segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Mostra dos Jovens Criadores 2012




Apareçam e digam como foi!



Eu lá estarei no dia 22, para o café literário, que é assim um café com cheirinho, servido em chávena escaldada por onde sai uma nuvem de vapor que conta histórias de encantar.

Acho eu...
Não tenho bem a certeza.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Lançamento - Avenidas sem sentido - 19/12/2012

Uma folha tem frente e verso. Uma direção tem dois sentidos.
Mas nem todas as direções têm nexo. Nem todos os sentidos têm setas. 
E nem todos os livros acabam.
Eu estou sempre a mudar de página. Mas nem sempre de capítulo.

Sei lá, apeteceu-me escrever isto.

Na próxima quarta, às 18h30, no piso 7 do El Corte Inglês, uma Avenida sem Sentido para cada um de vós.

Apareçam!


A queda de um ovo

Uma mulher tira do frigorífico uma caixa de seis ovos com quatro ovos lá dentro. Data de validade: 15/12, não há tempo a perder. Pega no primeiro ovo que é, infelizmente, de natureza irrequieta: foge da mão e cai. A mulher insulta-o (Ovo estúpido!). Logo a seguir, ainda o ovo não chegou ao chão, desiste dele, parte para outro. Mas-eis-senão-quando, o improvável acontece: o ovo não atinge logo o chão, demora-se um bom bocado com a ajuda das suas asas inexperientes e, antes de completar a queda, percorre metade da queda e, antes disso, metade da metade da queda e, antes disso, metade dessa metade e logo o pequeno ovo se distrai e assobia, porque não há fim para aquela matemática de cair a metade da metade da metade. O desenlace é ainda mais extraordinário, porque o ovo pousa inteiro e direitinho no chão. A mulher espanta-se, qual é coisa qual é ela. Quando pega no ovo, há nos seus dedos um outro respeito, um outro cuidado, uma outra dedicação. A mulher pensa em várias coisas ao mesmo tempo: na galinha dos ovos de ouro, no ovo de Colombo, no Kinder Surpresa. Decide, depois, não partir o ovo. Para adiar a queda, talvez. Para acreditar num milagre, certamente.
O narrador deste texto encolhe os ombros, acha tudo isto extremamente patético. Por ele, atirava o ovo contra a parede. Só para ver o que está lá dentro.
A mulher guarda o ovo milagroso no frigorífico. Parte o segundo o ovo com uma só mão e esse lá cai redondo e amarelo na frigideira. Infelizmente, amanhã o ovo milagroso já passou da validade, será um ovo podre como os outros. Mas disso não se lembra a mulher, que nunca sabe a quantas anda.
Exaltado, o narrador entra pelo texto adentro, abre o frigorífico e atira o ovo contra a parede. Mistério resolvido: era um ovo como os outros, só que mais resistente. O narrador sai do texto, satisfeito.
A vida, afinal, prosseguia como antes.
Sem mistério, sem romance. Sem milagres.
Aaaah, pensou o narrador, muito melhor assim.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O meu amigo de inverno

O meu amigo novo é preto e tem metade do meu tamanho. Gosto de me abraçar a ele, de lhe apertar os botões. Tem pelo por fora e penas por dentro, é fofinho como uma almofada. Sim, o meu amigo novo é um casaco de inverno, que me assenta tão bem como um amigo de verdade. O meu amigo a fingir é feito de poliéster e poliamida, tem um capuz de pelo que me faz comichão no nariz e eu espirro e rio-me ao mesmo tempo. Andamos abraçados pela rua, damos beijinhos um no outro, contamos segredos. As pessoas olham para nós com as suas caras ruçadas e puídas, cheias de cobiça e preconceito, mas eu e o meu amigo não as vemos nem as ouvimos, estamos de cabeça enfiada no capuz. Nada me aquece como o meu amigo de inverno. Nada nos afeta. Nem a chuva, nem a neve, nem a gente. Tenho as mãos frias e o coração quente. Graças ao meu amigo de inverno.

E também porque passo a vida a perder as luvas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Passatempo Karateca na Visão Júnior

O objetivo consiste em escrever numa folha A5 a página do diário de uma pessoa famosa.

Aceitam-se trabalhos de meninos e meninas com idades entre os 10 e os 14 anos.
Prazo: 21 de novembro de 2012.

Os autores dos seis melhores trabalhos receberão um exemplar do fantástico livro «O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca».

Mais informações sobre o passatempo na imagem infra (página dupla da Visão Júnior de novembro).

Yááá! Eu cá vou concorrer (adoro este livro)!

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

III Encontro de Escritores de Língua Portuguesa em Natal – Missão TP003

O antetítulo deste encontro induz em erro. Dá a entender que aconteceu em Natal o terceiro encontro de escritores, o que não é correto. Este não foi o terceiro encontro, foi o primeiro, o primordial, porque eu só acredito no que vejo e esta história é escrita na minha perspetiva. Eu não sou escritora, sou agente secreta. Visto gabardina e chapéu de abas, tenho sotaque russo. (...)

(Continua no JL desta quinzena - 31.10.2012-13.11.2012)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Na ponta dos dedos, a arte começa

Para a mãe, a maior artesã.


Na ponta dos dedos, a arte começa. Um pedaço de tecido, um pedaço de arame, uma planta, uma obra de arte. Concentra-se, sonha, faz. Sem música, sem nada, só a arte na ponta dos dedos. Um colar, uma flor, uma borboleta, uma outra natureza paralela. Abre as mãos amplas, põe um anel grande. Dedos longos, um anel grande. Faz as suas próprias unhas: corta, lima, trata, pinta, sopra. Unhas fortes e bonitas. As misteriosas mãos da minha mãe, uma obra de arte. A minha mãe, os pequenos prazeres da vida: um petisco, um café, um gelado, um mergulho, uma cerveja, ameijoas à bulhão pato, uma ginjinha. Caminha em frente, sempre em frente. Não sabe para onde vai nem por onde vai, esqueceu-se, vai em frente. Fala alto, ri-se alto, encolhe os ombros, Estou-me nas tintas. Dentes fortes e bonitos, gargalhadas fortes e bonitas. Um nariz sensível a todos os cheiros: ai, cheira-me a isto, ai, cheira-me àquilo. Cheiros paralelos. Sonha, cresce, faz, cheira, caminha em frente. As suas mãos cada vez maiores, cada vez mais belas, a minha mãe cada vez maior, cada vez mais bela, a ocupar todas as coisas no mundo – o mar, o sol, as montanhas –, a minha mãe igual a uma obra de arte. As misteriosas mãos da mãe, dedos longos, unhas fortes. Uma gargalhada. E na ponta dos dedos, a arte começa.



quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Os números redondos ou a negação dos trinta

Não gosto dos números redondos. Soam-me a falso, não sei. Quando dou com um número redondo, hesito. No supermercado, por exemplo, não compro nada que custe exatamente 10 euros. Cheira-me logo a esturro. Um produto de jeito custa 9 euros e 90 ou 10 euros e 43. 10 euros é um preço ridículo, não compro. O mesmo se aplica ao tempo. Não gosto que me digam: Aquilo é coisa para 20 minutos. Nada demora exatamente 20 minutos, toda a gente sabe isso. Os números redondos são gordos e traiçoeiros. Um comboio com nível também não parte às 10 em ponto. A ideia em si dá-me logo vontade de rir. Ninguém levaria a sério um comboio que parte às 10 em ponto. Os comboios dignos desse nome partem às 10 e 8 ou às 10 e 23, eu jamais entraria num comboio que partisse às 10 em ponto. Ainda outro exemplo: Num bom livro ou num bom filme, a personagem principal nunca tem exatamente 30 ou 40 anos. Uma personagem como deve ser tem 31 anos ou 46, não tem 30 nem 40. Vocês dirão: Não concordo. The 40-year-old virgin é um bom filme. Sim, é um bom filme. Mas é um filme com o Steve Carell, não é para levar a sério. Os números redondos são foleiros. Na vida real, ninguém tem 40 anos. Eu ontem, por exemplo, não fiz 30. É que não fiz mesmo. 30 anos é coisa inventada, os números redondos não existem. Voltei a fazer 29. Sim, 29.
Sou repetente.

domingo, 5 de agosto de 2012

O turista ocidental

O turista ocidental não é turista, é outra coisa. Não vai onde os turistas vão, não usa a piscina do hotel, não quer sequer um hotel com piscina. O turista ocidental é aberto e curioso, quer coisas simples. Dorme em hostels baratuchas e vai onde os autóctones vão. Os autóctones são diferentes e especiais de corrida. O turista ocidental, que é uma pessoa culta, observa-os e aprende. O turista ocidental é uma autêntica criança adulta. Tem a vida toda pela frente, é imaginativo. Traz uma mochila de 60 litros às costas com muitos bolsos e fechos. Dentro da mochila complicada traz um livro de um autor autóctone, roupa suja, roupa lavada, o guia do Lonely Planet, acessórios. O turista ocidental tem o mapa da cidade no bolso, não se perde, é escuteirinho. Senta-se num bar dos autóctones, é simpático e comunicativo, quem o viu e quem o vê. Diz Bom dia! e Obrigado! na língua dos autóctones, é uma pessoa interessada. Lê as dicas do Lonely Planet: o que ver, o que comer, a história dos autóctones, a cultura dos autóctones, a religião, o comportamento, tudo sobre os autóctones. O turista ocidental sabe tudo sobre os autóctones, é incrível. Passeia-se pelas ruas e olha para os edifícios, para as pessoas, para as montras, é uma criança adulta. Mete conversa com os vendedores, faz perguntas inesperadas, ri-se. Como se isso não bastasse, tira fotografias artísticas ao pôr-do-sol e às sombras das árvores, é uma pessoa criativa. Passadas três semanas, o turista ocidental está um autêntico autóctone. Come como os autóctones, bebe como os autóctones, faz tudo o que os autóctones fazem, é incrível. Quando volta para casa, sente-se diferente, único, especial de corrida, é finalmente uma parte do todo. Porém, engana-se, coitado. O turista ocidental não é especial de corrida. É igualzinho aos outros turistas ocidentais, sem tirar nem pôr. Faz tudo o que os outros fazem, come o que os outros comem, bebe o que os outros bebem. Não é um autóctone na terra dos autóctones, é um estranho, um estrangeiro, um turista ocidental. Está tão sozinho como os estrangeiros sozinhos, é tão diferente como eles, é arrogante. Não sabe nada sobre os autóctones e não é uma parte do todo, é um peixe fora de água. Um turista. Uma pessoa estranha ao serviço. Uma criança adulta sem imaginação.
O turista ocidental é um autóctone de outro mundo. Um autêntico Lonely Planet.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Ruínas

Um quadrado de pedra, que é uma janela sozinha, sem casa. Por cima de uma parede, as raízes antigas de uma árvore introspetiva, a natureza má. Qualquer coisa resiste a qualquer coisa, é sempre assim. Um pilar inútil deitado no chão. Parece um corpo cansado, mas não é um corpo cansado, é só um pedaço de pedra inútil. Um rosto de pedra olha para mim e eu olho para ele. Ficamos a olhar um para o outro, o meu rosto e o rosto de pedra. Ao longe, o sol poisa no dia, qualquer coisa termina. O musgo a dominar as horas e as pedras, algo novo respira. A beleza triste das ruínas. O meu rosto de pedra repetido noutras pedras. Um dia destes, também a árvore cairá. É sempre assim.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Passatempo karateca: yaaaa!

Atenção, o Planeta Tangerina preparou um kestionário para os que quiserem uma karateca só para si.

Sempre quero ver quem acerta na pergunta 4...
Eu cá tenho dúvidas, mas vou ganhar!

Passatempo karateca: yaaaa!: http://planeta-tangerina.blogspot.pt/2012/07/passatempo-karateca-yaaaa.html

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Ir ou voltar

Dezoito e quarenta e cinco, lá estão os ecrãs gigantes, TAP Portugal, números, letras. Malas grandes e coloridas, pequenos mistérios. Turistas de boné, rostos escarlates, pessoas com ar importante, óculos escuros, missão impossível. Arrasto as minhas rodinhas para a fila. Olho para o meu BI, estava com o cabelo diferente naquela altura, foi naquele cabeleireiro da Flagey. Felizmente, o drop off tem pouca gente, vai ser num instante. Sorriso chapa cinco, boa viagem. Quando é que voltas? A pergunta confunde-me, não sei se estou a ir ou a voltar. Como? Por ser bonita e formosinha, tenho direito à fila prioritária da segurança, o que é ótimo, dá para choramingar mais rápido. Olho para trás, adeus, adeus, sorriso chapa cinco, vou. Um segurança bem-parecido. Computador? Líquidos? Um cremezinho para as mãos, se calhar? Uma garrafinha de água? Digo Não quatro vezes, tiro o relógio. Nunca sei se é para tirar o relógio. Uns dizem que sim, outros dizem que não, não é coerente. Passo no raio-x, não apito, yeeeah, ninguém apalpa o meu terreno hoje. Tenho tempo. Caminho devagar, devagarinho, o mais devagarinho possível, estou quase parada, sou uma tartaruga. Passo na Alma Lusa. Nunca compro nada na Alma Lusa, mas gosto de ver os turistas escarlates a comprarem canequinhas do 28, carteiras de cortiça, um pin do Santo António, um azulejo. Turistas felizes em Lissabon, ridículos. Porta de embarque 22, vou andando. Compro uma água Luso no café, 50 centilitros. Não tem 65 cêntimos ou 15 cêntimos? Faço-me difícil, Não, não tenho (preciso de trocos para a máquina dos chocolates). Nunca percebi o problema dos trocos em Portugal. Onde andam as moedas? Penso na piscina do tio Patinhas, grandes mergulhos que eu dei no mar. Porta 22, cá estamos. Afinal não, é um voo para Porto Santo. Pergunto à farda da TAP, muito composta atrás do balcão. O voo para Bruxelas é na 23, mudaram de porta. Aaaaaah, a praia de Porto Santo. Fico indecisa, era bem bom. Passageiros para o voo TAP Portugal com destino a Milão, por favor, queiram embarcar na porta Y. Porquê embarcar se já não há caminhos marítimos por descobrir? Devíamos dizer aviar, por exemplo. Passageiros para o voo X queiram aviar na porta Y. Assim é que era. Chego à porta 23, pessoas sentadas. Olho para o chão, vou super-mega-rápido até a um banquinho vazio e sento-me sossegadinha. Abro uma revista, espeto o nariz lá dentro. O meu objetivo é nunca olhar à minha volta, para não dar de caras com caras conhecidas, porque depois tenho de participar num diálogo monossilábico muito chato e eu não sei assim tantos monossílabos como isso: Olá, olá. Já vai pra lá, né? Pois, tem de ser. Com o sol que tá por cá… Pois é. Cruzes canhoto, que neura, não me apetece. Leio um artigo sobre qualquer coisa. Uma criancinha aproxima-se de mim com um balão vermelho, não dá para ignorar. Tiro os olhos da revista, sorriso chapa cinco. A criancinha atira-me o balão desajeitado, levo com ele no trombil, sensação agradável. Os pais riem-se, que filhote tão atrevido. Brinco um bocadinho com a criancinha e depois dou uma pancadita mais forte no balão para me livrar dos dois (do balão e da criança, sorry). Espeto o nariz na revista. Senhores passageiros, não-sei-quê, problema na aeronave, temos pena, atraso e tal, voo previsto para as dez e cinco. A moça à minha frente desata num pranto daqueles, até tira os óculos para chorar melhor, tinha provavelmente um compromisso importante em Bruxelas ou então só uma birra de sono, não sei. De qualquer forma, merecia um abracinho, mas ninguém lhe dá um abracinho, pessoas insensíveis. Os turistas escarlates em Lissabon ainda não sabem de nada, porque não falam português, continuam felizes e ridículos. Aí vem a versão em inglês, ladies and gentlemen, mega suspense. Fico a olhar para os turistas, I see you baby, a ver o pôr-do-sol nos seus rostos, sou cruel. Os passageiros frequentes vão logo para a filinha indiana, têm direito a um voucher de 16 euros para comerem uma pizza ou um hambúrguer enquanto esperam, bem bom. Olha, sempre dá para ver a final. Espanha ou Itália? Não consigo escolher, é aborrecido não torcer por ninguém. Atiro mentalmente uma moeda ao ar, Espanha cara, Itália coroa, e sai-me Itália, o que até faz sentido, porque inventaram o tagliolini e o fettuccine e eu gosto das duas coisas. Também quero comer e ver o jogo, mas a fila dos índios nunca mais anda, é sempre assim. Já não há lugares em frente às televisões e não me apetece ficar de pé. Fico então de costas e peço um hambúrguer com molho à café ou lá como se chama, come-se. As pessoas aplaudem cada vez que os espanhóis marcam golo, parecem contentes. Os portugueses contentam-se com pouco. Misteriosa alma lusa. Levanto-me, vou à casa de banho. A utilizadora anterior da sanita que me calha na rifa não puxou o autoclismo, primorosa menina. Lavo as mãos e saio. O ecrã diz-me que afinal o voo é só às vinte e três horas. Uma senhora atrás de mim repete umas vinte e três vezes: Vingt-trois heures, vingt-trois heures, vingt-trois heures. Não tarda, leva uma lambada. Concentro-me, faço contas: um pacote de maltesers deve ter praí uns 10 maltesers. Se eu comer uma bolinha de 12 em 12 minutos, tenho maltesers para duas horas, pensei, nada mau. Vou então comprar maltesers na máquina, sento-me algures e ponho-me a escrever este texto da treta. Também compro um café para não me dar o sono antes de entrar no avião. Entretanto reparo que já não tenho maltesers. Devo ter comido um malteser por segundo, não faz mal, estava distraída. Os espanhóis ganharam 4-0, surreal. O resultado lembra-me as cabazadas que eu levava do meu irmão naqueles jogos de computador. O ecrã diz-me que o voo vai sair a horas, salvo seja. Finalmente, o embarque começa, é a aviar. Entro no avião e sento-me no meu cantinho à janela: 13 A. Bem-vindos a bordo. A sua segurança é muito importante para a TAP. Continuo a escrever este texto da treta, porque não me apetece inventar coisas novas, estou muito bem assim, nesta história de verdade, eu gosto. Neste avião, existem 8 saídas de emergência, dá sempre jeito saber. De repente, apagam-se as luzes, fico às escuras com o meu caderninho. Eu bem queria escrever este texto da treta, mas assim não dá. Nos lavabos também existem máscaras de oxigénio, também é bom saber. Descolamos a horas, quer dizer, às vingt-trois heures. Lá em baixo, a cidade com luzinhas. Lá em baixo, dava para escrever, penso. Cá em cima, não dá. Isto de estar às escuras dá-me um sono incrível. Aviei.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Previsão Meteorológica, Bruxelas

Sete horas e só o tempo acontece, nada mais. No céu, nuvens densas e escuras. Não, uma só nuvem densa e escura. Possibilidade de precipitação: 80%. Cada vez mais densa, cada vez mais escura. Períodos de céu muito nublado. Máximas previstas para hoje: 18º C. Sete e três. Trevas. Condições favoráveis à ocorrência de trovoada e aguaceiros fortes. Qualquer coisa surge, mas não o dia, não o sol. No céu, branca e intermitente, uma luz acende e apaga. Uma luz acende e apaga, mas ninguém vê, porque as pessoas não veem quando dormem. Humidade: 60%. As pessoas dormem. Qualquer coisa acontece. Sete e um quarto. Um estrondo magnífico, de Juízo Final. As pessoas que dormem acordam. As pessoas que dormem levantam-se, descabeladas, espreitam o céu com os seus olhinhos pequenos. Nos seus olhinhos, qualquer coisa acontece. Qualquer coisa terrível, terminante. Previsível. O vento sopra moderado de sudeste. Sete e dezoito. Eventual formação de lençóis de água. As pessoas que dormem tomam banho. Penteiam os cabelos, vestem-se, saem de casa. Possibilidade de cheias rápidas em meio urbano. As pessoas que dormem enfiam-se num buraco muito fundo. Sete e trinta e nove. Um homem toca saxofone no buraco muito fundo. As pessoas que dormem ouvem. Um bramido de outro mundo e o metro chega. Previsível. Possibilidade de inundações de estruturas urbanas subterrâneas. As pessoas que dormem entram no metro e partem. Qualquer coisa acontece. Qualquer coisa terrível, terminante. Mas as pessoas que dormem não veem. Dentro dos seus olhinhos, um céu muito nublado, possibilidade de aguaceiros. Uma luz intermitente que acende e apaga. Mínimas: 12º C.
Farta desta terra.
(A chamada gota de água.)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Senhora Coisinha

Era muito magra e curta, a Senhora Coisinha. Acabava logo ali, pela anca dos outros, o que era francamente caricato, tendo em conta que a Senhora Coisinha batia frequentemente com a cabeça nas nádegas ampliadas das outras mulheres ou nos gigantones órgãos masculinos, que se atarantavam a seguir, de cabeça no ar. Por estas e outras razões, a presença da Senhora Coisinha, ainda que quase insignificante, era muito incomodativa e tão indesejada como a de um inseto: aparecia em sítios e ocasiões inesperadas e as pessoas, por vezes, assustavam-se, ainda que fossem muito maiores do que ela.
A Senhora Coisinha não era anã. Sabemos isto porque as suas pernas e a sua cabeça eram proporcionais ao resto do corpo. Também não era uma criança nem uma jovem franzina, nada disso. A Senhora Coisinha era uma senhora para os seus 55 anos, vá, e tinha mamas, vagina e útero como as outras mulheres, embora em menor dimensão, proporcionais ao resto do corpo. A Senhora Coisinha era, aliás, atraente quando vista ao perto através de um monóculo especializado ou de uma lupa e não tinha quaisquer complexos por ser tão pequenina. Por exemplo, se fosse preciso saltar para chegar a um balcão, ela saltava. Se fosse preciso gritar para a ouvirem, ela gritava. Se fosse preciso subir a um banco para ver um concerto, ela subia. Sem qualquer problema. A Senhora Coisinha era, portanto, uma pessoa prática e esforçada, vislumbrava em cada desafio uma oportunidade. Em dias promissores, que eram muitos, chegava até a sentir que a sua pequenez era a sua maior grandeza, porque valia tanto como as restantes pessoas perante a lei e a moral, mas era pequena o suficiente para ver os pormenores. E isso, no entender da Senhora Coisinha, era uma mais valia, um grande privilégio, um recurso preciosíssimo, diga-se, porque os pormenores, pensava a Senhora Coisinha, eram mais importantes do que o todo.
No entanto, as outras pessoas, que eram colossais e meio cegas como ciclopes, não estavam de acordo. O todo era fundamental, o horizonte era fundamental, assim como o contexto, o panorama, a macroeconomia, a sociedade. Por causa disso, os encontros com a Senhora Coisinha na farmácia ou no supermercado estragavam-lhes o dia. Eram minudências desnecessárias que as distraíam da visão geral.
Mas a verdade verdadinha é que as pessoas grandes se sentiam ridículas ao pé da Senhora Coisinha. Estavam constantemente a dar-lhe empurrões e pisadelas porque não a viam no seu caminho. Contudo, porque estavam em maioria, apontavam os seus dedos gordos na direção da Senhora Coisinha e riam-se.
O riso das pessoas grandes fazia imenso barulho, mas a Senhora Coisinha estava-se nas tintas. Fazia as suas comprinhas minúsculas e seguia em frente, concentrada como uma formiga. Pensava: Ainda hei de rir melhor. E acreditava nisso, ainda haveria de rir melhor.
Infelizmente, nunca chegou a rir melhor, porque certa manhã de luz amena, um homem maljeitoso sentou-se num banco de jardim e matou a Senhora Coisinha, que estava descansadamente a ler um livro pequenino. Era um acidente evitável, lamentável, lastimável, diziam as pessoas grandes, que gostavam de falar a rimar. Depois, cavaram um pequeno buraco no jardim e atiraram a Senhora Coisinha lá para dentro. A seguir lavaram as mãos, porque eram muito asseadas.
Nunca mais ninguém falou da Senhora Coisinha e, de repente, era como se a Senhora Coisinha nunca tivesse existido, para o bem da visão geral, da sociedade, da macroeconomia.
Mas tinha existido, a Senhora Coisinha. Existia ainda, existiria sempre. Continuava na memória das pessoas grandes, incomodativa como um inseto, como um pormenor.
E as pilas dos homens grandes nunca mais foram as mesmas.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Chove para aí um lago ou um rio, a ver se eu me ralo.

Chove tanto fora da cabeça que nem dá para ouvir os pensamentos que correm dentro, o que não é uma coisa nada má, pelo contrário, porque os meus pensamentos – já de si pobres de espírito – em dias de junho com chuva têm um certo Q de dilúvio e eu não gosto nada de pensamentos torrentosos, blargh. Portanto, olha, chove para aí um lago ou um rio, a ver se eu me ralo. No final do dia, passo aí a ver se dá para pescar uma sardinha assada, por exemplo, mas até nem faço questão, porque as espinhas às vezes ficam encravadas no esófago e uma pessoa fica com os olhos vermelhos, farta-se de tossir, é horrível. Se bem me lembro, eu não gosto nada de ir aos Santos. Está sempre montes de gente expansiva nas ruas, não dá para ouvir o telemóvel, é uma confusão. E, se me distraio, vou de sandalinhas e ainda me arrisco a cortar o dedo grande num vidro ou assim. Nah, é muito melhor estar aqui. A trovejar dentro da cabeça sem sentimentos nem nada, só trovões e chuvinha boa para lavar as ruas. Pelo menos, olha, sempre poupo uma tempestade num copo de água. E não fico a choramingar do cérebro como os outros emigrantes, que se estão sempre a queixar do tempo, todos manjericos. Eu não. Eu gosto.
Chuvinha boa para lavar as ruas. 
Não sou nenhum peixe fora de água aqui. Não sou. É que não sou. Não sou mesmo.
Juro.
Pá, agora a sério: não sou.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Vampira cusca

Suga sumo de laranja por uma palhinha de plástico amarela que mordisca enquanto ouve. Também ajeita os seus óculos muito grossos para se verem bem ao longe. Prefere ouvir a falar, esta moça que suga sumo de laranja. Por causa disso, faz perguntas. Muitas perguntas. Sobre isto, sobre aquilo. Sobre os outros. Sobretudo, sobre os outros. É uma vampira cusca, conheço o estilo. Posso perguntar-te uma coisa? Conheces aquela? E a outra? E aqueloutra? Faz o quê? Ai sim? É solteira? Vive onde? Também exclama, a moça, porque os outros falam mais quando exclamamos, especialmente se formos teatrais. A sério? Meu Deus, não fazia ideia! Que horror! Coitada! Um certo comprazimento preenche-lhe a voz, por causa da fofoquice e também da vitamina C. Sente-se mais forte, agora. Por causa dos outros, que se sentem visivelmente mais fracos. Suga o seu suminho de fruta, a moça, e mordisca. A vida dos outros faz-lhe bem. É como ter vida própria, mas é muito melhor do que ter vida própria, porque não é preciso ter uma opinião ou tomar uma atitude ou gastar energia com coisas mundanas, como seguir uma receita de cozinha ou lavar as janelas. É só preciso estar em companhia, num barzinho de vampiros, a beber sumo de laranja e a fazer perguntas. É uma vampira cusca, sem dúvida, conheço bem aqueles dentes compridos. Tem também a tez muito branca, porque nunca apanha sol. E, por ser eterna, não tem grandes ideias, faz perguntas. Precisa de matar o tempo em barzinhos assim. Ri-se, exclama, cada vez mais forte, os outros cada vez mais fracos. Parecem pessoas de verdade, mas não são. As vampiras cuscas são das maiores pragas nas grandes cidades. Os pombos também. Infelizmente, as pessoas continuam a dar-lhes de comer. E já se sabe que, tanto no caso das vampiras cuscas como no caso dos pombos, a capacidade de reprodução está estreitamente associada à sua alimentação. Nunca mais dou de comer a vampiras cuscas.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Senhor repetido

Um senhor sobe a rua. É um daqueles senhores repetidos que vestem fato e gravata e bebem vinho branco na Place Lux a partir das cinco e meia. O senhor repetido usa por cima da gravata o cartão de identificação do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia ou do Conselho da União Europeia ou de outra instituição a acabar em –eu ou –eia, com a sua fotografia e com estrelinhas, acho (não dá para ver daqui). O senhor repetido não está a beber vinho branco, está só a subir a rua. A narradora deste texto, que está aborrecida, fica a vê-lo subir. De repente, assim do nada, o senhor repetido cai, o que é muito incómodo para quem vê e para quem cai, porque o senhor é elegante e não devia ter caído. Além disso, não tinha propriamente razão para cair, porque não escorregou nem tropeçou. Ainda assim, cai. E o mais curioso é que nunca mais se levanta, porque também nunca mais aparece. O senhor, pura e simplesmente, desapareceu. Tipo Tcharam!, um truque de magia. É possível até que não tenha chegado a cair. A narradora espera, espera e nada acontece. Conclui: Só pode ter sido um qualquer truque de magia. Isso ou o senhor caiu efetivamente num buraco muito fundo, coitado. Nesse caso, talvez esteja vivo ainda e deve estar muito aflito, enfiado naquele buraco. Fica preocupada, a narradora, quer ajudar o senhor repetido. Mas eis se não quando aparece, no fundo da rua, um outro senhor repetido. Não será, com certeza, o mesmo (descubra as diferenças), mas também deve beber vinho branco na Place Lux a partir das cinco e meia. Fica a vê-lo da janela, a narradora. Infelizmente, este senhor não cai nem desaparece. Deve ser o suplente.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Estiveste na creche?

- Olá, Rodrigo! 
- Olá! 
- Estás bom?
- Xim.
- Então, o que fizeste hoje? Estiveste na creche? 
- Não.
- Não estiveste na creche?! 
- Não. 
- Então não estiveste hoje na creche?! 
- Não.
- De certeza, Rodrigo? Andas muito esquecido... Não estiveste na creche?! 
- Não.
- Então estiveste onde? 
- Na escola. 
- Aaaaah, pois é, tens razão. Estiveste na escola. 
- Pois.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Lançamento do Livro «Cem anos - 100 palavras»

Hoje, pelas 18h45, no Salão Nobre da Reitoria da Universidade do Porto (Praça Gomes Teixeira) será lançado o livro «Cem anos - 100 palavras», editado pela U.Porto editorial no âmbito das comemorações do centenário da Universidade e do concurso literário com o mesmo nome.

A apresentação do livro será feita por Francisco Ribeiro da Silva, Presidente do Júri do Concurso Cem Anos, 100 Palavras e autor do prefácio da obra.


terça-feira, 6 de março de 2012

Sting - Mensagem numa garrafa

Ora bem, eu nunca fui grande fã do Sting. Não gosto lá muito de homens com mente e corpo sãos, parecem-me bonecos de brincar e não meninos de verdade. Além disso, os gritinhos do Sting sempre me incomodaram um pouco, porque tenho tímpanos muito sensíveis e não associo gritinhos aos homens de verdade. A juntar a isto devo dizer que, se a canção do Desert Rose fosse uma coisa de verdade, já a tinha atirado pela sanita abaixo porque acho a canção um bocado parola e pretensiosa, de English man em Nova Iorque que quer muito ser um cidadão do world music. É claro que na minha pré-adolescência suburbana e pobre de espírito achava a letra da canção Every Breath You Take absolutamente genial, mas isso depois passou.

Tudo isto para dizer que, quando me anunciaram que o Sting vinha a Bruxelas, bocejei e pedi uma bica cheia, porque me deu um sono incrível. Mas passados estes meses, como sou uma verdadeira Ana-vai-com-as-outras, acabei mesmo por ir ver o Sting ontem à noite numa sala acolhedora e muito redondinha, a uns 30 metros do senhor.

E a verdade é que até me deu uma aguda parolice no peito quando o vi entrar. O Sting ali estava, mente e corpo sãos, a dizer umas patacoadas em francês e neerlandês e eu fiquei nervosinha como um passarinho, porque nunca pensei ver o Sting logo ali à mão de semear e apalpar para ver se é de carne e osso. O Sting afinal existia e mexia as pernitas enquanto tocava no baixo. Era um bonequinho de brincar, mas afinal o Sting não é um boneco de brincar, é um homem a sério, uma voz a sério, uns braços e pernas que, aos 60 anos de idade, upa-upa, são de facto um assunto de grande seriedade.

Os outros músicos também eram pessoas a sério: uma tipa loura que não precisava dos seus saltos de 10 centímetros para se fazer ver e ouvir, um baterista brutalíssimo bate-bate-coração, dois guitarristas irrepreensíveis e um violinista com muita pinta, saído de um Spaghetti Western.

A voz do Sting não envelheceu, o que é outro assunto sério. E os gritinhos do Sting, afinal, não incomodam nada, são bem queridinhos. Fez-se então luz no meu coração suburbano e pobre de espírito, porque andava a negar um amor antigo e o Sting - mente e corpo sãos - é um amor de verdade.

No final, cantei o Message in a Bottle como se não houvesse canção mais bonita. E hoje apeteceu-me escrever sobre isto, no estilo SOS to the world, porque sou sensível e parola como uma autêntica rosa do deserto.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

mãos grandes e inseguras

Quatro poemas:
da esquerda para a direita, 
coluna da direita,
coluna do meio
coluna da esquerda.


mãos
grandes e inseguras
unhas
curvilíneas

sempre
o medo da folha   
branca e vazia
como um princípio

a ponta da vontade


pega na folha
com o final dos dedos

linhas ilegíveis e tremeluzentes

como um princípio
no final
dos dedos 
e não
na folha branca e vazia

dobra a folha ao meio

contempla

é agora metade de si própria

dobra
as pontas
da folha
com a ponta
dos dedos

e é agora uma outra coisa

um avião

o final
dos dedos
não acaba


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Um casal comprido e narigudo

Um casal comprido e narigudo vem aos beijinhos no metro. São 8h da manhã e as pessoas afastam-se do casal, incomodadas com os beijinhos alheios (barulho, lábios, saliva, credo!). Uma rapariga de casaco vermelho fica a olhar para eles e ri-se. Acha curioso observar pessoas de narizes compridos a darem beijinhos, parecem passarinhos e não se atrapalham nada. Observa-os atentamente: Ela de rugas fininhas mas profundas na ponta dos olhos e dos lábios, caracóis ao alto, ele de cabelo grisalho e bem composto. Têm ambos, à vontade, idade para ter juízo. Dão beijinhos curtos e sonoros - chuac, chuac, pio, pio - um som entre o assobio de pássaro e o grasnar de ganso.
A rapariga de casaco vermelho ri-se outra vez. É infantil, apesar de já ser bem grande.
A carruagem vem cheia de gente de hálitos e hábitos esquisitos. Uma mulher com ar de quem começa a dar ordens ao marido às 6h da manhã e lava o chão da cozinha todos os dias porque os três filhos rapazes não sabem comer para cima da mesa encolhe os ombros, sobe e desce as sobrancelhas num tique nervoso, está verdadeiramente irritada com os beijinhos curtos e sonoros do casal comprido e narigudo.
Um senhor de óculos pequeníssimos vem a ler a Economist. De vez em quando suspira e lança um olhar enfastiado para o casal comprido e narigudo. Também lança um olhar enfastiado para a rapariga de casaco vermelho, que se vem a rir (é infantil). Afinal lança um olhar enfastiado para todos os passageiros (nothing personal).
As pessoas estão cada vez mais próximas umas das outras porque querem afastar-se o mais que podem do casal comprido e narigudo (barulho, lábios, saliva, credo!). Uma senhora baixinha e muito magra, de franja pelos olhos para fingir que tem 30 anos, embora seja visível que tem, no mínimo, 50, masca uma pastilha acelerada e olha para o mapa do metro com um ar muito concentrado. Claramente, esta senhora de franja pelos olhos não está a olhar para o mapa do metro, até porque é impossível ver alguma coisa através daquela franja farfalhuda. Está mesmo só à procura de uma distração. Os beijinhos destabilizam-lhe os ouvidos e a senhora já tem problemas de equilíbrio por causa de não-sei-quê nos tímpanos.
A carruagem vem cada vez mais cheia e as pessoas estão cada vez mais unidas contra o casal comprido e narigudo, conspiram e suspiram contra os beijinhos sonoros no metro, uma vergonha.
A mulher dos três filhos está tão enervada que, ao sair do metro, abalroa a rapariga do casaco vermelho, que ainda vem com um sorrisinho parvo no semblante. A rapariga do casaco vermelho, que, apesar de infantil, é grande, vai projetada contra a senhora da franja pelos olhos que, por ser franzina e ter problemas de equilíbrio, acaba mesmo por cair nos braços do senhor dos óculos pequeníssimos. Na carruagem paira brevemente uma esperança de romance que afinal não é mais do que isso: uma esperança de romance. Senhora e senhor dão às asas como pombos assustados, cada um para seu lado. Desolada, pas de soucis.
O senhor dos óculos pequeníssimos dá o último suspiro e guarda a revista debaixo do sovaco, o que é um claro sinal de que o senhor desistiu de se cultivar. Trata-se portanto de uma perda de conhecimento valioso, tanto para o senhor dos óculos pequeníssimos como para a comunidade no geral. A carruagem apoquenta-se.
O casal comprido e narigudo com idade para ter juízo continua aos beijinhos - chuac, chuac, pio, pio. Ela de rugas fininhas, ele de cabelo grisalho, não reparam em nada disto: na mulher dos três filhos, no senhor dos óculos pequeníssimos, no estado do mundo, na senhora da franja pelos olhos, na rapariga de casaco vermelho.
As pessoas que dão beijinhos sonoros passam a vida a transformar o mundo mas nem dão por isso, porque não querem saber de nada e, muito provavelmente, não leem a Economist. São burras.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Conto infantil para adultos: A alegoria da caixa de fósforos

Era uma vez uma caixa de fósforos, onde viviam encarceradas centenas de fósforos que muito raramente viam a luz do dia. Certa manhã de sol e nuvens pequeninas, por obra de um milagre ou de uma mão desajeitada, caíram dois fósforos da caixa que, eufóricos, rebolaram pelo chão da cozinha a festejar a sua liberdade. De seguida, como tinham frio e calor, correram um para o outro e acenderam-se. Ambos ficaram encandeados com a chama admirável que, juntos, emitiam.
Passados dez segundos - mais coisa, menos coisa - morreram.
Moral da história: O excesso de luz embrutece.

domingo, 15 de janeiro de 2012

vil vendaval vertebrado

varrendo

vilas vales ventres

vozeando

viçoso

vocais vocábulos vocativos

verbos versos versículos

vira vigia venera

vigorosas valquírias

virgens venéreas

véus vestidos vaidades

vento valente vetusto

veloz voraz veraz

vem vai volta

vê vive vence

vigorosos veteranos

viúvas vindouras

vós vosselências vencidas

vulgares vassalos

vivendo vergados

vagares vigilantes

virtudes viciosas

valores virtuais

ventania vidente vacilante

veio vigorosa vasculhando

virilhas vaginas vísceras

veleiros vimeiros vitrais

varrida ventaneira vingativa

voejando verdes várzeas

vindicando veemente

vida

vanguarda

vitória

vaivém viandante

viagem vertical vulcânea

vidas vãs

ventres vazios

viravolta

vácuo

vice-versa

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Texto com monossílabos - Um mar sem fim

não tem
ar
nem pés
nem céu
é
só um mar
sem sal
nem
pôr
do
sol
que cai
em mim

um mar
de dor
e fé
que vai
de cá           pra lá
sem pé
sem ar
sem céu
e não tem
fim

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O Rodrigo e o carro


- Olá, Rodrigo! Tens uma Sininho?!
- Sim.
- Queres brincar com a Sininho?
- Sim.
- Sabes que a Sininho tem poderes mágicos?
- Sim.
- A Sininho voa.
- Carro.
- Como?
- O carro.
- Mas a Sininho não anda de carro.
- ...
- A Sininho voa, não anda de carro. E tem uns pozinhos mágicos para nós podermos voar também.
- ...
- Olha a Sininho a pôr uns pozinhos mágicos em mim. Plim, plim, plim! Agora estou a voar, vês? Olha eu a voar: Vrrrrrruuuuummm…
- Vrrrrrruuuuummm… (risos)
- Vrrrrrruuuuummm…
- Vrrrrrruuuuummm… (ainda mais risos)
- Vrrrrrruuuuummm…
- Carro.
- Isto não é um carro, Rodrigo, há outras coisas no mundo além de carros. Isto somos nós a voar. Queres voar com a Sininho?
- Não.
- Não queres?!
- Não. Vrrrrrruuuuummm… (risos)
- Vrrrrrruuuuummm…
- Carro.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Rua do Alecrim com Gonçalo M Tavares

No ano passado, no final do mês de dezembro (há uns dias, vá), vínhamos (eu e o homem ilimitado) a descer entusiasmados a Rua do Alecrim, quando reconheci à minha frente os caracóis do Gonçalo M Tavares. Palavra de honra, reconheci-lhe os caracóis antes de lhe reconhecer as lunetas, até porque o senhor Tavares estava de costas, não dava para lhe ver o frontispício.

Gosto de caracóis no geral e dos caracóis do senhor Tavares em particular.

Antes de dar de caras com os caracóis do Gonçalo M Tavares, já vinha toda contente a descer a Rua do Alecrim. A bem dizer, não precisava do senhor Tavares para ganhar o dia, até porque estava sol e eu vinha a descer a rua com o homem ilimitado, falávamos animadamente sobre coisas da vida, o rio brincava ao longe com a luz e nós íamos apanhar o comboio para Cascais. Isso tudo (sol, rua, coisas da vida, rio, luz, comboio) já era suficiente para descer a Rua do Alecrim aos pulinhos.

Além disso, quando desço a Rua do Alecrim lembro-me sempre da canção do alecrim-aos-molhos e essa canção dá-me logo vontade de andar aos pulinhos.

Ao avistar os caracóis do Gonçalo M Tavares, fiquei ainda mais contente (Alecrim, alecrim aos molhos...). Por momentos, até achei que lhe ia dar assim uma palmada bem dada nas costas. Mas depois pensei outra vez e não dei uma palmada bem dada nas costas do senhor Tavares, fiquei só a vê-lo descer a Rua do Alecrim.

O senhor Tavares trazia pela mão, não um cãozinho, não um gatinho, mas uma misteriosa mala preta e vinha assim curvado para a frente, a falar e a rir, muito debruçado sobre outro ser humano que também falava e também ria, mas a quem não prestei atenção absolutamente nenhuma.

Durante esta observação atenta (Alecrim, alecrim, aos molhos, por causa de ti...), reparei que o Gonçalo M Tavares tem um ar bonacheirão. Tem mesmo um ar bonacheirão, deve gostar de comer bom queijo e beber bom vinho, imaginei logo um respeitável caderno Moleskine cheio de nódoas de tinto, extremamente difíceis de tirar. Depois reparei que, ao contrário do que eu imaginava, os ombros do Gonçalo M Tavares são muito magrinhos. Isto, primeiro, surpreendeu-me, depois assustou-me.

Uma pessoa com ar bonacheirão não tem ombros magrinhos. Fiquei logo apoquentada. Seria isto um indicador de que Gonçalo M Tavares afinal não é bonacheirão? Ou que o Gonçalo M Tavares não come bom queijo? Teria o senhor Tavares perdido a vontade de comer? Estaria a criatividade do senhor Tavares a alimentar-se dos ombros do senhor Tavares? Estaria o senhor Tavares a alimentar-se exclusivamente de papel não reciclado?

Em qualquer dos casos, os ombros do senhor Tavares não mereciam uma palmada bem dada e eu perdi logo a vontade de lhe dar uma palmada bem dada nas costas. Na verdade, substituí essa vontade por uma outra vontade: a de fazer uma sopa de cenoura para o senhor Tavares. No entanto, não fiz uma sopa de cenoura para o senhor Tavares, porque afinal a vontade não era assim tão grande e também não havia por ali cenouras nem batatas nem cebolas à mão de semear.

Por causa de todas estas coisas (sol, rua, coisas da vida, rio, luz, comboio, Gonçalo M Tavares, cenouras, batatas, cebolas), eu e o homem ilimitado íamos muito lançados rua fora (Alecrim, alecrim, aos molhos...) e não conseguíamos abrandar o passo, de maneira que acabámos por ultrapassar o senhor Tavares.

Ao passar pelos seus ombros magrinhos assim pela esquerda, olhei para o senhor Tavares e o senhor Tavares, sentindo-se observado por comuns mortais, aguçou o olfato, parou de rir e de falar e olhou para mim. Sorri envergonhada como uma menina de 8 anos e meio (até me saiu um risinho agudo de menina de 8 anos de meio e corei). De seguida, desatei a correr pela Rua do Alecrim a cantar a canção do alecrim aos berros.

Ora, este episódio serve para demonstrar, mais uma vez, que a criatividade é um bicho muito cruel, instala-se no corpo de repente e é muito difícil uma pessoa livrar-se do bicho.

Estou muito preocupada com os ombros magrinhos do Gonçalo M Tavares.