a cabeça repetidamente com movimentos curtos, violentos, intermitentes. Traz o pescoço sempre tenso, a cabeça presa, prensada, pesada. Ao mesmo tempo vem a ler qualquer coisa. Não olho directamente para ela mas interesso-me pelo gesto repetido.
Interpreto.
Talvez corra no seu cérebro um pensamento eléctrico e haja um curto-circuito a meio que provoque pequenos choques na cabeça. Ou um qualquer brainstorming de electrões ferozes, ou uma frase negativa a circular no sangue, ou até mesmo um mandamento. Não matarás, não cobiçarás, não falarás, não pensarás em coisas boas.
A testa enrugada da rapariga lembra-me os rochedos do Cabo da Roca, imponentes, impenetráveis, inultrapassáveis. Os olhos movem-se irrequietos: abrem, fecham, semicerram. De novo sacode a cabeça. Adivinho sofrimento e tenho pena da rapariga. Se tivesse alguma fé que não somente a fé na sorte, rezaria por ela, acenderia uma vela, sacrificaria uma virgem, uma vaca, qualquer coisa.
Ganho coragem e resolvo espreitar o livro que lê (talvez a leitura seja a culpada pelo gesto repetido, todos nós vibramos quando lemos). Vejo linhas, símbolos e a única expressão inteligível é "molto fortíssimo". Reconheço uma pauta de música e vem-me à cabeça o solfejo, a professorinha ao piano e nós muito pequenos de flauta da boca, a clave de sol que ninguém sabia desenhar.
A rapariga apanha-me em flagrante e, de repente, é como se não falássemos a mesma língua. Finjo-me interessada: "É bonita a música?" e ela ri-se surpreendida. Diz que sim com a cabeça e não tem mais palavras para mim. Toda ela é melodia, daí o curto-circuito no corpo.
Interrompo novamente: "É uma música triste?" e ela olha-me como se nunca tivesse pensado nisso. Perdoo-a: "Sente, logo não pensa". Resolve dizer que não e fecha o livro. Já não sacode a cabeça e é nessa altura que vejo a caixa negra aos seus pés: parece resistente e tem a forma de um violino.
Dá-se um curto-circuito na minha cabeça. Não falamos a mesma língua, por isso não digo nada. Ouço um violino por dentro e sofro. Ordeno a mim própria: Não pensarás. Na paragem seguinte, a rapariga pega na caixa e sai do metro. Traz o livro debaixo do braço e parece-me feliz. Concluo: sofre mas não sabe.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Rinofaringite

Ouviu os ouvidos estalarem como balões e uma palavra perdida no ar. Repetiu de si para si: "Rinofaringite" e achou o título adequado à doença. Falaram-lhe do período de incubação e, nessa noite, ela sonhou com cubos. De manhã doíam-lhe os olhos e viu 54 quadrados de cores diferentes. Contou-os várias vezes como quem conta carneirinhos nas noites de insónia. Eram cor-de-rosa, cor-de-laranja, cor-de-céu, cor-de-árvore, cor-de-sol, cor-de-nada, tinham uma textura lisa e simpática, tocava-se-lhes e tinha-se frio. "São feitos de azulejo", concluiu. Nesse momento percebeu que o seu quarto era um cubo mágico e rodou-o incansavelmente à procura da solução. Depois tossiu e a boca jorrou quadrados multicolores. Na terceira noite perdeu a conta aos dias por os algarismos terem saltado dos lábios para o espaço. Olhava para os dedos e não sabia quantos tinha.
Certo dia saltaram-lhe da boca todas as letras possíveis e não sobrou uma palavra, uma sílaba, um som. As cordas vocais calaram-se em estado de choque e ela imaginou o vento para que o silêncio não fosse total. Finalmente, pela primeira vez em dias, levantou-se. Dobrou-se sobre si própria e da boca saíram cubos. De repente, vomitou a própria alma. Saiu cúbica e maleável com a flexibilidade impossível das serpentes. O corpo reconheceu a alma, era o cubo mágico da sua infância e amou-a por isso. No dia seguinte eram um só e ela cuspiu para o chão por prazer.
Anos mais tarde, numa manhã de sol, corpo e alma estalaram por dentro. Pensou: "Sou um cubo mágico" e olhou para dentro de si. Viu seis faces de si própria, cada uma com a sua cor. Era a sua solução matemática. Respirou fundo e o ar circulando por dentro como o vento circulava por fora lembrou-a da rinofaringite. Havia algo de terapêutico naquela palavra, uma espécie de viagem ao centro do eu. Uma doença em forma de cura.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

A casa (IV)

A nossa casa é um moinho:
roda sobre si própria como as crianças
e tem asas nas costas como os anjos.
Nela moemos o trigo do nosso pão.
Somos moleiros em queda livre:
fomos e viemos com o vento
como os pássaros que migram.
É o voo que dá fôlego à nossa casa.
Ou seja, é de vento que se faz o nosso pão.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Alegoria da caverna

Dizem-me: "Não és sombra do que eras!" e não percebo logo o sentido da frase.
Reajo sem pensar: olho para trás à procura da minha sombra e, em vez dela, vejo outra pessoa. Assusto-me e viro-me para a frente.
Não olho para trás durante muito tempo e imagino um monstro nas minhas costas, pronto para me devorar.
Lembro-me do sombrio Peter Schlemihl que se tornou sombra de si próprio depois de vender a sombra ao diabo. Penso: "Se não sou sombra do que era, hei-de ser sombra de outra coisa".
Fecho os olhos e regresso à infância, a uma noite de Verão em que Peter Pan voou pela minha janela deixando a sua sombra no meu quarto. (Era uma boa amiga a sombra de Peter Pan, brincávamos juntas pela noite fora à luz do candeeiro.)
Segredam-me ao ouvido: "Não tens sombra porque estás no escuro" e abro os olhos.
Não o podia ver, talvez fosse este o monstro nas minhas costas. Ouvia-o mexer em objectos estaladiços e de repente acendeu-se uma chama. E da chama nasceu a luz. Olhei para ele.
Tinha o rosto afunilado de Peter Pan, os mesmos olhos rebeldes. Pensei: "A criança feita homem".
Disse-me: "Há outra forma de luz lá fora" e levou-me pela mão. Podia ser este o diabo a quem Fausto vendera a alma e outros venderam o corpo, mas encolhi os ombros despreocupada. Ofereço-lhe tudo isso de bom grado por ser dono da luz. Caminhamos lado a lado com a dignidade com que os amantes caminham para o altar. Estamos fora da caverna.
Não somos sombra do que éramos e a luz atravessa-nos ao meio. Ou seja, não temos sombra e trocamos de alma como quem troca de corpo. Somos livres.


Nota informativa: volto dia 18 de Setembro depois de uma viagem pela luz.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Recém-nascer

Para a Nina

A certa altura o feto estava de cabeça para baixo mas não sabia. Sentia-se bem naquela posição, tinha finalmente aprendido a girar dentro do balão de água. Passado muito tempo o feto abriu os olhos e contemplou as suas mãos. Já tinham pequenas rugas e o feto interessou-se pela trajectória complicada daquelas linhas. No céu do ventre as nuvens ficaram sisudas, pintaram-se de um vermelho demasiado escuro e de repente um raio de luz dividiu o céu ao meio trazendo à memória as imagens dos santos em dias de milagre. O feto disse: "Que belo dia para nascer!" e voou ao encontro do céu, onde o esperavam duas mãos mas, em vez de subir, o bebé caiu e essa mudança de perspectiva assustou-o. Gritou: "Quero a minha casa".
Um corte de tesoura e a ligação quebrou-se abruptamente. O recém-nascido chorava de terror, sangrava da barriga, tinha frio, detestava a vida fora de casa. Disseram: "É um menino" como se o bebé pudesse ser outra coisa, por isso o recém-nascido pensou: "O que sou hoje é um mero acaso". Deitaram-no no colo da mãe e ele lembrou-se do balão de água, do colchão macio da placenta. Perguntou-se: "Para quando o regresso?". Mãe e filho olharam-se pela primeira vez. Era um olhar surpreendido, cheio de tempo e de espaço. Ela disse: "Sou a mãe!" e ele reconheceu a voz. Ficou a ouvi-la falar e concluiu: "És a minha casa vista por fora!".

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

A casa (III)

A mulher do 2.º direito estava a aspirar a casa. Agachou-se um pouco para enfiar o tubo debaixo da cama, mas o bocal começou a puxar o atacador de um sapato escondido atrás da colcha. A mulher urrou impaciente, deixou cair os ombros, desligou o aspirador com um pontapé e o enrolador automático sorveu a ficha à velocidade com o que o filho mais novo engolia o esparguete. A mulher abriu a janela do quarto, pegou no aspirador à bruta e atirou-o pela janela fora, levando-o primeiro ao alto da cabeça qual king kong de dentes cerrados.
Depois coleccionou outros aparelhos domésticos e atirou-os também pela janela: o ferro de engomar, o microondas, a batedeira, a televisão, a aparelhagem, as colunas de som, o leitor de DVD, o computador portátil, a impressora a lazer do filho mais velho, o telefone sem fios (a propósito de fios, esquecemo-nos de mencionar que a mulher perdera algum tempo a desenrolar cuidadosamente os fios da televisão e da aparelhagem para poder separá-las do armário).
No final a mulher avançou para as cadeiras, os quadros, os cristais decorativos, o banco de camurça, a enorme escultura em madeira de um preto raquítico. Quando a polícia chegou a mulher estava a rasgar lençóis, mas apercebera-se a tempo do carro a estacionar lá fora e correra escadas abaixo, saindo pela porta das traseiras.
Correu durante horas, parou para comer qualquer coisa numa tasca e continuou a correr. De repente estava no Cabo da Roca, desequilibrou-se na ponta da terra, agarrou-se à rocha e desceu pelo desfiladeiro sem medo. Como a terra acabava, a mulher do 2.º direito atirou-se ao mar e nadou disciplinada, braço ante braço, até que um pescador a pescou por engano e a levou para uma ilha, onde atracou de seguida um cargueiro que a levou a bordo até aos Estados Unidos.
Chegados à terra prometida, a mulher continuou a correr, pedia perdão, informações, boleia, dinheiro. Chegou a São Francisco, tirou uma fotografia à ponte vermelha por ser igual à de Lisboa, apanhou um ferry boat para Alcatraz e aí conheceu o neto de um ex-prisioneiro que sabia de cor as histórias do avô e as contou uma a uma durante mil e uma noites em águas pacíficas. Almoçaram juntos em Tóquio e despediram-se para sempre cheios de protocolo em Quioto. A mulher percorreu o Japão a correr e foi feita refém na Coreia do Sul por um terrorista da Coreia do Norte. Devido à inexistência de um intérprete com a combinação linguística coreano-português, a mulher do 2.º direito foi libertada e atada a um lugar executivo do voo que ligava a Coreia do Sul à cidade Londres, onde foi recebida pela família em directo para a televisão. No dia seguinte, chegou a casa acompanhada pelos filhos e encontrou todos os aparelhos no sítio: a televisão, a aparelhagem, o leitor de DVD, o telefone. Calou-se de espanto e fechou-se na cozinha. Talvez o marido tivesse estado todo aquele tempo a arranjar os aparelhos, talvez tivesse comprado tudo de novo com as poucas poupanças, mas a mulher preferia pensar que, na verdade, aquele ataque de nervos nem tinha acontecido, que ela tinha voltado atrás no tempo durante aquela volta ao mundo, que era dona de um poder poderosíssimo. Riu-se sozinha enquanto lavava a loiça e começou a fazer planos para várias viagens à volta do mundo que a levassem até aos seus 20 anos. Num segundo, arrependeu-se de toda a vida. Atirou os pratos ao chão enquanto prometia a si mesma: "Não serei a mulher do 2.º direito" e deitou mãos à obra. Saiu pela porta das traseiras e desta vez foi de carro até ao Cabo da Roca para poupar energias.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

A casa (II)

No Sábado, o senhor do fundo da rua desceu a rua, foi almoçar fora e quando voltou, não sabia onde morava. Era um senhor muito jovem, filho único, divorciado, trabalhador por conta de outrem. Dir-se-ia que a sua intuição era boa pois não estava longe do seu prédio e a sua intenção era ainda melhor porque começou a bater à porta dos vizinhos sem pudor nem receio. Mas infelizmente, naquele bairro ninguém se metia na vida alheia porque, verdade seja dita, ninguém queria saber de ninguém e nenhum vizinho sabia ao certo onde morava o senhor do fundo da rua.
O acontecimento era verdadeiramente estranho, porque o senhor lembrava-se de tudo o resto. Começou a exercitar a memória e sabia quase tudo: o preço do café no café da rua, o horário de funcionamento, o sabor a ferrugem da água da torneira, até o nome da empregada e da filha da empregada. Chamavam-se as duas Joanas e a Joana-mãe ria-se muito alto. Quando lhe contou o sucedido, a Joana-mãe ria-se às gargalhadas, batia com as mãos nas pernas, dobrava-se ao meio com uma flexibilidade impossível. "Beba lá um café que já se lembra", mas o senhor não se lembrou.
A Joana-filha era já uma adolescente em idade avançada ou pelo menos portava-se como tal. Ria-se baixinho e andava devagar como as mulheres verdadeiramente adultas. Estendeu um caderno da escola ao senhor do fundo da rua e uma caneta muito trincada com uma tampa disforme devido à violência dos dentes contra o plástico. Disse: "Escreva um número de telefone que saiba de cor e depois ligue daqui a perguntar onde fica a sua casa". O senhor não pensou logo no carácter absurdo daquele telefonema. Pelo contrário, pareceu-lhe uma ideia de tal forma genial, que se concentrou na tarefa e desatou a escrever algarismos de forma convulsiva: o número de conta, o número da segurança social, o código postal, o número de bilhete de identidade, o código secreto do cartão multibanco, o PIN do telemóvel, a data de nascimento do filho e, de repente, um número de telefone. Mostrou o papel orgulhoso e a Joana-mãe ligou entusiasmada. Passou o telefone ao senhor do fundo da rua mas ficou do seu lado, ouvindo a conversa.
A ex-mulher atendeu e o senhor apercebeu-se de que a sua voz não tinha mudado em anos, era uma voz em estado puro, sempre tão impenetrável, impermeável, imperdoável. Teve vergonha da sua própria voz por isso não falou logo, mas a Joana-mãe bateu-lhe com força nas costas e ele tossiu as palavras. Disse com a voz dorida: "Não sei para onde ir!". As Joanas entreolharam-se incrédulas, não era uma boa maneira de começar o discurso. O senhor do fundo da rua apercebeu-se a tempo do seu ridículo e desligou o telefone. Ficaram em silêncio.
Não tinham passado 10 minutos. Certamente 5 e, com alguma probabilidade 7, mas não tinham passado 10 minutos. O senhor descia a pé e a ex-mulher subia de carro, encontraram-se a meio da rua. A ex-mulher saltou do carro num segundo como uma rã que abandona um nenúfar. Olharam-se estupefactos, há anos que não se falavam. Tinham-se encontrado 3 vezes por causa de assuntos familiares (ela dizia asneiras entre dentes, ele trincava a língua, os dois davam pontapés nas mesas, acenavam cordialmente à distância). Agora ali estavam, frente a frente, sem pretextos familiares nem o filho único, o único elo entre os dois. Ela disse: "Eu também não" e, sem darem por isso, beijaram-se. Queriam esconder-se e enfiaram-se um no outro, era uma reacção mais ou menos normal. O senhor do fundo da rua lembrou-se de repente da sua morada. Repetiu-a de si para si enquanto subiam a rua e sentiu-se aliviado quando a chave rodou na porta. Entraram em casa e não saíram durante muito tempo, embora este dado seja questionável, pois naquele bairro ninguém queria saber de ninguém e consequentemente não se sabe ao certo a que horas desceram à rua.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A casa (I)

Tinha pânico de se esquecer das chaves de casa, por isso a senhora do rés-do-chão verificava três vezes se as trazia no bolso antes de sair. Às vezes, não confiando no tacto, tirava-as do casaco para ver com os próprios olhos se o porta-chaves de três guizos trazia as chaves consigo. Tinha o hábito de trancar a porta mesmo quando só ia à padaria do lado. Antes de sair do prédio, apesar dos guizos cantarem a cada passo, metia a mão no bolso e cumprimentava as chaves mais uma vez.
Portanto, naquele Domingo, qual não foi o seu espanto quando, no regresso a casa, tirou do bolso um porta-chaves demasiado leve. O cantar dos três guizos parecia mais pobre, como se alguns membros da banda não estivessem presentes. A senhora examinou o objecto com as mãos e verificou o impossível: o porta-chaves estava vazio, não havia uma única chave pendurada nos três guizos. O mistério era de tal forma misterioso que a senhora nem o questionou. Olhou para o chão, meteu a mão em todos os bolsos, espreitou debaixo do tapete e nada, as chaves tinham realmente desaparecido. Era um Domingo demasiado agradável para os vizinhos estarem em casa e, por ser uma pessoa informada, a senhora achou que os bombeiros não atenderiam o telefone por causa dos incêndios de Verão.
Sem pensar duas vezes, a senhora fez-se à estrada. Era a primeira vez que andava pela rua sem um destino concreto e o coração batia nervoso atrás da pele. Depois, ao dobrar a primeira esquina, o coração entusiasmou-se com tanta rua por explorar, por isso encheu-se de sangue e deu ordens ao corpo. A senhora riu-se satisfeita, estava contente por alguém lhe indicar o caminho. Dentro do bolso, os três guizos marcavam o compasso com o seu cantar. Ao longe, mais pareciam risos de meninos depois de fazerem uma asneira.