quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Conto infantil para adultos: Soldadinhos de chumbo

Que um homem não é de ferro já todos sabiam. Mas que os soldadinhos de chumbo já não queriam ser de chumbo, não, ninguém sabia. Só eles. Aliás, os soldadinhos de chumbo tomaram esta decisão ontem à noite: já não queriam ser soldadinhos de chumbo, pronto. Informaram então o primeiro-cabo. Disseram: "Queremos ser homens de verdade". O primeiro-cabo alarmou-se e fez o que lhe competia: informou o cabo de secção. Por seu turno, o cabo de secção apressou-se escada acima para informar o segundo-sargento, que informou o primeiro-sargento do andar de cima, que informou o sargento-mor de cima, que informou o cadete, que informou o alferes, que informou o tenente, que informou o capitão, que informou o major, que informou o coronel, que informou o brigadeiro-general, que informou o tenente-general, que informou o general. E quando a informação chegou finalmente às águas-furtadas, o marechal exaltou-se, gesticulou irritado. Disse ao general que, nas forças armadas, quem dava informações era ele e não os soldadinhos de chumbo. O general informou prontamente o tenente-general e a informação desceu direitíssima até ao rés-do-chão. Por último, o primeiro-cabo informou os soldadinhos de chumbo. Disse: "Nas forças armadas, quem dá informações é o general e não os soldadinhos de chumbo". Os soldadinhos de chumbo não perceberam logo a informação. Parecia-lhes um facto evidente, estavam plenamente de acordo. Uniram, pois, os calcanhares com energia e levaram a mão direita à borda da testa, cheios de continência.
É que, entretanto, já se tinham esquecido da tal decisão.
(Eram soldadinhos de verdade.)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã

Uma senhora de 73 anos de idade entrou na repartição de finanças do Concelho de Pinhel para reclamar uns dinheiros, não para ela, mas para a associação recreativa de Cerejo a propósito das festas em honra de Santa Maria Madalena do ano passado. Esta senhora chamava-se Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã, um nome razoável à excepção do sobrenome, que saltava sobressaltado sobre os outros, graças às suas pernas de anfíbio. Infelizmente a senhora Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã não conseguiu entregar os papéis que comprovavam a dívida do Estado à associação recreativa de Cerejo. Isto porque a sua hora da morte chegou precisamente no momento em que entrou na repartição de finanças: o corpo caiu entrondoso para a frente e os papéis ficaram quietos dentro da mala. Algumas pessoas assustaram-se, outras não. Uma das senhoras atrás do balcão nem se levantou com o sucedido: agarrou no telefone e chamou a ambulância.
O sobrenome Rã era do marido, que havia falecido há uns quinze anos por causa de um cancro nos intestinos. A senhora Eugénia, que preferia aliás o nome Adelaide mas nada podia contra a vontade do povo da freguesia de Cerejo que toda a vida a tratara por Eugénia, continuava a usar o nome Rã porque a ele se habituara, mas aos vizinhos dizia que a razão era outra, mais poética, mais respeitosa, mais leal. Dizia: "Continuo a utilizar o nome Rã para que a memória do meu marido não se perca pelo caminho" e os outros comoviam-se com as palavras da mulher que usava um nome feio em memória de um homem. Não que o senhor José Marco dos Santos Rã tivesse sido um grande homem nem um homem grande, nem sequer um bom homem (na verdade já ninguém na freguesia se lembrava dele), mas o senhor José Marco era o seu homem e isso bastava para que fosse lembrado. Tudo isto era uma maneira de dizer, porque a senhora Eugénia tinha a sua vida tão ocupada com a associação recreativa de Cerejo, que mal se lembrava do José Marco, coitado. O rosto do dito já se tinha dissipado da memória, restando apenas o sorriso torto e o cabelo bem penteado do dia do casamento. À senhora da mercearia dizia a senhora Eugénia em ar de graça: "Beijei a rã em vez do sapo" e a verdade era essa.
A senhora Eugénia tinha a certeza disso. Se tivesse beijado o sapo e não a rã, nunca teria vivido nem morrido assim. Logo a seguir ao casamento, o seu marido sapo e não rã teria mandado construir um castelo no centro de Cerejo, onde ela e o seu príncipe encantado viveriam com a sua família e os seus muitos empregados. No interior desse castelo se realizariam as festas em honra de Santa Maria Madalena, que muito trabalho dariam à senhora Eugénia, e todas as pessoas de Pinhel ali marcariam presença no dia 31 de Julho. Ou, se calhar, todas as pessoas da Beira Interior. Ou até mesmo todas as pessoas de Portugal.
Isto pensava a senhora de 73 anos na hora da morte.
A mania da grandeza de Adelaide Eugénia Ferreira Varela Rã só não ia além de Portugal por não haver na sua geografia nenhum mundo além daquele. Se tivesse beijado o sapo e não a rã, pensava ainda, jamais entraria na repartição das finanças para morrer. Disso tinha ela a certeza absoluta.
Os papéis que comprovavam a dívida do Estado à associação recreativa encaminharam-se despreocupados para o lixo. Os vizinhos trocaram umas palavras nem boas nem más sobre a senhora Eugénia. Os velhos da associação recreativa foram ao velório, ao funeral e à missa do sétimo dia.
E ao oitavo dia a senhora Eugénia caiu no esquecimento. E o José Marco, que culpa nenhuma tinha de ter nascido rã, perdeu-se finalmente pelo caminho.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Rapariga ao som de Air

A cidade a nevar baixinho, a chorar branco, muito branco, branquíssimo (os olhos da cidade a doerem de branco), e a rapariga a passear-se nela, a pensar-se nela, e não de branco, não de neve, mas de outras cores, de outras formas. A arte nova atrás das costas, itinerante como nos filmes, e a rapariga a ver outras artes, outros filmes. Pensa, por exemplo, no Japão. Num silêncio possível para o Monte Fuji. Para os templos. Pensa em Quioto. Na cidade de Quioto. No protocolo de Quioto. Nos americanos. Pensa em Hiroshima. Em Nagasaki. Nos arranha-céus de Tóquio. No Lost in Translation. Na cara de náufrago do Bill Murray. No Oceano Pacífico. No programa da RFM. Nas madrugadas de regresso a casa. Em todas as madrugadas de regresso a casa. Na marginal de Cascais. No Oceano Atlântico. Na era dos Descobrimentos.
A música termina na boca do metro. Pura coincidência.
Depois começa outra.
A tempo da viagem.