sábado, 31 de dezembro de 2022

2022

Cartoon do Hugo van der Ding


Não tirei tantas fotografias aos meus filhos. Não li muito. 

Os mais novos largaram as fraldas. Fizeram 3 anos. Começaram a ir à escola.

Voltei a cozinhar. Voltei a ir ao ginásio.

Compramos uma figueira e uma laranjeira. Morreram as duas.

Fui às urgências com dificuldades respiratórias. Não era covid. Era uma pneumonia. 

Li Ana Margarida de Carvalho, Manuel Vilas, Jane Lazarre, Adília Lopes.

Fiz 40 anos. O Gilberto Gil fez 80. A Gertrude Stein morreu há mais de 70. Este verso dela: “Sugar is not a vegetable”. Adoro a Gertrude Stein e adoro açúcar e adoro alguns vegetais, sobretudo os subterrâneos e obscuros. Batata, alho, cebola, rabanete.

O autoclismo deu o berro.

Perdi os meus óculos escuros, que eram redondos e graduados. Perdi o cartão do cidadão. Comecei a usar batom. 

Tirei uma selfie com a Capicua. Descobri o trabalho do Hugo van der Ding.

Tive uma quebra de tensão num dia de calor. Deitei-me na calçada. Várias pessoas ofereceram ajuda.

Regressei às urgências com dificuldades respiratórias. Já não era pneumonia. Era covid.

Compramos um beliche para o quarto dos rapazes. 

Um dos meus filhos partiu o candeeiro da sala. Arranjamos outro. Partiu esse também. Não arranjamos outro.

Tomei nota de algumas frases dos meus filhos:

A boca tem um buraco. O fogo é dos bombeiros. Eu gosto de ti todos os dias. Isto é um planeta e nós estamos no espaço.

Li um conto do Sandro William Junqueira, em que um homem pesaroso parece andar sempre com uma jiboia aos ombros. Esta imagem tem-me acompanhado estes tempos. Andamos todos com uma jiboia aos ombros. 

Em 2023 só espero que ela não se enrole à volta do nosso pescoço. 

Mais amor, menos guerra. Mais poesia, menos futebol. Aquelas coisas.

Bom ano, amigos! A esperança é sempre a última.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Are you crazy

 Como é que diz o provérbio? Que errar é humano? Que os erros se pagam caros? Mas como evitar o erro? Como determinar quem errou? como corrigir o incorrigível?

Ontem, ao final do dia, optei por não ir buscar os meus filhos de bicicleta. Chovia, estava escuro e eu sentia-me cansada pra chuchu. Além disso, tinha tempo. Fui então buscar os meus três filhos de autocarro. Talvez fosse mais prudente.


Cheguei à escola pouco depois das 16h. Os miúdos estavam bem. Não tinha havido acidentes com chichi, todos tinham comido ao almoço. Um deles trazia um enorme saco com um presépio de plasticina lá dentro.


Enquanto seguíamos pela rua, fui explicando - com os poucos conhecimentos que tenho sobre o assunto - que hoje (ontem) era o dia mais curto do ano, que a partir daqui os dias seriam cada vez mais longos, cada vez mais luminosos, cada vez mais quentes. O mais velho ficou feliz com essa perspetiva. Os mais novos não reagiram. Para eles, talvez os dias fossem sempre longos e luminosos, não sei.


Atravessamos a primeira passadeira em rebanho. Não havia carros nem bicicletas, éramos só nós. Na segunda passadeira, parei-os na berma da estrada. Continuava a chover e já era noite total, era preciso cautela. Além disso, estávamos numa rua movimentada e meia inclinada, o que também afeta o campo de visão.


Um carro que vinha a descer a rua parou na passadeira. Começamos então a atravessar, eu ligeiramente à frente, a dar indicações aos três meninos que vinham imediatamente atrás. 


Na direção oposta, o carro que subia a rua parecia vir demasiado depressa. Apercebi-me a tempo e parei a nossa turminha no meio da passadeira, eu à frente das crianças, ao estilo polícia sinaleiro, mas sempre na expectativa razoável de que o condutor veloz nos visse e parasse. Ia dizendo aquelas coisas: cuidado com o carro, venham sempre com a mamã, vamos esperar. De súbito, o mais velho, distraído do mundo nas suas fantasias de carros de corrida, atravessou-se à minha frente e já não o consegui agarrar. Só então percebi a tragédia que se avizinhava: o carro que subia depressa não só não abrandava, como não fazia mesmo tenções de parar. O mais provável é que não nos estivesse a ver.


Felizmente o outro condutor, parado na passadeira, buzinou com afinco e o carro largado estacou bruscamente, a tempo de se evitar a maior tragédia da minha vida. Estávamos todos em choque: eu, os meus três filhos, o condutor estacado mesmo à nossa frente, o condutor parado na passadeira e algumas pessoas que observavam a cena nos passeios.


Mas eis que o condutor desatento que circulava em excesso de velocidade e que estava prestes a atropelar uma criança numa passadeira em frente a uma escola, sai do carro, aponta o dedo indicador ao meu rosto e grita-me em inglês: “Are you crazy? What are you doing?” 


Está de noite, está a chover, uma mãe atravessa a rua na passadeira com os seus três filhos pequenos. Respondi-lhe incrédula: “You’re driving in front of a school. Isto é uma passadeira.” Respondeu-me irritado: “Não há semáforos aqui!” E depois voltou a entrar no seu carro, bateu com a porta e zarpou. Eu e os meus três filhos, utilizadores vulneráveis da rodovia, atravessamos a passadeira muito devagar, ainda em choque. 


Entretanto a fila de carros atrás do automóvel parado na passadeira já se alongava, era necessário avançar. Antes de seguir viagem, o condutor-herói baixou o vidro e disse-me em francês: “Tem de ter atenção. Eles andam muito rápido e não conseguem ver.”


Mais atrás, um jovem condutor perguntou-me se eu estava bem. Foi o único. Dos meus filhos ninguém quis saber.


As pessoas na paragem do autocarro olhavam-me desconfiados. Eu aflita e desfeita em lágrimas, rodeada de três crianças confusas. Nenhuma palavra de consolo ou preocupação. 


Apesar de a lei dizer repetidamente o contrário, no nosso sistema de crenças, a culpa pelos acidentes será sempre do peão indefeso, sobretudo das mães incapazes de controlarem os filhos. 


Ontem, nenhuma das testemunhas daquele incidente parece ter considerado a possibilidade de o peão - no caso a mãe, acompanhada pelos seus três filhos - ser a vítima e não a pessoa culpada. A mãe, prestes a perder um filho na passadeira, além de culpada, é louca. Não merece qualquer compaixão.


A nenhuma destas pessoas lhe ocorreu pôr em causa o condutor, que circulava em excesso de velocidade à noite e à chuva, distraído das passadeiras numa zona residencial onde abundam escolas. O peão, que corre evidentes riscos, é que deve velar sozinho pela sua segurança.


Assim vai o mundo, sozinho, avançando sobre rodas em piloto-automático e em evidente excesso de velocidade. Mães esgotadas, condutores enfurecidos, crianças indefesas, todos nós pressionados, atrasados, magoados, culpados, carentes, doentes, exaustos, esmagados, mas cada vez mais eficientes, cada vez mais rápidos, cada vez mais ágeis, versáteis, qualificados, conectados, sozinhos, deprimidos e nunca errados, sempre prontos a apontar o dedo, a acusar o próximo de todos os males, de todos os erros. “Are you crazy?”


O planeta aos gritos, sobrelotado, sem recursos, também ele carente, doente e exausto, mas ainda são poucas as pessoas que se questionam verdadeiramente sobre os malefícios de tudo isto: o nosso domínio sobre a natureza, sobre a tecnologia, sobre o tempo e o espaço, a começar pela omnipresença do automóvel no meio urbano, que veio criar esta constante sensação de urgência e de perigo, dominar o espaço público, mudar o comportamento das pessoas e alterar drasticamente a paisagem com rodovias muito feias de asfalto, já para não falar da inadmissível poluição sonora e atmosférica provocada por estas banheiras de metal e vidro. Para todos podermos chegar mais rápido e no maior dos confortos, para cumprirmos todos os marcos, todas as metas, todos os prazos que, passo a expressão natalícia, não interessam ao menino Jesus.


Não sei como vou lidar com este trauma, com esta fratura, com este erro, mas espero não cair de vez neste negrume, nesta loucura. Em 2023 espero continuar ligada às estações, a pensar nos dias que aí vêm, que hão de ser cada vez mais longos, cada vez mais luminosos, cada vez mais quentes. 


Por outras palavras, espero continuar a viver, a ler, a escrever, a amar, a brincar com os meus filhos e a agradecer todos os dias ser mãe deles, mesmo sabendo que nem sempre estarei à altura e que poderei não conseguir salvá-los.

domingo, 27 de novembro de 2022

E já está!


Passo-lhe uma fatia de pão com manteiga. Ele vai arrancando a côdea com as mãos. Pergunto-lhe pelos amigos da escola. Quem estava, quem não estava, se apanharam chuva no recreio. Diz-me: “Mamã, eu não quero falar” e durante uns minutos não fala. Os irmãos correm atrás um do outro pela casa e ele beberica o seu leite, come a fatia de pão. Agora olha em frente, contempla o quadro do avô na sala. Ri-se. Diz: “O avô estava sempre a desenhar.” E eu rio-me também. Vou comendo a côdea do pão. Digo-lhe: “Tu também gostas muito de desenhar”. Sim, diz ele. “Gosto de desenhar e gosto muito de carros de corrida azuis”. Depois lá conta uma história qualquer da escola. Que alguém caiu no recreio e fez um grande dói-dói. Termina as histórias quase sempre assim: “E foi assim. Acabou. E já está.” Digo-lhe: “No domingo vais fazer cinco anos.” Ele pergunta: “Porquê?” Eu digo: “Porque nasceste no dia 27 e no domingo é dia 27.” 

Daí a nada estamos a falar desse dia 27, há quase cinco anos. Desta vez conto-lhe mais pormenores. Que estava muito frio, que eu e o pai chamamos um táxi pouco antes da meia-noite, que o táxi nunca mais chegava. Que dormimos num quarto do hospital, a mamã deitada aqui e o papá ali. “E eu? Também estava deitado?”, pergunta ele. Sim, sim, digo-lhe eu. Estavas deitado na barriga da mamã e depois amanheceu e toda a gente passava pelo quarto para saber se o bebé queria nascer, mas o bebé ainda não queria nascer. A mamã à espera, o papá à espera e as enfermeiras e as parteiras e os médicos. Todos à espera e o bebé nada. Ele ri-se. 

Digo-lhe que a certa altura uma parteira anunciou: “Atenção! Vai nascer o bebé!” e que então o bebé lá saiu da barriga da mamã. Estava todo nu e a chorar porque estava cheio de frio. “Era eu”, diz ele. “Pois eras”, respondo eu. Conto-lhe que uma enfermeira lhe pôs um gorro branco na cabeça e que depois o bebé veio para o colo da mamã e ficou muito quentinho e parou de chorar. Que o papá estava muito feliz e tirou uma fotografia ao bebé, que o bebé era muito lindo. Que a mamã também estava muito feliz com o seu bebé que tinha acabado de nascer e tinha um gorro branco na cabeça. Ele insiste: “Era eu”. Eu digo: “Pois eras”. Ele ri-se e aponta para mim. Diz: “E tu eras uma nova mamã”. “Pois era”, respondo. “Eu era uma nova mamã”.

Foi há cinco anos. 

Que dia mais cruel e mais lindo.

Nascia o bebé. Nascia a mamã. Nascia o papá. 

E foi assim. Começou. E já está.


terça-feira, 15 de novembro de 2022

FLIC!

Na quinta-feira, 17 de novembro, rumo novamente a Barcelona, desta vez para participar numa das conferências do FLIC, o Festival de literatura e arte infantil e juvenil. Estarei com a autora galega Ledicia Costas numa conversa moderada pelo escritor e jornalista Esteve Plantada. 

E agora espantem-se lá com este multilinguismo ibérico: o português e o galego serão interpretados em simultâneo para o catalão; e, por sua vez, o catalão será interpretado em simultâneo para o castelhano. ¡Genial!


É às 18h45, no Museu del Disseny (Pl. de les Glòries Catalanes, 37, Barcelona).


Bilhetes aqui: https://live.eventtia.com/es/e08e/pro_cat

Programa da Flic aqui: http://flicfestival.com/barcelona/

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Annie Ernaux


Senti uma vertigem quando soube. Como se a Annie Ernaux fizesse parte do meu corpo. Como se a Annie Ernaux circulasse no meu sistema nervoso.

Acabei há poucos dias de ler “L’écriture comme un couteau”. Foi um amigo que me ofereceu o livro há coisa de um mês, pelos meus 40 anos. Sublinhei-o todo, dobrei cantos, reli certas frases, certos parágrafos. 

A propósito do seu processo criativo, diz Annie Ernaux que não gosta da chamada “escrita feminina”. Que ela não é uma mulher que escreve para mulheres. Que ela trouxe para a literatura a sua vivência como mulher, mas que a sua vida não era bem singular, que ela não se considerava um ser único. Que a escrita era a transformação das suas experiências pessoais numa entidade exterior a ela. Que escrever era o seu dom, o seu ato político. Que a sua forma de escrever era dura e violenta, que as frases estavam impregnadas de realidade, que o seu objetivo na literatura era que as palavras deixassem de ser palavras, que passassem a ser sensações e imagens. 

Que escrever era difícil. Que durante muito tempo - anos, décadas - não podia viver nesse outro universo que era a escrita. Que trabalhava como professora, tratava dos filhos, ia ao supermercado e cozinhava. Que essa vida lhe trazia sofrimento. Que lhe faltava sempre o tempo ou a força para escrever. Que nessa fase pensava em desistir de escrever. Que sentia estar a estragar a vida do marido e dos filhos. Que nunca se perguntava o contrário: se seriam eles que estragavam a vida dela.

Que viveu sempre em dois universos ao mesmo tempo: no universo da vida e no universo da escrita. Que o seu objetivo na escrita ou na literatura era sentir e pensar nos outros como outros tinham sentido e pensado nela.

O amigo que me ofereceu o livro escreveu-me a dizer: “Por uma vez, um nobel para alguém que amo”.

É mesmo isso!

Ganhamos todos hoje. Os que escrevem. Os que sofrem por não conseguirem escrever. Os que, mesmo assim, escrevem aos bochechos. Os que não dormem para escrever. Os que querem sentir, existir, pensar, sonhar nos outros como outros têm sentido, existido, pensado e sonhado neles.

Como não sentir uma vertigem?

Eu sou a Annie e a Annie sou eu.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Em Vila do Conde!


Entre hoje e domingo está a decorrer a aMOSTR de Edições Independentes em Vila do Conde. O programa inclui feira do livro e do disco, lançamentos de livros, cinema, et cetera e tal.

Amanhã, 30, faço-me ao caminho para participar num debate sobre literatura infantil às 14:30 na Biblioteca Municipal de Vila do Conde, ao lado dos ilustres Isabel Minhós Martins, João Pedro Mésseder e Marta Madureira.

E no sábado, a partir das 21:30, o Teatro de Vila do Conde será palco para uma leitura integral do meu Fósforo pela amazing Capicua, ao som da bateria de Susie Filipe. Oh my! Não vou perder isto nem por nada deste mundo!

Ainda há bilhetes:

https://teatroviladoconde.bol.pt/Comprar/Bilhetes/112854-leituras_amostr-teatro_m_vila_do_conde/?fbclid=IwAR3dbOhly3OwGcOWPNHFtTrWsyrJ_N2TujQ4En-l5QB1piPlaS1ALRfIna0


domingo, 18 de setembro de 2022

Fui e vim

Fui e vim.

Entre uma coisa e outra, estive com amigos, estive com a famelga, sublinhei uns parágrafos da Annie Ernaux, vi um arco-íris, assisti a um congresso na Universidade de Aveiro, fui a Ovar, falei sobre escrita com um grupo muito fixe de professores, fui à festa da Isabéu, pintei os lábios, sambei, abracei os meus pais, joguei às cartas com os meus sobrinhos, jantei em casa do meu irmão, comi um bolo de arroz, comi uma francesinha, comi polvo à lagareiro, dormi noites inteiras, reencontrei a Maria João Lopes, conheci a Sofia Madalena G. Escourido, discuti novos projetos com a Isabel e, last but not the least, tirei esta selfie com o Afonso Cruz. 


Onde me levam os livros: a lugares, a pessoas, a conversas, a hotéis, a outros livros, à existência. Vou de avião, de comboio, de autocarro, de metro, de táxi, de pés, de mãos, de coração.

Escrever não é bem isto. Escrever não é nada disto. Mas às vezes também tem disto. Não é, mas tem. E é tão bom quando tem. 

Esta frase aqui da Annie Ernaux: “Au fond, le but final de l’écriture, l’idéal auquel j’aspire, c’est de penser et de sentir dans les autres, comme les autres (…) ont pensé et senti en moi.” Tau!

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Romance multimodal em Aveiro


Estou que não posso de nervoseira e entusiasmo.👀

Na próxima 5a (faltam 3 dias!!!) eu e o Afonso Cruz (yikes!) vamos conversar sobre isto de escrevermos livros que não são feitos só de palavras. São feitos de quê, então? De conceitos, talvez, de soluções gráficas, de diálogo visual. 

Por exemplo: O texto será diferente se for escrito à mão? O texto será diferente se incluir um desenho? E se ele próprio for um desenho? E se o texto existir, não para ser impresso, mas precisamente para ser desenhado? 

Disto e doutras coisas falaremos eu, o Afonso e também a Sofia Madalena G. Escourido, que estará a moderar a conversa.

Querem vir?

É já na 5a, às 16h30, no auditório Aldónio Gomes (sala 2.1.10) da Universidade de Aveiro. Não haverá streaming nem youtube. É mesmo preciso aparecerem e sentarem-se numa cadeira. Como se fazia antigamente.

A conversa integra o congresso internacional “Fabulae Mutantur: o romance multimodal na literatura portuguesa contemporânea”. 

A culpa de tudo isto é da imparável e multimodal professora Ana Margarida Ramos, que nunca se cansa de investigar, desafiar, convidar e organizar.

Programa completo aqui: https://fabulaemutantur.webnode.co.uk

Andem daí!

domingo, 28 de agosto de 2022

Era uma vez e outra vez


 onde está um está o outro


pirulito e perdigoto

gatafunho e gafanhoto


quando um tosse o outro espirra

quando um berra o outro grita


um diz sim o outro não

dia a dia grão a grão

 

quando um chama o outro vai

se um tropeça o outro cai


boca a boca passo a passo

lado a lado lés a lés


era uma vez e outra vez

e logo hoje fazem três


segunda-feira, 8 de agosto de 2022

40

Nunca pareci mais nova. Pelo contrário. 


Durante a infância e a adolescência, quando revelava a minha idade, as pessoas - geralmente adultas - reagiam com surpresa ou até indignação e acrescentavam sempre: “Pareces mais velha”. 


Quando tinha 10 anos, achavam que tinha 15. Quando tinha 15, achavam que tinha 20. E por aí fora até aos 30 e picos. Com o tempo, o choque foi dando lugar à aceitação, que deu lugar à absoluta indiferença.


Cheguei finalmente à minha idade: sou e pareço uma mulher com 40 anos.



No outro dia tirei esta selfie. Adoro o meu cabelo indomável. Adoro selfies ao vento.


Estou cada vez mais parecida com a minha mãe. Digo frases que ela dizia. Por exemplo: “Os meus filhos são tão lindos” e também “Vocês cansam-me”.


Começo a dar valor aos acessórios: anéis, bandoletes, écharpes. Tenho uma mochila de pele. Tenho brincos de esmalte. Tenho um marido. Temos três filhos.


Já fui mais nova. Já fui mais bonita. Já fui mais magra. Ocupo cada vez mais espaço. Acordo a meio da noite. Já não tenho medo do escuro. Já não ando sempre descalça.


Por vezes agarro num dos meus filhos e encho-o de beijos. Eles refilam, soltam-se como podem. Também ralho muito com eles. Beijar e ralhar: duas faces do mesmo amor.


Escrevo sempre que posso. Se tiver cinco minutos, escrevo cinco minutos. Se tiver quarenta, escrevo quarenta minutos. Não vou ao ginásio, não corro no parque, quase não vejo Netflix. 


Leio. Beijo. Ralho. Escrevo.


Em certos domínios não deixei de ser criança. Choro por tudo e por nada. Ainda me apetece fazer o pino. Preciso de muito colo. Não sei fazer uma lista de compras. Não tenho jeito para arrumar coisas. Não sei dobrar uma manta sequer.


Custa-me cada vez mais o inverno. Custa-me viver longe dos meus pais. Preocupa-me o futuro. Mesmo assim, acho que ainda não me bateu a crise de meia idade. Pelo menos não tenho planos para mudar de vida. 


Sou feliz quando bebo o café da manhã. Sou feliz quando as magnólias da rua florescem. Sou feliz quando faz sol, quando os meus filhos jantam bem e pedem mais, quando o homem da minha vida chega a casa, quando aterro em Portugal e o meu pai me tira uma foto à chegada, quando a minha mãe penteia o meu cabelo, quando me sento com uma amiga num café.


Gosto muito das minhas pessoas. Algumas dessas pessoas já morreram mas eu continuo a gostar muito delas. 


No fundo, aos 40 anos, tal como aos 10 e aos 80, só isto importa: a certeza de que amamos alguém e de que somos amados.

sábado, 2 de julho de 2022

Prémio Llibreter 2022

Uau! O meu ego estava a precisar deste afago! 

Larguei a minha fastidiosa vidinha de matrona teletrabalhadora e fui numa missão secreta a Barcelona receber o Premio Llibreter 2022 na categoria de literatura infantojuvenil estrangeira. 

À saída de Bruxelas, com a pressa e a emoção, esqueci-me dos óculos e da escova de cabelo, mas lá fui muito feliz, míope e descabelada para a capital da Catalunha.

Durante as 32 horas em que lá estive, dei três entrevistas, visitei quatro livrarias, recebi um óscar (ver foto), fiz um discurso para uma plateia de 300 pessoas, bebi cava, comi tapas, posei horrivelmente para centenas de fotos, vislumbrei a Sagrada Família a partir da janela de um táxi, não visitei o parque Güell, não comi churros, nem sequer vi o mar, mas estive na conversa com uma grupeta de leitoras altamente, abracei muitos livreiros, autores, editores, professores, leitores e até jornalistas, comprei bastantes livros, encontrei a Mary John em todas as esquinas, assinei uns quantos exemplares e dormi uma noite inteira.




As pessoas perguntavam-me a toda a hora se estava cansada. Eu respondia que esta pausa era um descanso na minha existência doméstica e despertava em mim a pessoa que ainda sou. 

De volta a Bruxelas, e depois de adormecer dois dos três meninos carentes, envio um abraço a todos os nomeados de todas as categorias e também a todas as vencedoras (sim, sim, todas mulheres!), com especial destaque para as compatriotas Rita Sineiro e Inês Castel-Branco (AKIARA books), premiadas na categoria de álbum ilustrado estrangeiro.

E antes que este dia acabe e se transforme num sonho, lanço um enorme obrigada ao Grémio de Livreiros, aos super-livreiros da Catalunha, à tradutora Mercè Ubach (que não tive o prazer de conhecer) e à incansável equipa de L'Altra Tribu: à sempre disponível, afetuosa e guapíssima Marina Llompart, que me acompanhou todo o tempo cheia de cuidados e profissionalismo, à mui embarazada, vistosa e veloz Vanessa Moreno, que não vive bem sem vinho e me ensinou um truque importante para ficar menos mal nas fotos, e à la mega sexy boss Eugènia Broggi (ver foto), com quem troquei ideias sobre literatura e maternidade. 

Fui tratada como uma autêntica abelha rainha, digo-vos. A minha alma parece um pote de mel. 

Partilho este prémio evidentemente com o selvático Bernardo P. Carvalho, que fez da Mary John um livro que é um estrondo, e com a editora Planeta Tangerina, em especial com a maga Isabel Minhós Martins, que me fez repensar e rescrever este livro e me empurrou há muitos anos para este salto que me tem levado a tantas aventuras.

Escrever é um trabalho muito solitário, é verdade, mas quando corre bem, traz consigo uma caravana de gente mui chula. Fogo!

Obrigada, vidinha!

quinta-feira, 30 de junho de 2022

A boca que não fala

Um dos minorcas abriu a porta da casa de banho no momento em que eu saía do meu merecido duche. Apontou para o meu corpo nu. Disse “maminhas”. Disse “umbigo”. Disse “pilinha”. 

Perguntei-lhe se tinha certeza em relação à pilinha. Ele olhou melhor e respondeu em tom de pergunta: “Boca?!”

Chocou-me que não conhecesse o termo correto, mas subscrevi rapidamente a sua interpretação e acrescentei que sim, era uma boca, mas não falava. Depois tirei nota desta minha descrição, que me pareceu adequada para os tempos que correm. 

Eis uma boa frase para escrever numa parede ou para bordar num lenço dos namorados: “A vagina é uma boca, mas não fala.”

A propósito de vaginas: um dos meus livros acaba de ser traduzido para inglês. A editora pediu-me com esmero e preocupação para retirar um curtíssimo diálogo em que se fala sobre o período, sobre tampões a incharem dentro da vagina, sobre pensos higiénicos com e sem alas, sobre dedos cheios de sangue, sobre o nojo dos rapazes perante a ideia de uma vagina a sangrar e sobre a vontade incontrolável que sentem, ainda assim, de enfiarem os dedos pela vagina dentro. 

Fiz uma contraproposta, em que mantinha os tampões, os pensos higiénicos, os dedos cheios de sangue, o nojo dos rapazes, mas suprimia o desejo. A editora aceitou e a minha vagina conformou-se em silêncio.

No outro dia comi um hamburguer num restaurante americano. Enquanto mastigava a minha sandes, beberiquei uma coca-cola e ruminei a canção do Sinatra que pairava no ar. Às tantas topei um cartaz atrás da minha mesa e engasguei-me. O cartaz dizia assim: “There is a new yorker in every city”. 



Praguejei em português e não em inglês ou francês, o que diz muito mais sobre mim do que o Sinatra ou a coca-cola que estava a beber.

Fomos a Nova Iorque há uns anos. Como todo o dedicado turista, tiramos fotos à estátua da liberdade, passeamos no Central Park, subimos ao Empire State Building. Vimos muita arte, muito arranha-céu, muito teatro. Tive um ataque de riso num stand up como nunca jamais na minha vida, chorei baba e ranho num musical da Broadway. Mas vimos acima de tudo muita pobreza e miséria, muita gente suja, perdida, louca. Pessoas deitadas no chão, a falarem sozinhas, um homem a defecar no meio do asfalto. Vi dois tipos aos gritos num parque infantil. “You shut the fuck up”, gritava um deles. 

Não conheço mais nada nos Estados Unidos, mas sei muito mais sobre Los Angeles, Las Vegas, Texas e Alasca do que sei sobre as Astúrias, a Bretanha, a Toscânia, os países bálticos, os balcãs, os escandinavos, já para não falar da Ucrânia e da Rússia. 

Algo em mim se revolta com a enorme intromissão deste hamburguer americano na minha existência. Talvez o meu estômago. Talvez o meu coração. Talvez a minha vagina.

Estranho país os Estados Unidos. Todos podem e devem acumular propriedade, dinheiro, fundos, produtos em abundância: granadas, espingardas, cosméticos, drones, ativos, ações, calças de ganga, banha da cobra. Os mais oportunistas poderão crescer à custa dos outros, contratando-os, explorando-os, controlando-os. Os mercados são livres, assim como os preços e a concorrência. O Estado regulamenta o mínimo possível. A bem da economia, do crescimento e da escolha, claro.

Mas no que toca ao corpo de uma mulher já não é bem assim. No que toca ao corpo de uma mulher, já não é de todo assim. 

És dona da tua casa, do teu empreendimento, do teu capital, mas de súbito já não és dona do teu corpo. O corpo de uma mulher, no país das oportunidades, é agora altamente legislável, altamente controverso. O corpo de uma mulher é propriedade pública.

Nos Estados Unidos da América o que deveria ser público é privado. O que deveria ser privado é público. 

Eu não sou nova-iorquina. Vivo em Bruxelas há anos e não sou belga. Saí de Portugal demasiado nova e também já não sou bem portuguesa. Ainda assim, prefiro mil vezes um prego a um hamburguer.

Para que interessam as fronteiras, as bandeiras, as nações? Raios partam o imperialismo americano, o imperialismo russo e todos os demais imperialismos com os seus ideais muito retrógradas de expansão, domínio, conquista e progresso.

Sou europeia, sou carnívora, sou fadista até mais não. Sou mulher. Tenho uma boca calada e outra tagarela.


O que se passou nos Estados Unidos é uma afronta à democracia, à humanidade e à liberdade.

As vaginas não falam, mas sentem. Não há um nova-iorquino em todas as cidades, mas há uma mulher em todos nós.

A luta continua. Ainda temos muito para andar.

domingo, 12 de junho de 2022

Fósforo - 2a tiragem!

O meu Fósforo esteve à beira da extinção, mas a segunda tiragem voltou a atear a chama.

É o meu primeiro e, para já, único poema. Fala de fêmeas mamíferas e de bebés na barriga, fala de partos e de abortos e também dos nomes que damos aos filhos, dos filhos que damos ao mundo. Fala de passado presente futuro, reino animal, reino de Portugal. Fala da minha infância, do meu útero patego, do meu rosto raça raiz.

É um poema que me faz sentir nua largada estendida, mulher madame inflamável e, não sei porquê, quero muito que todos o leiam. 

O livro abre com esta dedicatória (em baixo), que estendo agora ao editor João Pedro Azul, à Flan de Tal e a todos os leitores que ajudaram a extinguir a primeira tiragem.

https://www.flanzine.com/product/fosforo-ana-pessoa/








sábado, 11 de junho de 2022

A Luz é Grande

Há uns tempos, numa certa tarde de inverno, o meu filho mais velho apontou para o candeeiro da sala, que estava aceso, e disse: “A luz é grande”.

Virei-me para ele mas nem o vi, encandeada que estava com a luz e também com aquelas palavras. 

O meu filho tinha dois anos e aquela era a sua primeira frase.

Comecei então a tomar nota dessas construções iniciais e diverti-me a compor um texto: O buraco é escuro. O chão está sujo. Não está ninguém. 

Algumas frases eram mais longas que outras. Algumas até rimavam: É uma flor amarela. É uma cancela. 

Passados vários invernos e vários verões, estas frases foram parar ao colo da Joana Estrela, que escolheu trabalhá-las em guache, essa tinta macia e espontânea que irrompe diretamente da infância.

O resultado é um álbum muito meloso e sincero, sem malícia nem artifícios, mas cheio de mundo e promessa. Tal como as primeiras frases.

https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/a-luz-e-grande










quarta-feira, 8 de junho de 2022

Mulher Cão


Não há muito tempo ouvi um podcast com a Paula Rego. Era uma conversa já antiga, conduzida pela Inês Meneses para o Fala com Ela, em setembro de 2010. 

Depois de falar do medo, da infância, da morte, dos contos populares portugueses, dos seus professores e da sua ida para Londres, Paula Rego falava do marido, Victor Willing, que - vejo agora - falecera 22 anos antes, em 1988. Contava ela que os quadros de Willing, por terem tanta presença, a lembravam da sua vida com ele e que isso a emocionava, porque essa vida - “a nossa vida”, dizia ela - continuava viva nesses quadros. Acrescentava: “Viva, viva, viva, como uma lagosta”. E explicava de seguida a necessidade de atar as lagostas antes de as enfiar na panela, “senão elas saltam para fora”. Concluía: “Assim são os quadros dele. Estão ali como se estivessem amarrados” e “por um triz” não pulam para fora. 


Ao longo deste ano, por várias razões que não interessam agora, tenho voltado a essa ideia do pulo iminente e desesperado, a essa possibilidade de a vida pular para fora da arte, de a arte pular para dentro do real, de o sonho pular para fora do espelho. A ideia bela e aterradora de tudo estar a um quase-nada de ser outra coisa.


Hei de voltar à sua Casa das Histórias, para ver outra vez esta Mulher Cão, na esperança de que ela ladre e continue louca, feroz, combativa. E viva, viva, viva, como uma lagosta.



quarta-feira, 18 de maio de 2022

O globo

O mais velho começou a fazer perguntas sobre os países e as cidades. Se estão longe ou perto, se são grandes, se podemos lá ir de comboio ou de avião, se as pessoas desse lugar falam português, francês ou inglês.

Vai daí, há umas semanas compramos um globo terrestre para os três rapazes. É um globo pequeno, não muito bonito, os países todos encavalitados por baixo de uns animais nada a ver. 

Os miúdos gostam do globo, não por causa dos continentes ou dos oceanos, mas porque ele roda muito rápido e durante bastante tempo. O mundo parece um pião, mas não é um pião. Um dos rapazes diz que é uma máquina, outro diz que é uma bola azul. Só o mais velho chama mundo ao mundo.

O pai não os deixa brincar com o globo. Por um lado, sinto pena deles, por outro, acho bem aprenderem quanto antes que este mundo não é para brincadeiras.



Mostro-lhes a Bélgica e Portugal, o Japão, o Brasil. Digo-lhes aquelas coisas parvas: que há cangurus na Austrália e pinguins no Pólo Sul. Eles fingem que se interessam. Pousam as mãos na bola azul. Sempre que podem, dão-lhe uma lambada e a bola gira. Riem-se à gargalhada, babam-se para cima do mundo.

Estão-se nas tintas para o mapa, claro. As crianças querem lá saber de geografia. Eu, para falar a verdade, também pouco apreço tenho pela disciplina. A expressão “crosta terrestre” sempre me deu vontade de rir e continuo sem saber para que lado é o Norte. 

No outro dia lá arranjaram maneira de atirar o mundo ao ar. Deram cabo dele, como é óbvio. O globo partiu-se ao meio, já não se aguenta nas canetas. Os três olharam para o mundo pesarosos e partiram para outra.

Penso em Deus, com a Terra nas mãos. Coloco então a hipótese de este Nosso Senhor ser afinal uma criança a brincar com uma bola azul, as unhas muito sujas, o nariz cheio de ranho. 

A ideia dá-me algum alento. Não serve certamente para explicar a condição estapafúrdia da nossa existência, mas por um momento ajuda-me a aceitar o absurdo estado do mundo. Talvez uma divindade pouco experiente nos tenha dado um pontapé. Só isso. Talvez nos caiba a nós perdoar o tal Salvador, e não o contrário.

Na minha infância também tive um globo terrestre, mas o meu era bem grande e dava luz. Era um globo a sério. Recebi-o quando tinha uns nove anos. A ver pela sucessão dos acontecimentos, há de ter sido em 1991, talvez no Natal. Mal o desembrulhei, o meu pai disse-me que o mundo entretanto tinha mudado. Que aquele país chamado URSS já não existia. 

Que estranho esse conceito de um país deixar de ser. Ainda hoje, quando penso na URSS, lembro-me dessa enorme mancha no meu globo terrestre, de súbito extinta, inexistente. Na minha cabeça sonhadora de menina, a URSS parecia ser um país imaginado, impossível, inacessível, ao estilo Terra do Nunca ou Terra de Oz, habitado quiçá por fadas, feiticeiros, elfos, bruxas, coelhos, monarcas, chapeleiros, crianças, piratas, gnomos.

Vejo o nosso globo terrestre atirado ao chão, partido, estragado, estilhaçado. Penso em Peter Pan e no Capitão Gancho, penso num Deus imaturo com a sua bola azul e de repente já não sei de que lado estou. Talvez este mundo de verdade seja afinal a Terra do Nunca e, nesse caso, todos nós sejamos os meninos perdidos sem salvação à vista.

Pelo sim, pelo não, apanhei os cacos do globo terrestre e guardei-os. Apesar da pandemia e da guerra, apesar da inflação e da crise económica, energética e humanitária que se agrava, devo confessar que me custa bastante pôr o mundo no lixo.

domingo, 15 de maio de 2022

Mary John finalista dos Premi Llibreter

A edição catalã da “Mary John” (tradução de Mercè Ubach; edição de L’Altra Tribu) é finalista do Premi Llibreter na categoria Literatura infantil e juvenil - outras literaturas.

Estou feliz, encantada, enternecida com esta nomeação porque esta seleção é feita pelos próprios livreiros!

Yuhuuu!


terça-feira, 26 de abril de 2022

"Está a chover!" nos Hipopótamos na Lua

Olha, olha. O Gnu e o Texugo encontraram uns Hipopótamos na Lua.

Belo texto de análise da blogger, livreira e dinamizadora Nazaré de Sousa no seu blogue "Hipopótamos na Lua":

https://hipopomatosnalua.blogspot.com/2022/04/o-gnu-e-o-texugo-esta-chover.html

Copio para aqui este excerto muito vrim, vram, vrum:

"Tal como no primeiro livro, a simplicidade e o humor do texto de Pessoa voltam a encantar-nos. A dose de ingenuidade e até o seu quê de nonsense  desconcertam o leitor várias vezes. Gostamos dos vrim, vram, vrum, dos snif, snaf, snuf... Gostamos e precisamos de histórias que nos fazem rir. Só porque sim. Na esteira das anteriores, as ilustrações de Matoso são um regalo para os olhos de miúdos e graúdos. Mesmo à chuva, este é um livro que continua a poder virar-se de cabeça para baixo, permitindo ler a história ao contrário. E que história! Sic, sac, suc."





segunda-feira, 25 de abril de 2022

Porventura acaso talvez - 25 de abril sempre!

 25 de abril sempre!


"porventura acaso talvez

uma hipótese entre outras hipóteses”



no meu “Fósforo”, Flan de Tal, 2021

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Karateca - 5a edição!

Yáááa! 5.a edição!

A karateca está de volta. O meu absolute best-seller.

Ali estou eu, rapariga karateca, e ali estão os meus cadernos, os meus sonhos, as minhas angústias e as minhas perguntas sobre o amor, o futuro e a verdade. Ali estão também os meus pais, os meus professores, o meu irmão, os amigos, os primos, os tios, os avós.

É o meu primeiro livro, o mais ingénuo, o mais Ana.

Quando acabei de o escrever, não percebi se tinha realmente acabado de o escrever. Não percebi se aquilo era um livro ou a continuação dos meus cadernos.

Com ele ganhei o Prémio Branquinho da Fonseca. Soube da notícia num dia de chuva, depois de uma consulta de ortopedia por causa de uma lesão antiga no joelho, decorrente do Karaté. Lembro-me de entrar no táxi com as minhas canadianas, de rogar pragas à chuva e ao meu joelho, de pensar “Por que raio fiz Karaté? Por que raio não fiz antes natação ou ioga?” Nem sequer era grande karateca, nunca quis participar em campeonatos, não gostava muito de me ver com o kimono de Karaté.

No dia do lançamento do livro, estava tão nervosa que não conseguia segurar no copo de água pousado à minha frente.

Uma vez perguntaram-me que livro eu escolheria salvar, se só pudesse salvar um dos meus livros. Respondi sem hesitar que salvaria a karateca. 

Foi ela que me levou ao Planeta Tangerina, onde tenho sido tão feliz na tagarelice, na labuta e na partilha com a Isabel Minhós Martins, o Bernardo P. Carvalho, a Madalena Matoso, a Yara Kono, o João Gomes de Abreu, a Joana Estrela, a Cristina Lopes, a Carolina Cordeiro, a Mariana Vale e todos os demais habitantes desse astro.

“Eu não sou menina. Nem romântica.”

É que não sou mesmo. 

Topa-se, né?

terça-feira, 5 de abril de 2022

Penico e Putin

No final de fevereiro, enquanto a Rússia invadia a Ucrânia, eu lia um livro de 300 páginas sobre desfralde. As almas menos sensíveis poderão acusar-me de ser uma mãe desfasada das tendências do mundo, mas qualquer observador mais atento perceberá certamente que, às portas da guerra, uma mãe deve preparar os filhos para o autocontrolo e a dignidade, começando desde logo pelo domínio das fezes.

Em tempos de guerra, será ainda mais urgente, mais económico, mais ecológico, mais seguro e mais saudável os mais pequenos aprenderem a evacuar adequadamente.

E portanto, é como vos digo: a Rússia invadiu a Ucrânia - tanques, aeronaves, mísseis, vítimas mortais, refugiados - e eu lancei os meus filhos para esse estranho encontro com o seu próprio corpo. Ali estão eles, expostos, desarmados, como vieram ao mundo. Observam-me confusos talvez, ainda mais sós, ainda mais gémeos, ainda mais nus e indefesos. 

É preciso olhar para a existência humana através dos seus olhos. Na perspetiva dos meus filhos, largar as fraldas é como ir para o Espaço, como ir para a guerra, tudo é novo e assustador a partir do momento em que andam nus pela casa, à mercê da sua vontade urinária e fecal.

No tal livro de 300 páginas sobre este assunto, a autora americana, perita em desfralde, lembra-me que esta aprendizagem só vai ser prioritária para os meus filhos se ela for prioritária para mim. Ao longo da próxima semana, diz-me ela, não pensarei em mais nada além deste confronto com o bacio. Aceito o desafio e vou para a guerra. 

Passam-se dois ou três dias em que as fezes raramente vão parar ao penico. Limpamos o chão demasiadas vezes. Muito chichi, muito cocó, muitos escombros, muita frustração para os pais, para a ama e para os dois pequenos soldados.

Recordo os ensinamentos da perita americana: importa não perder a paciência e não entrar em contendas de poder. Firmeza, mas não dureza. Esta é, afinal de contas, a primeira vez que uma criança aprende a dominar o corpo. Convém que a experiência, apesar de exigir concentração e esforço, dê um resultado positivo.

Aprendemos por repetição, por mimese, por insistência e persistência. Se tudo correr bem, daqui a poucos dias a criança vai conseguir interpretar os impulsos musculares da bexiga e dos intestinos, e tomar a iniciativa de se sentar no penico. Essa será a sua primeira experiência de sucesso. E muito em breve será precisamente a mestria do penico que estará na base da sua auto-estima na sua relação com o seu corpo.

Penso em Vladimir Putin. Pergunto-me se tudo poderá ter corrido mal desde esta travessia de autoconhecimento, se Putin terá largado as fraldas num ambiente de segurança, se terá sido amado, abusado ou humilhado durante esta aprendizagem. Se um opressor pode começar aqui mesmo, numa criança oprimida sentada num penico.

Penso em todos os soldados atirados para a guerra, os russos, os ucranianos e os demais que se lhes juntaram, todos eles filhos de mães que lhes ensinaram a utilizar o bacio, a bem da sua autonomia e do seu bem-estar. Aqui estamos todos, pais e filhos, opressores e oprimidos, e basta uma criança sentada num penico para percebermos que o nosso caminho poderia ter sido tão diferente, a mãe a bater palmas, emocionada com a conquista do filho.

Um dos meus rapazes chora porque fez chichi nas calças. Vacilo entre a frustração e o amor. Ralho e refilo, cansada e, ao mesmo tempo, receosa de que ele venha um dia a perder o ânimo por minha causa, de que venha a invadir um país.

Se eles falharem, a culpa será sempre minha, claro, que ralhei com eles no momento em que precisavam de um abraço. Penso em Vladimir Putin e imagino-o assim, aos dois anos e meio, vulnerável, as calças molhadas com a sua própria urina e não posso deixar de sentir o peso da minha responsabilidade. 

Já sei que a tendência agora é não pressionar, é nunca dar um feedback negativo, é não fazer desfralde sequer, é esperar que as crianças decidam sozinhas que querem aderir às normas sanitárias de evacuação. De facto nada é mais pessoal e visceral do que as nossas próprias tripas.

Por outro lado, nada é mais ideológico do que educar, ensinar, formar. Estado e indivíduo parecem estar incompatibilizados. No que toca aos mais pequenos, a escola espera que as crianças saibam evacuar aos 3 anos, que aprendam a ler aos 6, que aprendam inglês aos 10, que entrem na universidade aos 18. A vida não está fácil para os que querem esperar até estarem preparados. 

Parto, pois, do princípio de que nunca ninguém está preparado para nada e nunca ninguém ficará à espera de que estejamos finalmente à altura do que quer que seja. Tudo será sempre imprevisível e excessivo e vai exigir esforço, adaptação, diálogo e aprendizagem.

Isto aplica-se à maternidade, à escola, à geopolítica, às operações militares, à cerimónia dos Óscares e também à arte de urinar e defecar.

domingo, 20 de março de 2022

O gnu e o texugo - Está a chover!

Ao contrário da minha mãe e do meu avô Manuel, nunca fui grande jogadora de cartas. Mas sempre tive um fascínio por baralhos de cartas. 

Copas, espadas, ouros, paus.

Aquela coisa de as cartas nunca ficarem de cabeça para baixo: reis e damas com duas cabeças. O valor indiscutível do trunfo, que daria tanto jeito na vida. 

Esta frase extraordinária: “Toma e vai buscar.”

Passei muitas horas da vida a jogar Uno com os meus pais. Passei algum tempo da minha infância a fazer paciências. Nunca aprendi um único truque de cartas. Nunca aprendi a baralhar como deve ser. Nunca sei as regras do jogo.

Como jogar às cartas quando não se sabe jogar às cartas? Será que podemos jogar sem regras? Será que as podemos inventar?

Diverti-me à grande a escrever esta história do gnu e do texugo, que não percebem patavina de cartas, mas gostam de jogar na mesma. A Madalena Matoso, esse incrível ás de copas, fez do texto um livro muito fora do baralho, que me faz rir a cada página.

Espero que o encontrem por aí e que gostem dele.

Clip, clap, clup.

Tudo sobre ele: https://www.planetatangerina.com/pt-pt/loja/o-gnu-e-o-texugo-esta-a-chover/

terça-feira, 8 de março de 2022

Jeremias Bandarra


O meu sogro usava chapéu. Assobiava. Abraçava as árvores.

Nasceu em 1936. Morreu ontem.

Não fumava, não bebia café, raramente bebia álcool. O seu único vício era a pintura. 

Desenhar, pintar, sentir, voar.

Quantos pássaros terá desenhado? Centenas. Milhares.

Nos murais, nos vitrais, nos cadernos, nas telas. Incontáveis pássaros em pleno voo.

“A natureza cuida”, dizia ele, mas não estava a falar das plantas, nem sequer dos pássaros que nascem e voam, estava a falar da arte, de tudo o que fazemos com as mãos, com a alma, com os olhos.

Falava de arte como quem fala da vida, o mistério das coisas invisíveis que ganham raízes e brotam, crescem, dão frutos. 

Leu tudo o que escrevi. Lia, relia, comentava, empolgava-se. Queria saber se já estava a escrever alguma coisa nova. Sim, dizia-lhe eu, estava a escrever uma novela gráfica, um poema, um conto. Ele ria-se, cúmplice do meu vício.

Disse-me algumas vezes que eu era parecida com a sua mãe. Dizia-o sem hesitação, como se estivesse a dizer a verdade. Talvez por sermos mães de rapazes. Talvez por sermos mães de meninos Bandarra. 

Olho para os meus meninos Bandarra. O mais velho constrói uma pista de comboios, o mais pequeno toca piano, o do meio salta do sofá para o chão. Quantos pássaros não desenharam com o avô? Quantas conversas não tiveram?

Era muito chato ir com o meu sogro ao centro de Aveiro. Toda a gente o conhecia, toda a gente o acarinhava. Parávamos em todas as esquinas para cumprimentar alguém. Podia acontecer que não chegássemos ao nosso destino. Ficávamos a meio do caminho. Não era grave. Voltávamos para trás.

Entre ir e vir conversávamos. Falava-nos da sua infância nos anos 40. Os quatro Bandarras, sempre à solta, inventivos, aventureiros. Saíam porta fora, corriam, mergulhavam, jogavam com uma bola de trapos. Voltavam tarde, com fome. 

A mãe, sempre a mãe, que se preocupava com eles, que os alimentava, que recortava coelhinhos num pedaço de papel. Os chocolates que o pai lhes oferecia no dia de Natal. Um chocolate a cada um, enfiado numa meia, a felicidade pura. 

A sua juventude só e melancólica. Os três irmãos fora e ele ali, numa cidade parada. “Não havia nada disto. Era só campos”.

As leituras que lhe fizeram companhia. Os romances de Émile Zola. A religião, o misticismo. Os quadros do Picasso. Os versos que escrevia. O teatro aveirense. A Margarida “muito alegre, muito alegre, muito alegre”, dizia ele, luz da sua vida, com quem viria a casar. Os pais doentes, os filhos pequenos, o emprego estável na Portucel, a pintura, sempre a pintura, seu único e terrível vício, “uma doença”, dizia.

Viajámos juntos. Bruxelas, Paris, Londres, Lisboa, Gerês, Tavira. Vimos exposições. Quantas exposições? Chagall, Picasso, Matisse. Pompidou, Tate Modern, Bozar. Sabia tudo sobre os cubistas, os surrealistas. Parava em frente a uma tela, as mãos atrás das costas. Falava-nos da importância do branco num quadro, do foco de luz.

Saíamos para a rua em êxtase, cheios de arte e de vida. Comentávamos os quadros do Lucien Freud, fortes, reais, permanentes, como se estivessem vivos. 

E agora, onde vamos? Alguém perguntava. O Jeremias dizia: “Quero ver pessoas”, e lá íamos vê-las nas suas vidas, nos seus afazeres. Em Oxford Street, nos Campos Elísios, na Grand Place. 

Sentávamo-nos numa esplanada. Pedia uma cerveja sem álcool. E então aí, sentado num café em Antuérpia ou numa rocha no Gerês, a lanchar no Perroquet, a jantar na sua casa, dizia: “Isto já ninguém nos tira!” Isto: a esplanada, o pôr do sol, a família, a cerveja, a arte nova, os quadros do Picasso, as pessoas na rua, tudo o que vimos, pensámos e sentimos até então, o delírio da arte e da vida. Bebia um gole entusiasmado da sua cerveja sem álcool, os olhos aguados. Acrescentava: “Até aqui chegámos nós”. Assim era. 

Sempre a consciência da finitude. A ideia de que não estaremos aqui para sempre. De que qualquer coisa nos liga uns aos outros, de que há uma verdade acima de nós, acima de tudo, de que nada começa e acaba verdadeiramente, de que todos somos permanência, continuação, universo, natureza, vida, focos de luz. 

A beleza das horas que passam, das pessoas que passam, o presente que era futuro e se transforma em passado. Tudo o que vimos, pensámos, sentimos. Todos os rios, todas as serras. Todos os quadros.

Todos os voos de todos os pássaros.