quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A mulher de avental não está de avental, mas é como se estivesse.

Para a primeira de todas as mulheres de avental.

A mulher de avental está na cozinha, mas não está a cozinhar nem a lavar a loiça, por isso não está de avental. A cozinha da mulher de avental é a mais bonita de todas as cozinhas, a mais ampla de todas as cozinhas, a mais luminosa. Tem uma janela enorme, mais alta do que as pessoas mais altas e também mais larga do que as pessoas mais largas. A janela da cozinha mais bonita de todas as cozinhas tem o tamanho de uma parede e a mulher de avental está de frente para ela. Observa, agora mesmo, o alpendre da sua casa, o jardim, o pátio longuíssimo. A relva está molhada e muito sozinha por causa do Inverno e da chuva que ele chora. No centro da cozinha há uma mesa de jantar e a mulher de avental está sentada num canto dessa mesa. Por cima da mesa há uma toalha lindíssima e nada mais. A toalha de mesa foi bordada e oferecida pela tia. A roupa jamais secará com aquela humidade. Isto pensa a mulher de avental, enquanto segue os caminhos abstractos da toalha com o dedo indicador. A vida é mais lenta no Inverno, vai por aí, arrastando-se pelo chão da cozinha como uma tartaruga, esconde-se num canto para hibernar. Era o penúltimo dia. A chuva faz barulho ao cair e incomoda os ouvidos e também os olhos, porque não deixa ver mais além. A mulher de avental observa tudo isto e come, cheia de tempo, uma mousse que parece ser de chocolate, mas não é. A mulher de avental come uma mousse de alfarroba e não uma mousse de chocolate. É provável que a mulher de avental goste mais de comer mousse de chocolate do que mousse de alfarroba, mas, neste preciso momento, o seu paladar não está na boca nem no céu da sua boca nem na ponta da língua nem nas papilas gustativas. O paladar da mulher de avental está nos olhos e estes saboreiam a vista ou a falta dela. Não se pode jogar futebol quando a relva está molhada. Por causa disso, não há crianças no pátio, nem vozes, nem jogos, nem nada de nada. Apenas a relva molhada e as casas iguais àquela. A cozinha é muito mais bonita na Primavera, quando o sol vem iluminar a bancada, a cesta de frutos, os electrodomésticos e as peças de alumínio, de vidro, de porcelana. A mulher de avental faz anos no penúltimo dia do ano. Há 38 anos que é assim. Faz o balanço do ano no penúltimo dia. Também faz o balanço dos 38 anos. Faz, portanto, dois balanços ao mesmo tempo. A mulher de avental não está de avental, mas sim de lenço na cabeça, porque perdeu o cabelo. Também emagreceu. Tudo isto se passou em 2009. Proclama aquele ano como o pior de todos os anos. A mulher de avental pensa nisto e não se sente propriamente triste. Noutros dias, sim, sente-se triste, mas hoje não, porque é o penúltimo dia e não o primeiro nem o segundo. Segue, novamente, os caminhos abstractos da toalha com o dedo indicador. A sua esperança é maior do que a janela enorme, ou seja, é maior do que as pessoas. A mulher de avental não está de avental, mas é como se estivesse, porque está a trabalhar a vida como quem trabalha a massa. Decide: Tudo será diferente em 2010, quando a Primavera entrar na cozinha. E levanta-se.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Discurso diarístico sem mim – Parte III

Gostaríamos, francamente, que certas pessoas não existissem ou passassem a não existir, que desaparecessem da face desta Terra e da outra, levadas pela força do vento ou da água ou da terra ou do fogo. Passamos, aliás, muito tempo a imaginar catástrofes naturais ou artificiais que justificassem o desaparecimento dessas tais pessoas e, nos dias menos bons, desejamos que qualquer uma destas catástrofes suceda de facto. Nos dias bons, desejamos apenas que essas pessoas se fossem embora. De preferência, com o rabinho entre as pernas ou então com uma pesada mala de viagem às costas ou a rastejar pelo chão (tanto faz), desde que apanhem o comboio ou o avião ou o foguetão ou a nave espacial. Gostaríamos, com efeito, que nunca mais voltassem atrás nem olhassem para trás nem deixassem nada para trás, nem sequer uma recordação ou uma carta ou um postal ou um número de telefone. Gostaríamos que certas pessoas sumissem da nossa vida com a simplicidade com que o fumo sai das chaminés, para nunca mais regressarem, em estado gasoso ou em qualquer outro estado, à casa de onde saíram. Gostaríamos, aliás, que a nossa vida fosse uma casa, à semelhança da nossa casa inicial ou da nossa casa final ou da nossa casa do meio. Que a nossa vida fosse uma casa e tivesse, pelo menos, quatro paredes, bem isoladas e feitas de betão. Gostaríamos, também, que a vida tivesse uma porta e que todos tivessem de bater nela antes de entrarem. (Não abriríamos a porta a certas pessoas. Andaríamos descalços pela vida-feita-casa para não fazermos barulho e apagaríamos as luzes para que certas pessoas não soubessem que andávamos na vida.) Gostaríamos que a vida tivesse, pelo menos, quatro paredes para as pintarmos de uma cor qualquer ou para nos encostarmos a elas ou para pendurarmos um quadro bonito ou feio. Gostaríamos que a nossa vida fosse uma casa e não esta alameda cheia de semáforos e carros e pombos e pessoas feias, monstruosas, indesejáveis, detestáveis. Gostaríamos, sinceramente, que essas pessoas fossem dar uma volta ao bilhar grande e se perdessem no regresso. Gostaríamos, já agora, que a noite fosse fria, tão inteiramente fria, que essas pessoas tilintassem como passarinhos mas não soubessem voar e chorassem de medo e dormissem ao relento num sítio estranho sem casas nem vidas, apenas relva molhada repleta de bostas de cães vadios ou de gatos vadios ou de pombos doentíssimos. Pensamos em tudo isto e desejamo-lo com toda a convicção, embora saibamos que nenhum destes desejos se realizará num futuro próximo ou longínquo, mesmo que desejemos tudo isto com muito força e várias vezes por dia, à luz de velinhas secretas. Imaginamos, no entanto, todas as catástrofes naturais e artificiais e, de todas elas, temos preferência pelo furacão, porque gostamos de vento e de drama. Imaginamos o furacão e sentimo-nos, efectivamente, felizes. Gostaríamos, sem dúvida, que certas pessoas fossem levadas por um furacão para um sítio qualquer e que nunca mais conseguissem pentear o cabelo nem andar a direito por causa das 1001 rotações do corpo durante a viagem. Na verdade, sempre que falamos com essas pessoas ou sempre que as vemos ou ouvimos ou sentimos ou pressentimos, imaginamos este furacão. Fantasiamos, depois, o uivo ensurdecedor do vento, o cabelo desgrenhado dessas tais pessoas, as suas perninhas ridículas abanando no céu, cada vez mais longe desta Terra. Depois caímos, naturalmente, na real e apercebemo-nos de que a nossa preferência pelo furacão tem mais a ver com o Feiticeiro de Oz do que com o nosso profundo desejo de ver desaparecer certas pessoas.
Concluímos, então, que continuamos a preferir a ficção à realidade. E gostaríamos, com toda a franqueza, que certas pessoas não existissem de todo. Nem a sério, nem a brincar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

The Death of Bunny Munro ou o Nick Cave e as suas más sementes ou más intenções or something

O Nick Cave podia ter saído de um filme de animação, por causa das pernas muito magras, demasiado longas, das suas más sementes e dos olhos profundíssimos como poços (no fundo dos quais cantamos para o céu que vemos ao fundo) e da testa montanhosa (no cimo da qual vive um pastor que talvez seja um ciclope). O Nick Cave bem podia ser uma personagem de um filme de animação de Tim Burton (e a ideia nem sequer é do autor nem do narrador deste texto), porque é branquíssimo e se veste de preto e tem um ar meio fúnebre ou maquiavélico ou infernal, próprio de quem emergiu das profundezas de um vulcão ou das Brumas de Avalon ou de Gotham City ou de um qualquer sítio desconhecido dos comuns mortais ou dos imortais mais puros, por estes não saberem o mal que habita por baixo da superfície, no centro da terra ou no fundo do mar. A propósito disto, o narrador e o autor deste texto dão-se conta de que ouvem Nick Cave preferencialmente por baixo da terra, quando andam de metro pela Gotham City e não de eléctrico nem de autocarro. Curiosamente, Nick Cave escreveu The Death of Bunny Munro num autocarro ou, pelo menos, parte do livro. Estava em digressão na Europa e escreveu esta tal morte de Bunny Munro em 6 semanas, no seu iPhone, cujo teclado exige mais precisão aos dedos do que um piano ou uma flauta ou uma máquina de calcular or something. O Nick Cave emerge do seu vulcão e traz metáforas desse outro mundo, acrescentando, quase sempre, qualquer coisa or something: Her face is the purple colour of an aubergine or something. Isto pensa, por exemplo, Bunny Munro sobre o rosto arroxeado da mulher. Bunny Munro pensa sobre várias coisas, entre elas sobre a sua mulher e também sobre todas as outras mulheres, especialmente nos possíveis formatos das suas vaginas. Bunny Munro é, naturalmente, um tarado sexual que, além de alcóolico, é, possivelmente, a pior pessoa do mundo. Isto no entender de Nick Cave, que apresentou o seu livro também no Arenbergschouwburg, um lugar impossível com nome inefável em Antuérpia, onde a pessoana, o homem ilimitado e a capuchinho vermelho estiveram numa certa noite de Outubro, só para o ver cantar, tocar e ler certos excertos de certos capítulos do seu livro. (A certa altura, Bunny takes a deep breath and allows himself to open up to her vibes like a medium or spiritualist or something.) O Nick Cave podia ter saído de um filme de animação do Tim Burton, é certo, mas o Tim Burton, que tem sete cabeças e sete vidas para a sétima arte e uma criatividade que mais parece uma cascata or something, jamais poderia ter criado o Nick Cave, a não ser que os homens criassem deuses ou os rios parissem mares, o que até pode ser o caso. O Nick Cave é maior do que Tim Burton. Ou seja, Nick Cave até podia ter criado Tim Burton, mas nunca o contrário, a não ser que a arte seja maior do que o criador, o que até pode ser o caso. E nesse caso, Nick Cave é, de facto, uma personagem de ficção, um produto imaginário, uma criação sem corpo, o que não é verdade, porque o autor e o narrador deste texto viram-no ali à frente, a cerca de 30 metros, em carne e osso, a tocar e a cantar Hold on to yourself e a ler pedaços da tal morte de Bunny Munro. Desculpem a interrupção, mas o narrador deste texto tem, dentro da cabeça, uma outra cabeça que o censura e critica e recrimina como uma madrasta má. Diz-lhe insistentemente: "Não és nada em comparação com as sobrancelhas de Nick Cave". A outra cabeça do narrador, que é blogueira nas horas livres como outros são palhaços, concorda com a cabeça madrasta. Ambas presenciaram o concerto intimista do Nick Cave, que apresentou o seu livro e leu o seu livro e tocou e cantou e falou como se estivesse na sua sala de estar ou de ser. Respondeu também a todas as perguntas. Aproximava-se do público, perguntava: Any questions? e as pessoas falavam alto, tratavam-no por Mr. Cave, perguntavam-lhe tudo e mais alguma coisa. (A pessoana e companhia ficaram caladinhas que nem uns ratos. Os olhos sem fundo do Mr. Cave, as suas mãos soltas, desarticuladas, independentes, o compasso irónico das pernas, o timbre acertado, de quem já tudo fez e tudo ganhou e perdeu, e tudo provou e conheceu, como só o Diabo terá provado e conhecido: tudo isso assustou pessoana e companhia.) O Nick Cave escreveu um livro sobre vaginas e outros mistérios em 6 semanas, usando para o efeito o teclado do seu iPhone enquanto atravessava a Europa de autocarro. A pessoana, que é boa pessoa mas não é nada em comparação com as sobrancelhas de Nick Cave, anda a ouvir e a ler Nick Cave. De momento, não precisa de mais nada, não deseja mais nada, não lhe apetece mais nada. Nem mesmo para o Natal. (Ainda assim, se alguém lhe der como prenda o saco de pano que a FNAC anda a oferecer na compra do livro, ficará extremamente feliz, como se, de facto, o desejasse.)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Conto infantil para adultos: O presidente fora de água e a baronesa inglesa

A baronesa inglesa é a menina mais feia das redondezas. Tem cabelo insonso e falta de queixo. Mesmo assim, insistiu em que queria casar e colocou-se muito carochinha à janela. Para espanto de todos, a baronesa mais feia das redondezas encontrou, não um barão durão, mas sim um presidente com quem casar. O presidente tinha, infelizmente, um ar ridículo, por causa dos olhos esbugalhados, iguais aos de um cherne fora de água, mas a baronesa não se importou e apaixonou-se em três tempos, qual dona de casa desesperada. Ontem à noite, a baronesa e o presidente foram passear juntos ao centro da cidade. Todos os meninos das redondezas vieram vê-los passar e concordaram que, apesar da sua fealdade, a baronesa e o seu presidente faziam um casal simpático. Isto porque ambos tinham um nariz impossível, à Cyrano de Bergerac, e um sorriso muito torto, de criança mal-intencionada. A baronesa e o presidente passeavam-se pela rua e todos sorriam para eles, porque mais pareciam dois duendes saídos de um conto de fadas. Há quem diga que a baronesa e o presidente vinham de mãos dadas.
O nosso desejo é que, ao darem um beijo, se transformem.
Em meninos de verdade.

Nota do narrador: Esta história não tem nada a ver com a baronesa Catherine Ashton nem com o presidente José Manuel Barroso, porque, como todos sabem, ambos estão muito bem casados com outras pessoas e não andam de mãos dadas na rua. Só por isso.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

História do cerco dos minaretes e das torres de igreja

1. A única altura na vida em que pessoana pensou em minaretes foi enquanto lia a História do Cerco de Lisboa. (O José Saramago prefere a palavra almádena à palavra minarete. A pessoana também.) A História do Cerco de Lisboa tem pouco mais de 200 páginas, pelo que a pessoana não passou muito tempo da sua vida a pensar em almádenas. As descrições de José Saramago são, porém, inesquecíveis e a pessoana jamais se esqueceria do almuadem cego e das escadas em caracol da almádena.

2. Numa certa época da sua vida, a janela da sala de estar da casa da pessoana tinha vista para a torre de uma igreja. Agora já não é assim, porque pessoana mudou de casa, mas nessa época, nos fins-de-semana, o homem ilimitado acordava muito cedo por causa dos sinos. Ela não. (Os sinos da igreja não a despertam; dão-lhe sono.) Por esta razão, e também pelo facto de ter tido uma educação católica (muito embora não tenha casado pela igreja) e não conhecer um único muçulmano (muito embora viva rodeada deles), a pessoana pensa mais rapidamente em sinos de igrejas do que em almádenas.

3. A pessoana percebe muito pouco (quase nada) de religião e arquitectura, mas tem para si que a almádena está para o islamismo como a torre da igreja está para o cristianismo, porque a almádena e a torre da igreja cumpriam, num passado mais ou menos longínquo, a função de chamar os crentes à oração. (Esta comparação, como é evidente, não é original.) Porém, nos dias que correm, a pessoana tem dúvidas quanto à função das almádenas e das torres de igrejas. Gostaria, aliás, de subir uma almádena ou a torre de uma igreja para perguntar aos fiéis e infiéis: Para que servem as almádenas e as torres das igrejas? A pessoana gostaria também de confessar o seguinte: por princípio, não tem nada contra a ideia de se começar a construir mesquitas sem almádenas, desde que as igrejas passem também a ser construídas sem torres. Tão simples quanto isto.

4. Se Portugal e outros países decidissem o seu futuro com base em referendos e noutras formas de democracia directa, é provável que muitas pessoanas votassem, por exemplo, contra a entrada da Suíça na União Europeia (os suíços decidiram – também por referendo – não pertencer à União Europeia). Muitas pessoanas não percebem nada sobre a Suíça nem sobre a União Europeia e, por isso mesmo, votariam contra a entrada da Suíça na União Europeia. No entender de pessoana e de outras pessoanas, o exercício da democracia directa exprime, não as vontades de um povo nem as suas convicções, mas sim os seus medos. Já se sabe que todos os europeus têm medo dos suíços, incluindo os próprios suíços. Os suíços, por seu turno, também têm medo dos muçulmanos, daí não quererem almádenas. A pessoana, por sua vez, tem medo dos suíços, dos muçulmanos e da democracia directa.

5. É por estas e por outras que pessoana acredita que se vive tão bem sem a democracia directa como se vive sem minaretes e torres de igrejas. A pessoana acredita também noutras coisas, mas não propriamente em Deus. Na verdade, a pessoana tem mais dúvidas do que crenças. Ou seja, é céptica. Isto deve-se, provavelmente, à sua educação católica.