segunda-feira, 30 de março de 2020

O horizonte temporal

Isto continua a parecer um episódio do Twilight Zone (não vi o Black Mirror). Ou uma temporada mesmo.
Pena não dar para avançar rapidamente até ao fim do último episódio. Não que eu queira saber exatamente como é que isto acaba. Não quero saber se vamos morrer, enlouquecer, embrutecer ou despertar para uma nova humanidade. Isso depois logo se vê. Mas gostava muito de saber ao certo quando é que isto acaba. Em que mês. Mais precisamente em que dia. Se vai ser antes do verão, depois do verão, no inverno ou para o ano que vem. Na verdade acho que estou um pouco obcecada com este horizonte temporal.
No meu círculo ninguém parece muito incomodado com isto. Dizem-me que esta temporada há de chegar ao fim, que há de durar o tempo que durar. O melhor talvez seja não pensar muito nisso. É ir vivendo o dia a dia. Não é melhor assim? Se pensarmos bem, talvez não chegue a haver propriamente um fim. É possível que seja tudo muito gradual. Se calhar as escolas abrem, mas a malta continua a trabalhar em casa. Se calhar os cafés abrem, mas a regra do distanciamento social mantém-se. Se calhar vamos passar a andar de luvas e de máscara. Se calhar vira moda andarmos por aí todos desinfetados e distantes. Possivelmente vamos deixar de dar beijinhos e abraços, qual é o mal? Mas ainda é muito cedo para saber, não vale a pena especular. Um dia de cada vez. 
Algumas pessoas arriscam uma data: lá para junho ou julho. Talvez setembro. Talvez 2021. Uma coisa é certa: isto vai demorar.
A mim ajudava-me barés ter um prazo em vista, uma meta. O tal horizonte temporal.
Sempre dava para ir riscando os dias num calendário, contar os dias que faltam. Sempre dava para ver se estamos no início ou já a meio.
Reparo agora que sou uma pessoa que olha bastante para o calendário. Não só para saber dos compromissos do dia ou da semana. Mas para antecipar as cenas dos próximos episódios. Neste momento estamos no final de março. Ora, deixa cá ver o que vai acontecer em abril e em maio.
Reparo também que, em quase todas as fases da minha vida, me orientei pelo fim de cada uma dessas fases. O fim de um ano letivo, por exemplo. O fim de um estágio. O fim da bolsa de estudos.
Não que aguardasse esse final com entusiasmo ou impaciência. Às vezes sim, porque esse futuro próximo seria melhor do que o presente. O fim da época de exames, por exemplo. O final de um dia de trabalho. O fim de semana. Mas outras vezes, não. Não queria nada chegar ao fim das férias do verão, não queria nada voltar da Eurodisney. Mas a noção de que esse fim haveria de chegar ajudava-me a apreciar o presente, a aproveitar todos os minutos.
Em qualquer dos casos, há sempre uma contagem decrescente a acontecer na minha cabeça, nem que seja no meu inconsciente. 
Quantas horas até ao nascer do sol. Quantas semanas até ao fim da gravidez.
Quantas páginas até ao final do livro.
O fim é sempre o resultado de um esforço, de uma espera, de uma experiência.
A noção de que tudo acaba é o que me ajuda a valorizar o presente. No extremo, aprecio a vida por saber que ela acaba e que é feita de muitos fins. (Ia escrever “A vida passa a vida a acabar”, mas depois arrependi-me.)
Ora, neste caso em concreto, é impossível prever um desfecho, um final feliz, uma data-limite. Quando vamos voltar a ver os nossos amigos e familiares? Quando vamos poder entrar num café? Quando vamos voltar a viajar? Quando vamos regressar ao nosso local de trabalho? Quando vão abrir as escolas?
Eu olho para o calendário e sinto falta desse horizonte temporal. Se soubesse em que dia acaba este pesadelo, conseguia olhar para esta clausura de outra maneira. Isto não passaria de uma fase, de uma etapa, de um período. Talvez conseguisse até tirar algum partido disto. No entanto, sem essa luz ao fundo do túnel, fica só mesmo o túnel e a escuridão. Sinto-me um pouco à deriva. Eu olho para o calendário e não sei dizer se esta temporada ainda vai durar muito tempo. Desconfio que sim, mas gostava de saber ao certo. Para ficar a aguardar esse fim com enorme expectativa.
Se eu não fizesse parte desta série, não ia perder tempo com ela. É tipo um Lost com toque de Desperate Housewives sem Office nem Friends nem Prison Break à vista.
Pensando bem, o Twilight Zone era exatamente isto. Se calhar estamos mesmo na tal quinta dimensão. Se calhar ainda estamos no primeiro episódio.


Por curiosidade e nostalgia, andei na net à procura da primeira temporada do Twilight Zone. O primeiro episódio chama-se “Where is everybody?” (“Onde está toda a gente?”) e começa com aquela mítica narração que passo a citar e a traduzir para terminar este texto:

“There is a fifth dimension beyond that which is known to man. It is a dimension as vast as space and timeless as infinity. It is the middle ground between light and shadow, between science and superstition, and it lies between the pit of man's fears and the summit of his knowledge. This is the dimension of imagination. It is an area we call the Twilight Zone.”

[Há uma quinta dimensão para lá do que é conhecido pelo ser humano. É uma dimensão vasta como o espaço e intemporal como o infinito. Fica a meio caminho entre a luz e a escuridão, entre a ciência e a superstição, e situa-se entre o abismo dos medos do ser humano e o cume do seu conhecimento. Esta é a dimensão da imaginação. É uma área a que chamamos zona do crepúsculo.]

sábado, 28 de março de 2020

Arco-íris

O que dá cabo de mim não é bem este distanciamento surreal. Não é a minha casa. Não é a minha família. Não é a minha vidinha com os seus mini dramas. O que dá cabo de mim é ver o número de mortes aumentar e a solidariedade diminuir. É olhar para os gráficos e já não sentir grande coisa. É ver aqueles arco-irís que as famílias andam a pôr nas janelas e pensar que não, não vamos todos ficar bem. É ver a União Europeia cada vez mais desunida. É ver a discussão acabar sempre no dinheiro. É não me sentir inspirada por um nenhum dirigente. É perceber que isto nos vai transformar para sempre. É pensar que vamos sair deste isolamento ainda mais isolados. 
É acima de tudo não ter um fim em vista. Não saber em que momento este pesadelo vai acabar. Não saber se este pesadelo vai acabar de facto.
É não me reconhecer no meio deste negrume. É sentir que eu já não sou bem a mesma pessoa. É olhar para as árvores e achar que elas andam contentes. É pensar que o Covid-19 pode ser o herói do ambiente. É pensar que nós somos o inimigo.
Mas depois às oito da noite ouço as palmas lá fora e isso salva-me. Largo o que estiver a fazer. Abro a persiana à bruta, abro a janela e grito, urro, bato palmas. O meu marido vai buscar o xilofone, o nosso mais velho guincha de entusiasmo. Diz: “palminhas”. Ficamos os três à janela a fazer barulho. Vejo a vizinha do lado que é italiana. Vejo a família do quarto andar, ele espanhol, ela italiana, os dois filhos a bater nas pandeiretas. Vejo mais uns vizinhos à frente, em baixo e em cima, não sei quem eles são. Acenamos uns aos outros. A vizinha do lado diz qualquer coisa que eu não percebo. Ela repete, eu não percebo. Rimo-nos, batemos palmas. A nossa ovação é uma oração. Eu bato palmas para os profissionais da saúde, claro, mas também para os que recolhem o lixo, para os que asseguram que os supermercados continuam a funcionar, para os polícias, para os bombeiros, para os professores. Eu bato palmas para os teletrabalhadores, para os independentes que não sabem como vão pagar a renda no próximo mês, para os artistas que andam a disponibilizar a sua arte para nos salvarem e para se salvarem a eles. Eu bato palmas para todos os doentes que estão no hospital, para os que morreram, para os que sobreviveram e também bato palmas para todos os que batem palmas, para os que ficam em casa e não perdem o Norte. Eu bato palmas para os meus filhos, para as crianças de todo o lado, para os pais, para os avós, para os que estão sozinhos, para todos os homens e mulheres e todos os que não estão nesta lista e deviam estar. 
Eu bato palmas e tenho vontade de abraçar os meus vizinhos, de abraçar o mundo inteiro. Eu bato palmas e tenho vontade de desenhar um arco-íris e de escrever por baixo desse arco-íris “vamos todos ficar bem”. Porque de repente também acredito nisso e não há nada mais humano do que esta esperança, esta vontade. Esta salva de palmas.

O arco-íris dos meus sobrinhos.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Mãe e filho

Se calhar não devia dar tantos beijos aos meus filhos. Não sei. Se eu tiver o bicharoco, hão de estar todos infetadinhos. 
Penso nisto sempre que lhes beijo as bochechas e as pernocas e as covinhas das mãos e o duplo queixo e aquelas cabecinhas mornas, mas o meu instinto é burro que nem uma porta, a minha boca vai direitinha a eles e beija-os não sei quantas vezes seguidas, xuac xuac, xuac xuac, grande estúpida. Eu beijo-os e penso que este poderá ser o beijo fatal, por isso apresso-me a dar mais um e mais este e este ainda. Muitas vezes mordo-os também. Mas eles não se ficam. Puxam-me o cabelo, dão-me unhadas e tabefes. Beliscam-me, arranham-me, mordem-me. 
Se o isolamento me der para a loucura, vou acabar por comer os meus filhos. Sempre fui um bom garfo. E não sou a única mãezinha doente.
Parece que a natureza está cheia de mães que ingerem as suas crias. Insetos, anfíbios, répteis, felinos, roedores.
Na mitologia grega há vários deuses que comem os filhos, mas também há filhos que matam os pais.


A bem dizer, se este isolamento durar muito tempo, é possível que venham a ser os meus filhos a devorar a progenitora. São fortes, ingratos e mais que as mães.
Também disto tem a natureza aos montes. Entre as aranhas, os escorpiões, as minhocas e novamente alguns insetos e anfíbios há muita cria que se alimenta das mamãs.
A relação entre mãe e filho está cheia de contrassensos. Afeto e sacrifício. Devoção e delírio.
Entre mãe e filho não há barreiras. Não há espaço. Não há etiqueta.
Entre mãe e filho não há cá distanciamento social.
É pena.
São eles que vão dar cabo disto tudo: as mãezinhas e os seus filhos. 
Amor e gula. Apego e desejo. 
Carícia e contágio.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Alguém conhece alguém

Nos últimos dias há sempre alguém que telefona a alguém e conta a esse alguém que conhece alguém que tem covid, mas felizmente não esteve em contacto com essa pessoa nas últimas semanas, mas esteve com alguém que esteve com essa pessoa, por acaso deram dois beijinhos, mas foi só uma reunião de trabalho, as pessoas não se tocaram mas no final comeram um bolo de amêndoa e beberam um sumo de maçã porque alguém fazia anos e até brindaram, que estupidez, brindar com sumo de maçã, mas seja como for só um grande azar poderia ditar o contágio por aí, e o alguém que ouve a história respira fundo e diz “vai correr tudo bem”, que é uma frase que as pessoas dizem precisamente quando tudo pode correr mal, e o primeiro alguém diz ao outro alguém que não é por ele nem por fulano nem sicrano, é mesmo pela sua mãe com quem esteve várias vezes nessa semana e a mãezinha, já se sabe, além de idosa e diabética, passa a vida com as amigas igualmente idosas e diabéticas, e nisto interrompe o discurso para tossir, uma tosse seca, cof cof, e os dois alguéns ouvem a tosse e não dizem nada, por um momento fica só a tosse e o silêncio, e depois despedem-se, “vai correr tudo bem”, “claro que vai”, que bom terem feito aquela chamada, era uma maneira de estarem próximos e seguros, cuida de ti, tu também, cof cof, o primeiro alguém desliga a chamada e decide que já nem vai à rua dar a volta ao quarteirão, cof cof, e não é bem pela saúde dele, é pela dos outros, e sente-se de repente bastante bem na sua pele, e decide que as coisas não lhe correram assim tão mal na vida, afinal apaixonara-se várias vezes, passara vários verões no Gerês, dera grandes mergulhos daquela rocha muito alta e escorregadia, a filha tinha casado bem, tantas vezes adormecera na praia a ler um livro, tinha dormido ao relento no pico do Pico, tinha ido a Veneza com a primeira mulher e a Paris com a segunda, já para não falar naquelas tardadas a jogar à bisca e a beber cerveja, agora apetecia-lhe mesmo era um prato de tremoços, mas só tinha amendoins, por isso bebe uma cerveja e come amendoins, que engraçado lembrar-se agora daquelas tardes a jogar à bisca, na altura nem pareciam tão importantes, e esse alguém por ali fica, na mesa da cozinha a tarde toda, cof cof, cof cof, a pensar que se ele morrer em breve, não vem daí grande mal ao mundo nem grande bem, a sua presença ou ausência era um bocado indiferente, e ainda bem, mas no fundo tinha sido uma parvoíce ter deixado de fumar, cof cof.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Tu aproveita agora

E portanto, quando vos passar pela cabeça dizer a uma mulher prestes a entrar em licença de maternidade para ela usufruir dessas férias, quem me dera, tu aproveita agora, que sempre mudas de ares, que sorte poderes ficar tanto tempo em casa, vais adorar ser mãe, mordam a língua e lembrem-se deste período de isolamento. A licença de maternidade é tipo isto, mas sem dormir à noite e com um corpo irreconhecível.
É verdade que não implica horas a fio em frente a um computador, mas cuidar de um bebé que chora, mama, faz cocó e nunca agradece também faz mal às costas e à cabeça.
Não estou a fazer queixinhas. Estou só a dizer.
E a comer bolachas.


quarta-feira, 18 de março de 2020

À roda À volta

À roda À volta
À hora À nora

           Às gargalhadas

À toa À solta
À conta À sombra

           Às três pancadas

À parte À porta
À nossa À vossa

           Aos empurrões

À venda À vinda
À vista À risca

           Aos ziguezagues

À mesa À pressa
Ao vivo Ao quilo

           Às escondidas

Ao pé Ao léu
Ao sol Ao vento

           Às cavalitas

A medo A peito
A sério A jeito

           À estalada

A murro A olho
Ao cubo Ao colo

           A preto e branco

Ao rubro Ao molho
À escolha À espera

           À cotovelada

À sorte À espreita
À trave À chave

           À manivela

À vez À chuva
À vela À escuta

           Aos quadradinhos

À balda À bruta
À justa À custa

          Ao pé coxinho


segunda-feira, 16 de março de 2020

A vida em reclusão

Estou aqui encarcerada a pensar sobre outros momentos de encarceramento. 

É que eu sempre passei tempo fechada em casa. E nem sequer sou introvertida. Falo pelos cotovelos, rio-me muito alto e preciso tanto dos outros, amo os outros. Não há nada que me dê mais pujança do que um jantar romântico ou um copo com amigos ou um almoço de família. Adoro estar à mesa. Não me esqueço das frases nem dos abraços, dos gestos, dos pratos, dos debates. Faz-me tão bem pensar com os outros, existir com os outros.

Mas sempre fiz por passar tempo sozinha e em casa. Não propriamente para me desligar ou para fugir. Pelo contrário. Eu gosto de estar sozinha precisamente para me ligar ao mundo, para pensar sobre ele, para prestar atenção e escrever sobre isso, ler sobre isso. E são esses momentos aparentemente vazios que mais preenchem os meus dias. 

Acontecem-me muitas coisas quando estou em casa. Deito-me no sofá e leio qualquer coisa. Escrevo qualquer coisa. Sinto qualquer coisa. Aprendo qualquer coisa. Anoto. Percebo. Ouço. Vejo. Penso. Lembro-me. Emociono-me. Tenho uma ideia. Tenho uma dúvida. Tomo uma decisão. Em casa os minutos podem durar horas e é tudo mais intenso, mais concentrado. 

Depois fui mãe e a maternidade trouxe outra espécie de confinamento. É uma solidão acompanhada, que é talvez a pior solidão de todas. No início ficava em casa com os meus rebentos porque eram muito pequenos, depois porque ainda não estavam vacinados. Agora fico em casa quando estão doentes ou porque a creche fecha ou porque a babysitter não vem.

Em qualquer dos casos, ontem ou hoje, a ler no sofá ou a dar banhos aos minorcas, o isolamento vem sempre acompanhado de hesitação e ambiguidade. Para quê ficar em casa se podia estar na rua? Para quê estar sozinha se podia estar acompanhada? 

Mais cedo ou mais tarde chega o momento de contraste com a vida lá fora. E é tudo tão melhor lá fora. Pessoas nos cafés, nas esplanadas, nos bares, nos restaurantes. De certeza que eu não preferia estar a beber uma caneca de cerveja? Para quê escrever um livro, se o sol estava tão bem instalado na esquina? Para quê perder anos com a infância destes bebés, se a felicidade mora claramente naquele bar com luzinhas nas janelas?

A vida em reclusão parece exigir uma determinação que eu nem sempre tenho.

Houve ainda outro tipo de isolamento. Foi no final de 2015, com os atentados em Paris. Nessa altura andámos todos mais recolhidos. A sensação nas ruas era a de ansiedade e medo. Qualquer coisa poderia explodir a qualquer momento, poderíamos morrer naquela loja, naquela esquina. As ruas estavam despidas de gente e de vida. O cenário era triste. Depois uma bomba explodiu em Bruxelas e depois outra e, com elas, explodiu também esse medo. O que mais temíamos acontecera por fim e afinal estávamos vivos, embora não iguais. A primeira coisa que fiz foi andar a pé. A segunda foi comprar um livro. E a terceira foi comer chocolate.

Agora estamos todos fechados em casa outra vez. Mas a sensação é bastante diferente. O que nos move (ou o que não nos move) não é bem o terror. É um medo mais positivo. É uma firmeza na vontade. Estamos conscientes e seguros. Estamos numa importante missão antivírus apesar de estarmos em casa. Temos em mente não a morte, mas a vida, porque o futuro está nas nossas mãos (lavadas). Além disso, não há alternativa. Os cafés estão fechados, as lojas também. Há esse consolo no castigo. 

É certo que nenhum de nós escolheu este triste fado, mas sinto-me hoje unida a todos os que estão em clausura. Podemos estar sozinhos, mas não estamos sozinhos nisto.

Queremos proteger os nossos, é certo. Mas acima de tudo queremos proteger os outros: os mais velhos, os diabéticos, os hipertensos, os doentes cardíacos, etc.

Ontem saí de casa, vi as ruas despovoadas, lojas e cafés fechados, elétricos vazios, e não me bateu a ansiedade. Talvez tenha respirado um pouco menos do que o habitual, é verdade, talvez tenha estado mais alerta, as mãos enfiadas nos bolsos. Mas não senti pânico nem tristeza. Senti contentamento e gratidão.

Obrigada, vizinhos. Obrigada a todos os que cuidam. Não é só o pessoal do setor da saúde (que merece obviamente todos os aplausos e louvores). Somos todos nós. Os que ficam em casa. Os que não correm riscos. Os que não têm medo da solidão. Os que atuam, mesmo que isto implique não fazer nada.

Palminhas a nós.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Batman forever

Não há super-herói que nos valha. Nem sequer um daqueles que anda de máscara. O Batman. O Ironman. O Homem Aranha.
Não há propriamente um inimigo. Não houve nenhuma mente perversa a engendrar o Covid. E portanto não dá para combater o vírus à estalada.
Diz que o vírus vem dos morcegos. Que coisa mais sinistra. Se calhar até foi o Batman que lixou isto tudo. É o único ser humano que anda tu-cá-tu-lá com os morcegos.


Assim se transforma um herói num vilão. Basta um pequeno lapso. Ou um boato. Ou o destino. 
É sempre assim com os heróis trágicos. 
Seja como for, a ver pelos óscares, o Joker já era o mais popular da turma.
Coitado do Batman. Tenhamos piedade dele. Aprendamos também nós com os seus erros. Podia ser outra pessoa qualquer. Podíamos ser nós.
Perante a tragédia, purifiquemos as nossas emoções. Só assim vamos conseguir ser uma beca melhores. Vá lá.
Abaixo o Covid.
Abracinho virtual.
Stay the fuck home.

Batman forever.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Europa28

Yes! Falemos do futuro. E falemos da Europa.
No Reino Unido acaba de ser lançada uma antologia de 28 textos escritos por mulheres artistas, escritoras, jornalistas e cientistas europeias.
Já que andam mais por casa, aproveitem para ler!
Tudo sobre o Europa28 (em inglês): https://www.hayfestival.com/p-16342-europa28.aspx


A menina dos cabelos de linho

Encontrei o meu primeiro cabelo branco. Estava em frente ao espelho e vi-o. Era mais grosso que os outros, mais encaracolado. Depois afastei-o e vi outro cabelo branco e depois outro. 
Eu e o meu rosto em frente ao espelho, a minha juventude por um fio.
Nesse instante, no quarto ao lado, um piano a murmurar. Era um daqueles prelúdios do Claude Debussy, coisa mais bonita para os ouvidos. Escutei melhor. 
La fille aux cheveux de lin. A menina dos cabelos de linho.
Uma melodia frágil e sedutora como a inocência, o piano em pleno voo.


A minha mãe conta muitas vezes que os seus primeiros cabelos brancos nasceram logo a seguir a mim. E que depois foi tudo muito rápido. A minha mãe diz: “foi galopante”. Sempre que fala dos cabelos brancos, a minha mãe diz: “foi galopante”. Não usa este termo para mais nada, acho.
Fico aqui a ouvir os prelúdios do Debussy e a imaginar a minha velhice a galope, os meus cabelos ao vento, como uma crina, a minha vida sem rédeas nem freios, a toda a velocidade. Logo eu, que não gostei nada das aulas de equitação, andava para ali às voltinhas em cima de um cavalo triste e o instrutor nem sequer era simpático. Caí do cavalo logo nas primeiras lições e nunca mais me aventurei em montarias equestres. Tinha seis anos e um cabelo impecavelmente liso e negro, que depois ficou castanho e ondulado, e um dia destes, pelos vistos, há de ser cinzento e esquisito como o céu de Bruxelas. 
Resultado: não sei montar um cavalo. É pena. Bem que eu gostava de sair agora em cima de um cavalo negro. Haveríamos de cavalgar pelas ruas ao som deste piano, sem sela nem estribos. O meu cabelo completamente branco, o meu cavalo completamente negro, os dois numa cavalgadura sempre em frente. Haveríamos de acenar à menina dos cabelos de linho. Haveríamos de continuar rua fora, com toda a fúria.
Olho para o espelho, para os meus primeiros cabelos brancos.
Imagino o que aí vem. As rugas nos olhos, as manchas no rosto. A vida inteira a passar por mim. Feroz. Brava. Solta. Galopante.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Lava as mãos, meu amor

Que nunca te falte o ar nem te dê a febre, meu amor. Diz que são esses os sintomas da doença. Não te rias. Já morreu muita gente. Bem sei que a paixão também mata, mas este vírus não é da família dos afetos. Não andes nos transportes públicos. Não vás ao mercado. Não vás a lado nenhum. O vírus anda nas pessoas e também nos edifícios e nas coisas das pessoas: nas malas, nos casacos, nos chapéus. Nas mesas, nas cadeiras, nas maçanetas. Basta uma gotícula, meu amor. Sim, uma gotícula microscópica, uma pessoa nem a vê. É como um segredo, como um sentimento: está dentro das pessoas e ninguém sabe. Por isso, lava as mãos, meu amor. Lava as mãos antes de comeres e depois de espirrares. Lava as mãos se te der para a tristeza ou para a saudade. Lava as mãos sempre que tiveres uma ideia ou um raciocínio. Tão bonitas as tuas mãos, tão brancas e lavadas. Fica em casa, meu amor. Aproveita o silêncio. Lê um livro. Há um certo alívio na clausura, vais ver. E não serve nada andar na rua, meu amor. Fecharam os museus. Fecharam os teatros. Fecharam as bibliotecas. Parece que agora a cultura anda à pinha, vê lá tu. Antes eram as praias e os centros comerciais, mas agora não. Já ninguém quer saber do mar e do consumo. Mas já não se pode estar nas bibliotecas. Há lá mais gente do que livros, as pessoas todas muito alinhadas nas salas de leitura, até faz impressão, parecem os livros nas estantes, umas a seguir às outras, as bibliotecas não foram feitas para tanta gente. Fica antes em casa, meu amor. Tens tantos livros para ler aqui. E havia também as cortinas do quarto. Há quantos meses querias tratar daquela bainha? Não te distraias, meu amor. E por favor não toques na boca. Não toques no nariz. Não toques nos olhos. Se sentires uma dor, telefona ao centro de saúde. Uma dorzinha que seja. Um ardor no peito, um sufoco na garganta. Uma náusea. Um sobressalto, um suspiro, uma angústia. 
Mas atenção. Não confundas a doença com infeção. Não confundas o vírus com a gripe. Não confundas o ardor com desejo. Não confundas esse mal-estar com um sentimento.



domingo, 8 de março de 2020

Sangue, odor e desconforto

Ah, que engraçado. O período chegou agora mesmo, no dia da mulher. Penso nesta coincidência: a condição feminina por dentro e por fora. 
Ontem comprei chocolate e também pensos e tampões. 
Há quem use só tampões. Há quem use só pensos. Eu uso os dois. 
Desculpa, planeta. 
Penso nas mulheres que não têm acesso a pensos higiénicos nem a tampões. É que não são poucas. São muitas. 800 milhões de raparigas e mulheres, parece. No Uganda, na Etiópia, no Quénia, no Nepal, mas também nos Estados Unidos, na Austrália, no Reino Unido. 
A Escócia quer tornar gratuito o acesso a pensos e tampões.
É que não é nada barato ser mulher.
Também não é nada ecológico. As pilas são mais amigas do ambiente.
A menstruação não é verde. É vermelha.
Penso nisto todos os meses e nunca faço nada para tornar o meu útero mais sustentável.
Ainda não consegui adotar o copinho de borracha, perdoem-me. Encomendei-o há anos, mas nunca o usei. 
Era preciso esvaziar o copo e lavá-lo de X em X horas. Não percebo como poderia isso funcionar na casa de banho do trabalho ou numa casa de banho pública. Mesmo em casa, com bebés a entrar pela casa de banho a toda a hora. 

Foto da Me Luna


Compro fruta da época, legumes biológicos, reciclo, reutilizo, uso sacos de pano, mas compro pensos higiénicos e tampões todos os meses.
Tentei as cuecas Thinx e não gostei. Sangue, odor e desconforto.
Desculpa, planeta. Lido mal com o meu próprio corpo. (Cá está uma frase feminina até ao útero.)
Aposto que a Greta usa um copo. Ou então pensos de pano.
Um copo resolve sempre muita coisa. Neste caso, talvez seja a solução para tornar o período mais ecológico e também mais acessível. Não sei.
Bom dia da mulher, gajas! E bom período.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Macau, no verão de 1999

Excerto do texto que escrevi para o Colóquio "Até às raízes da Lusofonia" que se realiza hoje na Universidade de Gent.

Ainda sobre Macau, no verão de 1999:

Vi, naquela ponta do continente asiático, ruas e praças onde o chão se vestia de calçada portuguesa. As placas das ruas estavam escritas em português. Lembro-me de o guia apontar para essas placas e dizer que elas iriam desaparecer em breve, que a língua portuguesa ia sair daquelas ruas.

Eu tinha 16 anos, quase 17.

Nesse verão de 1999 vi, no meio de um enorme largo, as ruínas de São Paulo. Foram as ruínas mais belas e trágicas que alguma vez vi. Uma fachada em granito e uma escadaria. Nada mais do que isto. Tudo o que restava daquela igreja era uma imponente fachada em granito e uma escadaria. 


Foto que roubei à Wikipédia

Lembro-me de termos tirado uma fotografia de grupo nesse local. Lembro-me de pensar nesse momento que tudo aquilo era história: aquela fotografia, aquele grupo, aquele chão. Lembro-me de ganhar consciência de que tudo acaba um dia: os impérios, os edifícios, as nações, as pessoas, os povos e até as línguas. Naquele verão de 1999 eu percebi que tudo o que existia era demasiado frágil. De que um incêndio pode engolir uma igreja. De que uma língua pode desaparecer das ruas. 

Foi também em Macau que percebi que estamos todos dentro das nossas gaiolas, dentro da nossa época, dentro das nossas crenças, dentro da nossa língua, mas que é possível abrir a porta e chegar a quem é diferente de nós. Que uma pessoa pode fazer a diferença. Que tudo isto dura muito pouco.

Talvez por isso tenha escrito tanto nessa época. Para fixar a existência, para existir um pouco mais. Talvez por isso ainda hoje escreva tanto sobre a adolescência, essa época em que precisamos tanto de viver, em que somos capazes de infringir todas as regras para nos salvarmos.

Foi nessa viagem a Macau que me apercebi de quão diferentes somos e ao mesmo tempo de quão parecidos conseguimos ser. Para mim a lusofonia também é isto: festejarmos o que temos em comum, mas sobretudo o que não temos em comum.

Eu chego ao final deste texto e compreendo finalmente que, ao contrário do que pensava, tenho vivido até às raízes da lusofonia (para aproveitar o título deste colóquio), que é um enorme privilégio ser portuguesa, lusófona e europeia, e que possivelmente a lusofonia fez de mim linguista e escritora.