segunda-feira, 18 de junho de 2012

Previsão Meteorológica, Bruxelas

Sete horas e só o tempo acontece, nada mais. No céu, nuvens densas e escuras. Não, uma só nuvem densa e escura. Possibilidade de precipitação: 80%. Cada vez mais densa, cada vez mais escura. Períodos de céu muito nublado. Máximas previstas para hoje: 18º C. Sete e três. Trevas. Condições favoráveis à ocorrência de trovoada e aguaceiros fortes. Qualquer coisa surge, mas não o dia, não o sol. No céu, branca e intermitente, uma luz acende e apaga. Uma luz acende e apaga, mas ninguém vê, porque as pessoas não veem quando dormem. Humidade: 60%. As pessoas dormem. Qualquer coisa acontece. Sete e um quarto. Um estrondo magnífico, de Juízo Final. As pessoas que dormem acordam. As pessoas que dormem levantam-se, descabeladas, espreitam o céu com os seus olhinhos pequenos. Nos seus olhinhos, qualquer coisa acontece. Qualquer coisa terrível, terminante. Previsível. O vento sopra moderado de sudeste. Sete e dezoito. Eventual formação de lençóis de água. As pessoas que dormem tomam banho. Penteiam os cabelos, vestem-se, saem de casa. Possibilidade de cheias rápidas em meio urbano. As pessoas que dormem enfiam-se num buraco muito fundo. Sete e trinta e nove. Um homem toca saxofone no buraco muito fundo. As pessoas que dormem ouvem. Um bramido de outro mundo e o metro chega. Previsível. Possibilidade de inundações de estruturas urbanas subterrâneas. As pessoas que dormem entram no metro e partem. Qualquer coisa acontece. Qualquer coisa terrível, terminante. Mas as pessoas que dormem não veem. Dentro dos seus olhinhos, um céu muito nublado, possibilidade de aguaceiros. Uma luz intermitente que acende e apaga. Mínimas: 12º C.
Farta desta terra.
(A chamada gota de água.)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Senhora Coisinha

Era muito magra e curta, a Senhora Coisinha. Acabava logo ali, pela anca dos outros, o que era francamente caricato, tendo em conta que a Senhora Coisinha batia frequentemente com a cabeça nas nádegas ampliadas das outras mulheres ou nos gigantones órgãos masculinos, que se atarantavam a seguir, de cabeça no ar. Por estas e outras razões, a presença da Senhora Coisinha, ainda que quase insignificante, era muito incomodativa e tão indesejada como a de um inseto: aparecia em sítios e ocasiões inesperadas e as pessoas, por vezes, assustavam-se, ainda que fossem muito maiores do que ela.
A Senhora Coisinha não era anã. Sabemos isto porque as suas pernas e a sua cabeça eram proporcionais ao resto do corpo. Também não era uma criança nem uma jovem franzina, nada disso. A Senhora Coisinha era uma senhora para os seus 55 anos, vá, e tinha mamas, vagina e útero como as outras mulheres, embora em menor dimensão, proporcionais ao resto do corpo. A Senhora Coisinha era, aliás, atraente quando vista ao perto através de um monóculo especializado ou de uma lupa e não tinha quaisquer complexos por ser tão pequenina. Por exemplo, se fosse preciso saltar para chegar a um balcão, ela saltava. Se fosse preciso gritar para a ouvirem, ela gritava. Se fosse preciso subir a um banco para ver um concerto, ela subia. Sem qualquer problema. A Senhora Coisinha era, portanto, uma pessoa prática e esforçada, vislumbrava em cada desafio uma oportunidade. Em dias promissores, que eram muitos, chegava até a sentir que a sua pequenez era a sua maior grandeza, porque valia tanto como as restantes pessoas perante a lei e a moral, mas era pequena o suficiente para ver os pormenores. E isso, no entender da Senhora Coisinha, era uma mais valia, um grande privilégio, um recurso preciosíssimo, diga-se, porque os pormenores, pensava a Senhora Coisinha, eram mais importantes do que o todo.
No entanto, as outras pessoas, que eram colossais e meio cegas como ciclopes, não estavam de acordo. O todo era fundamental, o horizonte era fundamental, assim como o contexto, o panorama, a macroeconomia, a sociedade. Por causa disso, os encontros com a Senhora Coisinha na farmácia ou no supermercado estragavam-lhes o dia. Eram minudências desnecessárias que as distraíam da visão geral.
Mas a verdade verdadinha é que as pessoas grandes se sentiam ridículas ao pé da Senhora Coisinha. Estavam constantemente a dar-lhe empurrões e pisadelas porque não a viam no seu caminho. Contudo, porque estavam em maioria, apontavam os seus dedos gordos na direção da Senhora Coisinha e riam-se.
O riso das pessoas grandes fazia imenso barulho, mas a Senhora Coisinha estava-se nas tintas. Fazia as suas comprinhas minúsculas e seguia em frente, concentrada como uma formiga. Pensava: Ainda hei de rir melhor. E acreditava nisso, ainda haveria de rir melhor.
Infelizmente, nunca chegou a rir melhor, porque certa manhã de luz amena, um homem maljeitoso sentou-se num banco de jardim e matou a Senhora Coisinha, que estava descansadamente a ler um livro pequenino. Era um acidente evitável, lamentável, lastimável, diziam as pessoas grandes, que gostavam de falar a rimar. Depois, cavaram um pequeno buraco no jardim e atiraram a Senhora Coisinha lá para dentro. A seguir lavaram as mãos, porque eram muito asseadas.
Nunca mais ninguém falou da Senhora Coisinha e, de repente, era como se a Senhora Coisinha nunca tivesse existido, para o bem da visão geral, da sociedade, da macroeconomia.
Mas tinha existido, a Senhora Coisinha. Existia ainda, existiria sempre. Continuava na memória das pessoas grandes, incomodativa como um inseto, como um pormenor.
E as pilas dos homens grandes nunca mais foram as mesmas.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Chove para aí um lago ou um rio, a ver se eu me ralo.

Chove tanto fora da cabeça que nem dá para ouvir os pensamentos que correm dentro, o que não é uma coisa nada má, pelo contrário, porque os meus pensamentos – já de si pobres de espírito – em dias de junho com chuva têm um certo Q de dilúvio e eu não gosto nada de pensamentos torrentosos, blargh. Portanto, olha, chove para aí um lago ou um rio, a ver se eu me ralo. No final do dia, passo aí a ver se dá para pescar uma sardinha assada, por exemplo, mas até nem faço questão, porque as espinhas às vezes ficam encravadas no esófago e uma pessoa fica com os olhos vermelhos, farta-se de tossir, é horrível. Se bem me lembro, eu não gosto nada de ir aos Santos. Está sempre montes de gente expansiva nas ruas, não dá para ouvir o telemóvel, é uma confusão. E, se me distraio, vou de sandalinhas e ainda me arrisco a cortar o dedo grande num vidro ou assim. Nah, é muito melhor estar aqui. A trovejar dentro da cabeça sem sentimentos nem nada, só trovões e chuvinha boa para lavar as ruas. Pelo menos, olha, sempre poupo uma tempestade num copo de água. E não fico a choramingar do cérebro como os outros emigrantes, que se estão sempre a queixar do tempo, todos manjericos. Eu não. Eu gosto.
Chuvinha boa para lavar as ruas. 
Não sou nenhum peixe fora de água aqui. Não sou. É que não sou. Não sou mesmo.
Juro.
Pá, agora a sério: não sou.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Vampira cusca

Suga sumo de laranja por uma palhinha de plástico amarela que mordisca enquanto ouve. Também ajeita os seus óculos muito grossos para se verem bem ao longe. Prefere ouvir a falar, esta moça que suga sumo de laranja. Por causa disso, faz perguntas. Muitas perguntas. Sobre isto, sobre aquilo. Sobre os outros. Sobretudo, sobre os outros. É uma vampira cusca, conheço o estilo. Posso perguntar-te uma coisa? Conheces aquela? E a outra? E aqueloutra? Faz o quê? Ai sim? É solteira? Vive onde? Também exclama, a moça, porque os outros falam mais quando exclamamos, especialmente se formos teatrais. A sério? Meu Deus, não fazia ideia! Que horror! Coitada! Um certo comprazimento preenche-lhe a voz, por causa da fofoquice e também da vitamina C. Sente-se mais forte, agora. Por causa dos outros, que se sentem visivelmente mais fracos. Suga o seu suminho de fruta, a moça, e mordisca. A vida dos outros faz-lhe bem. É como ter vida própria, mas é muito melhor do que ter vida própria, porque não é preciso ter uma opinião ou tomar uma atitude ou gastar energia com coisas mundanas, como seguir uma receita de cozinha ou lavar as janelas. É só preciso estar em companhia, num barzinho de vampiros, a beber sumo de laranja e a fazer perguntas. É uma vampira cusca, sem dúvida, conheço bem aqueles dentes compridos. Tem também a tez muito branca, porque nunca apanha sol. E, por ser eterna, não tem grandes ideias, faz perguntas. Precisa de matar o tempo em barzinhos assim. Ri-se, exclama, cada vez mais forte, os outros cada vez mais fracos. Parecem pessoas de verdade, mas não são. As vampiras cuscas são das maiores pragas nas grandes cidades. Os pombos também. Infelizmente, as pessoas continuam a dar-lhes de comer. E já se sabe que, tanto no caso das vampiras cuscas como no caso dos pombos, a capacidade de reprodução está estreitamente associada à sua alimentação. Nunca mais dou de comer a vampiras cuscas.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Senhor repetido

Um senhor sobe a rua. É um daqueles senhores repetidos que vestem fato e gravata e bebem vinho branco na Place Lux a partir das cinco e meia. O senhor repetido usa por cima da gravata o cartão de identificação do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia ou do Conselho da União Europeia ou de outra instituição a acabar em –eu ou –eia, com a sua fotografia e com estrelinhas, acho (não dá para ver daqui). O senhor repetido não está a beber vinho branco, está só a subir a rua. A narradora deste texto, que está aborrecida, fica a vê-lo subir. De repente, assim do nada, o senhor repetido cai, o que é muito incómodo para quem vê e para quem cai, porque o senhor é elegante e não devia ter caído. Além disso, não tinha propriamente razão para cair, porque não escorregou nem tropeçou. Ainda assim, cai. E o mais curioso é que nunca mais se levanta, porque também nunca mais aparece. O senhor, pura e simplesmente, desapareceu. Tipo Tcharam!, um truque de magia. É possível até que não tenha chegado a cair. A narradora espera, espera e nada acontece. Conclui: Só pode ter sido um qualquer truque de magia. Isso ou o senhor caiu efetivamente num buraco muito fundo, coitado. Nesse caso, talvez esteja vivo ainda e deve estar muito aflito, enfiado naquele buraco. Fica preocupada, a narradora, quer ajudar o senhor repetido. Mas eis se não quando aparece, no fundo da rua, um outro senhor repetido. Não será, com certeza, o mesmo (descubra as diferenças), mas também deve beber vinho branco na Place Lux a partir das cinco e meia. Fica a vê-lo da janela, a narradora. Infelizmente, este senhor não cai nem desaparece. Deve ser o suplente.