domingo, 20 de março de 2022

O gnu e o texugo - Está a chover!

Ao contrário da minha mãe e do meu avô Manuel, nunca fui grande jogadora de cartas. Mas sempre tive um fascínio por baralhos de cartas. 

Copas, espadas, ouros, paus.

Aquela coisa de as cartas nunca ficarem de cabeça para baixo: reis e damas com duas cabeças. O valor indiscutível do trunfo, que daria tanto jeito na vida. 

Esta frase extraordinária: “Toma e vai buscar.”

Passei muitas horas da vida a jogar Uno com os meus pais. Passei algum tempo da minha infância a fazer paciências. Nunca aprendi um único truque de cartas. Nunca aprendi a baralhar como deve ser. Nunca sei as regras do jogo.

Como jogar às cartas quando não se sabe jogar às cartas? Será que podemos jogar sem regras? Será que as podemos inventar?

Diverti-me à grande a escrever esta história do gnu e do texugo, que não percebem patavina de cartas, mas gostam de jogar na mesma. A Madalena Matoso, esse incrível ás de copas, fez do texto um livro muito fora do baralho, que me faz rir a cada página.

Espero que o encontrem por aí e que gostem dele.

Clip, clap, clup.

Tudo sobre ele: https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/o-gnu-e-o-texugo-esta-a-chover/

terça-feira, 8 de março de 2022

Jeremias Bandarra


O meu sogro usava chapéu. Assobiava. Abraçava as árvores.

Nasceu em 1936. Morreu ontem.

Não fumava, não bebia café, raramente bebia álcool. O seu único vício era a pintura. 

Desenhar, pintar, sentir, voar.

Quantos pássaros terá desenhado? Centenas. Milhares.

Nos murais, nos vitrais, nos cadernos, nas telas. Incontáveis pássaros em pleno voo.

“A natureza cuida”, dizia ele, mas não estava a falar das plantas, nem sequer dos pássaros que nascem e voam, estava a falar da arte, de tudo o que fazemos com as mãos, com a alma, com os olhos.

Falava de arte como quem fala da vida, o mistério das coisas invisíveis que ganham raízes e brotam, crescem, dão frutos. 

Leu tudo o que escrevi. Lia, relia, comentava, empolgava-se. Queria saber se já estava a escrever alguma coisa nova. Sim, dizia-lhe eu, estava a escrever uma novela gráfica, um poema, um conto. Ele ria-se, cúmplice do meu vício.

Disse-me algumas vezes que eu era parecida com a sua mãe. Dizia-o sem hesitação, como se estivesse a dizer a verdade. Talvez por sermos mães de rapazes. Talvez por sermos mães de meninos Bandarra. 

Olho para os meus meninos Bandarra. O mais velho constrói uma pista de comboios, o mais pequeno toca piano, o do meio salta do sofá para o chão. Quantos pássaros não desenharam com o avô? Quantas conversas não tiveram?

Era muito chato ir com o meu sogro ao centro de Aveiro. Toda a gente o conhecia, toda a gente o acarinhava. Parávamos em todas as esquinas para cumprimentar alguém. Podia acontecer que não chegássemos ao nosso destino. Ficávamos a meio do caminho. Não era grave. Voltávamos para trás.

Entre ir e vir conversávamos. Falava-nos da sua infância nos anos 40. Os quatro Bandarras, sempre à solta, inventivos, aventureiros. Saíam porta fora, corriam, mergulhavam, jogavam com uma bola de trapos. Voltavam tarde, com fome. 

A mãe, sempre a mãe, que se preocupava com eles, que os alimentava, que recortava coelhinhos num pedaço de papel. Os chocolates que o pai lhes oferecia no dia de Natal. Um chocolate a cada um, enfiado numa meia, a felicidade pura. 

A sua juventude só e melancólica. Os três irmãos fora e ele ali, numa cidade parada. “Não havia nada disto. Era só campos”.

As leituras que lhe fizeram companhia. Os romances de Émile Zola. A religião, o misticismo. Os quadros do Picasso. Os versos que escrevia. O teatro aveirense. A Margarida “muito alegre, muito alegre, muito alegre”, dizia ele, luz da sua vida, com quem viria a casar. Os pais doentes, os filhos pequenos, o emprego estável na Portucel, a pintura, sempre a pintura, seu único e terrível vício, “uma doença”, dizia.

Viajámos juntos. Bruxelas, Paris, Londres, Lisboa, Gerês, Tavira. Vimos exposições. Quantas exposições? Chagall, Picasso, Matisse. Pompidou, Tate Modern, Bozar. Sabia tudo sobre os cubistas, os surrealistas. Parava em frente a uma tela, as mãos atrás das costas. Falava-nos da importância do branco num quadro, do foco de luz.

Saíamos para a rua em êxtase, cheios de arte e de vida. Comentávamos os quadros do Lucien Freud, fortes, reais, permanentes, como se estivessem vivos. 

E agora, onde vamos? Alguém perguntava. O Jeremias dizia: “Quero ver pessoas”, e lá íamos vê-las nas suas vidas, nos seus afazeres. Em Oxford Street, nos Campos Elísios, na Grand Place. 

Sentávamo-nos numa esplanada. Pedia uma cerveja sem álcool. E então aí, sentado num café em Antuérpia ou numa rocha no Gerês, a lanchar no Perroquet, a jantar na sua casa, dizia: “Isto já ninguém nos tira!” Isto: a esplanada, o pôr do sol, a família, a cerveja, a arte nova, os quadros do Picasso, as pessoas na rua, tudo o que vimos, pensámos e sentimos até então, o delírio da arte e da vida. Bebia um gole entusiasmado da sua cerveja sem álcool, os olhos aguados. Acrescentava: “Até aqui chegámos nós”. Assim era. 

Sempre a consciência da finitude. A ideia de que não estaremos aqui para sempre. De que qualquer coisa nos liga uns aos outros, de que há uma verdade acima de nós, acima de tudo, de que nada começa e acaba verdadeiramente, de que todos somos permanência, continuação, universo, natureza, vida, focos de luz. 

A beleza das horas que passam, das pessoas que passam, o presente que era futuro e se transforma em passado. Tudo o que vimos, pensámos, sentimos. Todos os rios, todas as serras. Todos os quadros.

Todos os voos de todos os pássaros.