quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Justiça

Sou da geração que cresceu a ver o MacGyver aos domingos à noite e a música do genérico sempre foi uma inspiração para mim. Também cresci a ver o Justiceiro, mas o David Hasselhoff, ainda que bem-intencionado, já era ridículo nos anos 80 e o Kitt era mais um papagaio do que outra coisa.
O MacGyver, sim, fazia Justiça. Era um agente secreto e não usava armas, utilizava antes a cabeça e uns pedaços de fita-cola e cordas e clips. Bom, também usava uns explosivos de vez em quando, vá. Do alto dos meus 10 anos, aprendi que nem sempre a Justiça é justa, que não há uma justiça absoluta. Mas, ainda assim, sempre acreditei no princípio da coisa, mesmo quando eu própria não cumpria as regras (e até gostava bastante de não cumprir as regras). Catch me if you can. Quando me apanhavam, cumpria a pena. A bem da Justiça.
É preciso acreditar na Justiça para acreditar na igualdade.
Não há democracia sem Justiça. Não há Estado sem Justiça. E, por isso, é injusto quando a Justiça tarda ou não funciona. Não dá para acreditar numa sociedade que não tenha um sistema judicial capaz.
Quando li a notícia da Grécia, senti-me inspirada. Há que punir os corruptos. Com rotativos na cabeça ou com clips e explosivos ou então com a prisão perpétua, que é uma forma de tratamento aparentemente mais justa.
É preciso acreditar na Justiça em tempos de crise. Tal como é preciso acreditar na paz em tempos de guerra (imagino eu).
Quando a Justiça funciona, sinto-me esperançada e começo logo a cantarolar o MacGyver.
É preciso rebentar com os injustos.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A felicidade é escrever um postal

A felicidade é escrever um postal.
Escrever um postal é dizer tudo dentro de um quadrado. 
É como fazer um puzzle, mas não tem nada a ver com um puzzle.
É como andar de mão dada a alguém, mas não é como andar de mão dada.
Gosto especialmente de lamber o selo.
Lamber o selo é felicidade.
Infelizmente, já não é preciso lamber o selo. 
Os selos agora são proativos. Já vêm pegajosos.
Mas antes, quando era preciso lamber, eu lambia e tinha bastante jeito, parece-me.
Se houvesse um concurso de lamber selos, eu chegaria, pelo menos, às semifinais.
Sou lambona.
Hoje estava à procura de uma coisa que não tinha nada a ver com isto e encontrei um postal gratuito da Coca-Cola. 
Tenho esta mania dos postais gratuitos. É piroso, eu sei.
O postal trazia o Pai Natal original e a frase Share happiness. 
O Natal é quando uma mulher quer, por isso decidi partilhar felicidade.
Enviar um postal a alguém é felicidade.
Receber um postal também é felicidade.
Escrever um postal é gostar de alguém dentro de um quadrado.
E eu gosto disso.
Sou quadradona.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Pessoa em frente a uma máquina

E se as cortinas da sala não estivessem fechadas, mas sim abertas?
E se afinal não estivesse uma noite fria lá fora, mas sim uma manhã de Primavera?
Seria uma bela surpresa.
Eis duas perguntas dentro da cabeça de uma pessoa que está em frente a uma máquina.
Outras perguntas:
E se no parapeito da janela não estivesse uma orquídea sem flores, mas sim uma gaiola com um periquito amarelo lá dentro?
E se eu abrisse a janela e depois a gaiola e depois os meus braços e eu fosse afinal o periquito amarelo e saísse a voar pela rua?
Seria ótimo, claro.
A pessoa em frente a uma máquina pensa sobre isto e é como se voasse pela rua.
O pensamento é como voar pela rua e sempre dá para fugir da vizinha de cima, que não dorme de noite nem de dia, está sempre acordada.
A vizinha de cima deve ser uma coruja, até porque roda o pescoço mais do que o normal.
Outras perguntas dentro da cabeça da pessoa que está em frente a uma máquina:
E se isto não fosse uma cidade cheia de betão e gente, mas sim um bosque repleto de árvores e barulhinhos misteriosos? E se isto não fosse um planeta, mas sim um meteoro ou uma estrela cadente?
Sempre dava para cair por aí como um periquito amarelo.
A pessoa em frente a uma máquina ri-se. É evidente que não gostaria de ser um periquito amarelo nem uma estrela cadente. A pessoa em frente a uma máquina nem gosta de periquitos. Nunca teve um periquito, sequer. Nem mesmo na infância.
Mas agora deu-lhe a fraqueza e achou que seria muito mais giro ser um periquito do que uma pessoa em frente a uma máquina.
Nas cabeças extremamente avançadas dos seres humanos, a ficção é sempre melhor do que a realidade.
Eis o perigo.
Há numerosos estudos que comprovam que ser um periquito não é melhor do que ser uma pessoa em frente a uma máquina. Os dados existentes parecem indicar aliás o contrário: não há nada melhor do que ser uma pessoa em frente a uma máquina. Nada é mais eficiente nem mais resistente nem mais felizardo do que uma pessoa em frente a uma máquina.
Em especial no inverno, em noites frias como esta. Um periquito já estaria morto, coitado.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

As pessoas urbanas

As pessoas urbanas andam de metro. Algumas vêm sentadas e outras vêm de pé. 
Entre as pessoas que vêm de pé, umas vão encostadas à porta, outras agarradas ao varão, no centro da carruagem. As pessoas mais urbanas ouvem música, outras leem um livro. As pessoas ainda mais urbanas fazem as duas coisas ao mesmo tempo: ouvem e leem, leem e ouvem. As pessoas mais ou menos urbanas não fazem nada disto, olham no vazio; os olhos abertos e desfocados. 
Um homem lê um jornal e está visivelmente zangado com qualquer coisa que poderá não ter nada que ver com o jornal. Coça a testa, suspira. 
Uma senhora traz um chapéu na cabeça que é quase uma cartola, está absolutamente ridícula. 
Uma mulher de cabelo muito comprido segura as duas alças da sua malinha elegante com as suas duas mãos elegantes. A mala cintila e os lábios da mulher também. 
De repente, o metro pára, mas não numa estação. Fica parado no meio do nada, entre uma estação e outra, no escuro. 
As pessoas urbanas olham para o vidro do lado direito e para o vidro do lado esquerdo, mas só se vêem a si próprias, porque não há luz do lado de lá, só há luz dentro do metro. 
As pessoas urbanas ficam a ver o seu próprio reflexo e depois entreolham-se através do espelho. Os olhos das pessoas urbanas olham para o reflexo de outros olhos. São muitos pares de olhos que dizem uns aos outros: 
"Eu estou a ver-te a ver-me a ver-te a ver-me."
Uma voz off anuncia em francês que o metro partirá assim que possível. Merci de votre compréhension. A voz off repete a mesma informação em neerlandês e depois em inglês. 
Ouvem-se os primeiros suspiros aqui, ali e acolá, uf, buf, pffff, mas ninguém diz nada, ninguém refila, ninguém reclama. As pessoas urbanas são civilizadas e pacientes. 
A senhora do chapéu ridículo aperta um pouco mais o varão com a sua luva de cabedal preto. A luva faz um som de cabedal, chuiiiic. O rapaz que vem encostado à porta enterra as mãos ainda mais nos bolsos do casaco e roda as pontas dos pés para dentro. Calça uns All Stars verdes e um deles vem desapertado. 
As pessoas estão muito caladas e respiram menos, é preciso poupar  oxigénio. 
O homem do jornal ajeita os óculos e sacode o jornal que, apercebendo-se de qualquer coisa, endireita as folhas. 
A mulher dos cabelos muito compridos tosse duas vezes para a sua mão elegante, cof, cof
Um moço despenteado a rigor cerra os dentes várias vezes seguidas. As pessoas urbanas percebem que o rapaz cerra os dentes, porque os maxilares do moço mexem-se. 
Uma senhora asiática que lê um livro abana a cabeça sem tirar os olhos do seu livro. Talvez não tenha gostado da passagem que acaba de ler.
Um homem gordo com ar de escocês que produz o seu próprio whisky olha para o teto, parece concentrado em alguma coisa.
A senhora do chapéu ridículo lança um olhar reprovador à rapariga magra, que olha explicitamente para o seu próprio reflexo. Vários passageiros ficam a observar a rapariga magra, que não observa mais ninguém, só o seu reflexo no vidro. A rapariga magra decide refazer o seu penteado urban casual, o que implica tirar pelos menos seis ganchos da cabeça e voltar a colocá-los na cabeça. O penteado da rapariga fica exatamente igual, mas a rapariga está contente com o resultado. 
A primeira pessoa a olhar para o relógio é a mulher dos cabelos muito compridos. Mas há pelo menos quatro pessoas a olhar para o telemóvel e essas não precisam de consultar o relógio para saberem as horas. 
Um homem abana a perna por baixo de uma mochila grande que, devido à trepidação, também estremece. A mochila e a perna fazem barulho, tecido contra tecido, zuique, zuique, zuique, zuique
Ainda só passaram três minutos, talvez quatro. 
As pessoas urbanas sabem perfeitamente que poderão ficar ali fechadas uns quinze minutos ou até meia hora ou mesmo uma hora seguida ou mais ainda. Tudo pode acontecer dentro de um túnel escuro. As pessoas urbanas estão preparadas para isso. Olham para o vidro. Algumas pessoas hesitam, parecem estar com receio. 
A verdade é que não sabem bem onde estão nem qual das estações fica mais perto da sua posição atual: se a anterior,  se a seguinte. Poderá ser necessário andar a pé pelo túnel, na escuridão. Como é óbvio, não será necessário andar a pé pelo túnel, na escuridão. Haverá, pelo menos, uma ou outra lanterna. 
Para passarem o tempo, as pessoas urbanas pensam nas suas vidas ou então na distância entre a localização do veículo debaixo de terra e a estação seguinte. Também mexem em coisas: na carteira, no telemóvel, na agenda. 
Um homem careca estala os dedos das mãos, um por um, claque, claque, claque. E nesse momento, como que por milagre, o metro soluça e retoma a marcha. Primeiro avança muito devagarinho, mas a seguir já vai lançado como habitualmente. As pessoas urbanas suspiram de alívio, descomprimem devagar, sorriem. 
O metro pára na estação seguinte. Umas pessoas entram, outras saem.
Entretanto, o senhor da mochila grande mete conversa com a mulher dos cabelos muito compridos. A mulher ri-se e responde. Ele diz outra coisa e ela responde. A mulher do chapéu ridículo lança um olhar reprovador ao senhor da mochila e à mulher dos cabelos muito compridos. As pessoas urbanas não devem falar umas com as outras.
Uma senhora pequenina atende o telemóvel e diz uma série de coisas muito rápido numa língua não identificada. 
A vida volta progressivamente ao normal. Urban casual.
No final do dia, nenhuma das pessoas urbanas se lembrará dos minutos que passou no túnel, no meio do nada, na escuridão. 
Ainda bem! 
É melhor não pensar no escuro, na falta de luz ao fundo do túnel.
Sensação estranha, aquela, a de estar enfiada num buraco rodeada de estranhos. Zuique, zuique, tecido contra tecido.

As pessoas urbanas não entram em pânico.

Não é que não tenham vontade.
É mesmo só porque parece mal.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Charlotte Chocolat

No outro dia uma amiga ofereceu-me um pacote de biscoitos.
Dentro do pacote estavam os ditos biscoitos mas eu ainda não sabia disso, porque o pacote estava fechado, e do lado de fora do pacote, mesmo a olhar para mim, estava uma moça sardenta de cabelo escuro com ar de quem conhece uma receita sofisticada de biscoitos de chocolate. Olhei melhor. A senhora tinha nome. Chamava-se Charlotte Chocolat.


Percebi logo que eu e a Charlotte Chocolat íamos ser amigas. 
O pacote dizia que os biscoitos eram feitos de chocolate e flor de sal.
Sim, é verdade: chocolate e flor de sal. 
Fiquei tão entusiasmada com a ideia de comer um biscoito doce e salgado ao mesmo tempo que abri o pacote e comi os biscoitos todos em dez minutos. Foi uma amizade fugaz, de facto, mas mudou-me para sempre.
Estou com vontade de tomar chazinho com a Charlotte Chocolat todos os dias. De tal forma que fui ao sítio dos generosos fabricantes e descobri outras companhias simpáticas para a hora do chá: a Céline Citron, o Sylvain Speculoos, o Viktor Vanille e a Nicole Noisette.
Ainda não interagi com estas personagens comestíveis, mas gostaria de beber chá com todas elas. 
Quem será o autor destas personagens?
Alimentada pela inspiração que me crescia na boca, comecei a imaginar possíveis nomes para outros biscoitos:
Amélia Amêndoa, José Café, Henrique Gengibre, Laura Laranja, Margarida Manteiga, Carolina Canela...
Deve ser engraçado inventar nomes para biscoitos.
Infelizmente, eu não dava grande nome para um pacote de biscoitos, porque já não há paciência para Ana Banana.
Voltei ao sítio generoso agora mesmo e acabo de descobrir que o café ao lado de casa tem destes pacotes generosos para a hora do chá.
A minha boca entusiasma-se, começa a fazer planos.
Pequeno intervalo para notícias sobre o tempo: amanhã, em Bruxelas, vão estar zero graus. A minha boca pensa: "Vai-me saber bem o chá!"
Claramente, eu nunca hei de ser magra nem sofisticada, sou um mamífero bruto a comer.
Por isso, olha! Mais vale cair numa depressão profunda. 
E buscar consolo nos ombros da Charlotte Chocolat. 
A minha boca diz de si para si: "Mmmmmmh..."

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Amor ortográfico: Caneta vibratória

A propósito de tudo isto, descobri aqui há uns dias mais um desenvolvimento prodigioso da era da técnica:

uma caneta vibratória.

O tema interessou-me, porque no geral gosto de vibrar com as novidades. Fui ver.
Era isto:

Imagem e artigo aqui (em inglês).

O conceito é mais ou menos simples, embora a solução técnica seja para mim um mistério. Trata-se basicamente de uma varinha de condão da escrita, que vibra quando deteta erros ortográficos.
Bem, não é bem uma varinha de condão, porque só deteta erros, não realiza os nossos desejos mais desejados. Mas se pensarmos bem, detetar erros ortográficos já é um dos três desejos mais desejados de muita gente, ou não? Uma pessoa está muito bem a escrever um recado para a mãe a dizer: «A mousse estava óptima» e, quando vai a desenhar o «p», a caneta estremece irritadinha. Fica talvez por realizar o desejo de corrigir o erro, mas a dúvida já é meio caminho andado.
Por mim, nada contra, eles que tremam para aí. Há de certeza quem goste de levar reguadas vibratórias. E as reguadas vibratórias, além de não aleijarem ninguém, devem ser inspiradoras. Além disso, percebo a utilidade do instrumento para pessoas imaturas, iletradas, inseguras.
No entanto, fico com pena dos erros ortográficos. Por este andar, vão ser coisa do passado, mesmo entre os alunos da primária. E eu gosto bastante de erros ortográficos. E também de gralhas, falhas, fífias, fendas. É como jogar às escondidas com o texto. Quando apanho um erro, grito contente: Tcharam, apanhado! E muitas vezes acontece-me gostar mais do erro do que da palavra aperaltada.
Por exemplo, enquanto estava à escrever este texto à mão, em vez de «erros ortográficos», escrevi «eros ortográficos». Exclamei: «Ai, que giro!», porque realmente eros é um erro amoroso. Fiquei a pensar no deus grego e cheguei rapidamente ao amor, daí ter apelidado estas minhas «postas» de «Amor Ortográfico». Pronto, não é assim uma expressão tão inovadora como «caneta vibratória», mas é um título válido e tem a particularidade de homenagear o erro.
Eu saúdo os erros. Fazem-me sentir mais carne e osso, não sei.
O Neil Gaiman, vibratório autor British, diz que a ideia de chamar a sua famosa personagem Coraline surgiu precisamente quando se enganou a escrever o nome Caroline. Para os que falam estrangeiro, vale a pena ouvir o seu discurso, que é também uma varinha de condão.
De resto, reconheço que uma caneta vibratória pode ajudar os mais pequenos nesta difícil e interminável tarefa de aprender a escrever. E, mais importante do que isso, vai com certeza gerar boas vibrações ortográficas no intelecto dos mais afetados.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Amor ortográfico: Canetas


Tenho uma certa obsessão por canetas. Passo a vida a comprar canetas novas, porque também passo a vida a perdê-las. Prefiro canetas baratuxas, claro, até porque não as trato com grande dignidade, e compro sempre uma mão cheia de cada vez. Quando gosto de qualquer coisa, quero logo uma mão cheia, é sempre assim. Hoje em dia, já sei de que canetas gosto, mas antes andava para aí perdida nos corredores do consumismo e o caminho da descoberta foi longo e íngreme.
Até à data, experimentei de tudo um pouco, incluindo as famosas canetas de tinta permanente, que acabavam (permanentemente) por me sujar os dedos. Além disso, a tinta passava para a folha seguinte, era uma atrapalhação. Também era necessário andar com os tubinhos atrás, tirar um, pôr outro, mexer um pouco para a tinta chegar ao bico. Concluí que era demasiada areia para a minha carruagem.
Uma vez comprei uma caneta prateada XPTO, mas não era fácil comunicar com ela. A caneta XPTO tratava-me com frieza, não havia intimidade entre nós. Era uma caneta demasiado sofisticada para mim, por isso, quando a perdi, senti um certo alívio.
Certo dia, comprei uma caneta ergonómica com dois buracos específicos: um para o dedo indicador e outro para o polegar. Era uma Stabilo Easy Original, um nível mais avançado q.b. Pensei: “Uau, a ergonomia!”, até porque a caneta tinha assim uma espécie de cauda a afunilar para o lado e eu quis experimentar. Trinquei e meti-a na cesta. 
A primeira desilusão foi a tampa. Sem tampa, não há caneta, claro, e é preciso guardar a tampa num lado qualquer enquanto usamos o instrumento. Sou um bocado quadrada, mas assim de repente estou em crer que não há nada melhor do que enfiar a tampa no cocuruto da caneta. Parece-me suficientemente prático e ergonómico. Ora, para meu grande espanto, não consegui enfiar a tampa no cocuruto da minha Stabilo Easy Original. Pensei: Very original! A tampa caía o tempo todo, parecia um chapéu demasiado pequeno ou demasiado grande. Ainda assim, usei a caneta durante uns tempos, mas depois percebi que de ergonómico a caneta tinha muito pouco, porque não podia mudá-la de posição. Não dava para rodar a caneta nos dedos, por exemplo, exatamente por causa dos dois buraquinhos. E eu gosto de rodar a caneta nos dedos, de mudar de posição. Cansei e arrumei-a num canto.
Pouco depois, rendi-me às evidências: as minhas canetas de eleição são mesmo as canetas de gel 0.5 mm. São fáceis de manusear, não fazem muito estardalhaço e a tinta chega-lhes logo ao nariz. A coleção da Muji é bem simpática, especialmente por causa das cores originais, mas falta-lhes o apoio de borracha para os dedos. Agora, no site, descobri as promissoras smooth writing gel ink pens, vou encomendar. 
Por enquanto, dou-me por satisfeita com as Lyreco Gel Premium 0.5 mm que fui desencantar lá no escritório. Primeiro porque gosto do nome Lyreco e depois porque são transparentes e uma pessoa vê logo a quantas anda: se tem muita ou pouca tinta, se a caneta aguenta uma semana ou só um dia. A outra vantagem é o tal apoio de borracha para os dedos, que é uma grande ajuda para as minhas mãos de alicate, já que tenho esta tendência de mamífero bruto para apertar o pescoço às canetas.
De facto, deve ser um grande sufoco trabalhar como caneta para mim. Faço tanta força contra o papel, que a certa altura as moças perdem mesmo o fôlego e morrem. Em alguns casos, especialmente as Stabilo hexagonais 0.4, engolem a sua própria língua. A isto se chama não passar da letra morta.
Quando isto acontece, encolho os ombros e passo para a caneta seguinte. 
Antes, na época da escola, tinha vergonha desta minha violência a escrever. Quando estávamos a fazer um teste, a minha caneta gemia sempre mais alto do que as outras e o meu estojo tremia, o enunciado tremia, a própria escrivaninha tremia. O ato da escrita era uma turbulência constante e todos os objetos tinham medo das minhas mãos.
Hoje em dia já não tenho vergonha nenhuma de ser o bisonte da escrita à mão. Na verdade, até gosto. Imagino que tenho assim uns chifres virados para a frente e uma bossa na coluna. Com esta ideia na cabeça, até escrevo melhor. Sinto-me mais forte, mais obstinada. E gosto de trazer pela mão uma caneta robusta, que esteja à altura do desafio e dê luta aos meus cascos. 
A Lyreco Gel Premium 0.5 mm ainda não morreu.

É uma caneta e pêras.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Amor ortográfico: Escrever à mão

Sim, gosto de escrever à mão.
As pessoas da era da técnica ficam um bocado surpreendidas com esta minha ineficiência, até porque eu tenho um certo ar de pessoa eficiente, uma vez que uso óculos de massa. As pessoas da era da técnica falam-me então dos benefícios do computador, blá-blá-blá edição de texto, mas eu já conheço os benefícios do computador. Além de óculos de massa, tenho várias máquinas à minha volta para tudo e mais alguma coisa. Tenho um computador portátil e um computador não portátil em casa e outro não portátil no gabinete, tenho televisão digital, um iPod pequenino, um iPod touch e um smartphone. Além disso, tenho também um homem-máquina em casa que, além de ilimitado, é informático, por isso penso que conheço relativamente bem os benefícios da era da técnica. Mas os meus interlocutores insistem, pegam-me pelo braço, explicam-me que escrever à mão é perder tempo. 
Não gosto muito que me peguem pelo braço, mas isto é só mesmo um aparte. Não sabendo o que dizer, ajeito os óculos de massa e invento desculpas. Digo que sou mais livre a escrever à mão, que posso ir sempre em frente e depois riscar o que me apetece. As pessoas da era da técnica sorriem condescendentes. Dizem-me que o computador é muito melhor, que o computador me dá muito mais liberdade, e têm razão, porque os processadores de texto apagam, não riscam. E apagar é muito melhor do que riscar, claro, claro, claro. Eu concordo: um processador de texto é muito melhor do que papel e caneta, podemos procurar texto perdido e organizar documentos em pastas, mas continuo a preferir escrever à mão. “Pronto, gosto mais assim”. As pessoas da era da técnica, finalmente, desistem.
E a verdade é mesmo essa, gosto mais assim. Gosto mais de desenhar as letrinhas todas, de descurar a técnica. E não há nada de romântico nisto. Escrever à mão é, na realidade, um bocado violento. Às vezes ficam-me a doer os cascos e as articulações. Também fico com dores de cabeça e no cachaço. Escrever à mão é como uma prova de resistência, é preciso ignorar a dor.
No final, uns manuscritos até saem bonitos, outros são absolutamente horríveis, mas isso não importa. Só a natureza interessa quando se escreve à mão e, quando digo natureza, quero dizer conteúdo. Só o conteúdo é importante e às vezes nem isso, porque perco o fio à meada e deixo de conseguir perceber o que escrevi. 
E sim, não perceber o que se escreveu pode ser chato. Mas o mistério também faz parte da coisa e o que está escrito já pertence ao passado, não é para ser relido nem revivido, já saiu, já existe. Quando se escreve à mão, há que seguir em frente. E eu sigo em frente, a toda a velocidade. 
Este exercício implica um certo desrespeito pela técnica e pela ordem. Sou bastante mais rude quando escrevo à mão, gosto de escrever e de riscar o que escrevi, gosto de cair pelas margens. Sou um autêntico bisonte da escrita à mão, na verdade.
Gosto desta imagem do bisonte a escrever à mão. Depois explico.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Um homem caminha com as mãos atrás das costas

Aquele homem caminha com as mãos atrás das costas. Aproxima-se das pessoas e elas agitam-se como pombos, claro, têm medo. Não sabem o que o homem traz atrás das costas e o desconhecimento é terrível. Pode muito bem trazer uma bomba ou uma arma atrás das costas. Que arma?, questionam-se as pessoas dentro das suas cabeças. Qualquer tipo de arma! Uma pistola, uma faca, uma metralhadora. O homem que caminha com as mãos atrás das costas pode ser um terrorista ou um agente secreto ou mesmo um louco. Sim, um louco. Bem, também pode ser só um polícia. Pode trazer um bastão atrás das costas, por exemplo. E nesse caso, está a zelar pela segurança dos cidadãos. De repente, as pessoas apaziguam-se. Não é nada mau estar perto de um polícia, pode dar jeito. Quando se fala de armas, o sentimento de segurança e o sentimento de insegurança confundem-se. As pessoas tanto se sentem seguras como se sentem inseguras. Pensam: Sinto-me seguro. E logo a seguir: Sinto-me inseguro. É extremamente difícil sentir um só sentimento de cada vez. A verdade é que o homem que caminha com as mãos atrás das costas pode nem trazer nada atrás das costas. Pode só estar de mãos dadas atrás das costas, há muita gente que caminha assim, em especial homens de meia-idade como este senhor. Sim, é um senhor, não é só um homem. Tem a barba feita e exala um cheiro sofisticado que é bom para as narinas. Além disso tem um ar saudável e simpático. Deve beber sumo de laranja todas as manhãs e abrir a porta do carro às senhoras. Ainda assim, as pessoas agitam-se, não estão convencidas. Um homem com ar de cavalheiro nem sempre convence, porque no geral é difícil convencer as pessoas. O que traz o homem atrás das costas, afinal? O narrador deste texto sente esta tensão no ar e sorri divertido, porque o narrador não tem nada a temer. Não que estejamos perante um narrador corajoso e temerário, nada disso. Este narrador é cobarde até dizer chega, é um autêntico menino da mamã. Só que o narrador, na sua qualidade de narrador, não existe propriamente, não tem carne nem osso, portanto não corre perigo de vida. Já se sabe que, tanto na realidade como na ficção, não é possível matar uma pessoa sem corpo. Um narrador só tem alma. Acresce a isto que o narrador está numa posição estratégica em relação ao homem e às pessoas, porque vem precisamente atrás do senhor que cheira bem e vê perfeitamente o que o homem transporta atrás das costas. Bom, acabe-se com este mistério: o homem traz um guarda-chuva atrás das costas. Esta é a verdade. Sim, um mero guarda-chuva, daqueles que aumentam e encolhem consoante a necessidade. Neste momento, o guarda-chuva vem encolhido, porque não está a chover, até porque estamos na plataforma do metro e, por norma, não chove debaixo de terra. O narrador ri-se das pessoas inquietas e agora distrai-se da sua personagem principal. Está a pensar nesta característica interessante e invejável de os guarda-chuvas aumentarem e encolherem consoante a necessidade. Seria bom aplicar esta característica a outras coisas. Aos carros, por exemplo. Às estátuas, às praças, às igrejas e também às pizzarias, às tascas, aos quiosques de jornais, às lojas de roupa, aos supermercados, às máquinas de lavar loiça, às máquinas de cortar relva, a todo o tipo de máquinas aliás. Às alterações climáticas, ao mercado único, à política comum das pescas. Aos livros. Ou mesmo às pessoas, porque não? Aumentá-las e encolhê-las consoante a necessidade. Preciso de ti: aumenta. Agora já não preciso de ti: encolhe. Contabilistas, tradutores, escritores, arquitetos, astrónomos, padres, mães, pais, padrinhos. Ocuparia tudo muito menos espaço. Poderíamos meter tudo e mais alguma dentro de gavetas e teríamos um mundo limpo e arrumado. Seria muito melhor viver num mundo assim. O narrador vai enumerando as vantagens dentro da cabeça, mas logo se depara com as desvantagens. Por exemplo, o sentimento de insegurança é uma desvantagem, porque esse seria porventura maior num mundo repleto de coisas que aumentam e encolhem. Nada seria previsível! Tudo caberia dentro de uma mala ou de um bolso. Seria possível trazer um prédio atrás das costas ou mesmo um comboio ou até a própria União Europeia, consoante a necessidade. As pessoas seriam como mágicos, mas sem a parte da magia. Cada um transportaria o que quisesse dentro da sua cartola. O narrador pensa em tudo isto e esquece-se do protagonista desta história. O que trazer dentro de uma cartola? No caso de um narrador, histórias e personagens, metáforas, diálogos, expressões idiomáticas.
O metro chega e o homem do guarda-chuva entra na primeira carruagem, desaparece no meio dos outros. É uma pessoa como as outras. Vai encolhido a um canto, já ninguém o vê.