quarta-feira, 29 de abril de 2020

O meu acessório essencial

Amanhã é quinta, hoje é quarta, ontem foi terça-feira, 28 de Abril de 2020. A Penélope Cruz fez 46 anos. Os gémeos fizeram oito meses. E eu fiz uma salada de quinoa e feta que ficou bem boa.
O mais velho espetou-se de bicicleta. Foi numa descida do parque. Contra uma cerca.
No regresso a casa apanhámos uma molha daquelas. Constatei que o meu filho tinha vivido duas primeiras vezes de seguida: primeira espeta e primeira molha.
Chegou-me o período. Lavei o cabelo. Escrevi um texto.
Senti um amor carnal pelos meus filhos. Tive necessidade de os morder e apertar. O leitãozinho mais novo riu-se às gargalhadas com as minhas dentadas.
Abri “O livro do ano” do Afonso Cruz. Dei com esta entrada no dia 28 de abril:

“Não é preciso ser cientista para compreender as árvores. É só preciso ser pássaro. Ou Abril.”


O mais velho andou à solta no nosso quarto. Descobriu os meus fios e colares. E também as minhas pulseiras e pregadeiras. Já não me lembrava de nenhum destes acessórios.
Uma vez no cabeleireiro dei com uma revista de moda que dizia na capa: “acessórios essenciais”. Nunca mais me esqueci desta antítese. Não há nada essencial num acessório. O acessório é, por definição, acessório. Mas percebo a ideia de acessórios essenciais.
Li um post muito fixe da Matilde Campilho. Era sobre dois artigos de jornal. 
Nunca escrevo sobre jornais. Nunca escrevo sobre o mundo. Nunca escrevo sobre os outros.
Se calhar devia dar um passeio fora da minha cabeça, fora da minha vida. 
Não vai ser hoje. Não vai ser ontem, terça-feira, 28 de Abril.
Comi chocolate “caramel au beurre salé”. Pus um dos fios que o meu filho descobriu na gaveta. Olhei-me ao espelho, não senti nada.
No fim do dia, o mais velho deu-me uma cabeçada na boca. Foi um acidente. Sangrei e vi estrelas.
O peixe congelado que comemos ao jantar estava passado.
À noite estive a ver o livro das cores e dos cheiros com o mais velho. Na página verde inventei uma história muito fixe com os vários elementos: era um crocodilo que gostava muito de ervilhas, uma tartaruga que gostava muito de pepino e uma árvore que gostava muito de alface.
O biberão da noite derramou-se no pijama do mais velho. Coitado. Teve mesmo um dia péssimo.
À hora de dormir escrevi este texto sobre o dia terrível na vida do meu filho. Mas afinal não é bem um texto sobre o dia terrível na vida do meu filho. É só um texto sobre um dia. E não é sobre o meu filho, é sobre mim. Que chato.
Nada a fazer. Eu escrevo sobre mim. Para mim. Por mim. Contra mim.
Escrever é viver outra vez. É existir de um lado e do outro. 
É apanhar duas molhas. É levar duas cabeçadas.
Escrever é dar um passeio dentro da cabeça. É ser pássaro e cientista. É ser o dia de ontem: 28 de Abril de 2020.
Escrever é o meu refúgio, o meu abrigo. O meu acessório essencial.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Os três porquinhos

Herdámos dos vizinhos do sétimo uns livros com histórias e canções em francês. Gostamos tanto desses livros que já adquirimos mais uns quantos. 



O mais velho deve andar com saudades da língua francesa. Volta e meia senta-se no chão e ouve as canções em silêncio. Ultimamente não larga os três porquinhos. O livro tem uns botõezinhos em baixo para ouvir os vários capítulos. Ele carrega no primeiro botão e a história começa: 

“Il était une fois
trois petits cochons
bien roses et bien ronds...”

O meu filho ri-se porque eu digo esta frase ao mesmo tempo que o narrador. Depois o narrador conta que chegou a hora de os três porquinhos saírem de casa dos pais e de construírem, cada um deles, a sua própria casa. “Au revoir, papa! Au revoir, maman !”, dizem os três porquinhos e lá vão eles à sua vidinha. O meu filho acena para mim, diz “Au revoir” e explica-me: “É francês”.
Olho para os meus três filhos, todos eles “bien roses et bien ronds”, e pergunto-me qual destes três leitões vai construir a casa de palha. A de madeira ainda vá, mas uma cabana de palha é de uma enorme irresponsabilidade. O mais velho escuta a história com imensa atenção, o segundo concentra-se nas palmas das mãos, o terceiro sacode as pernas e dá gritinhos.
Decidi que o infeliz idiota da casa de palha será este mesmo, o mais novo porque é o mais aluado. Grande otário, disse-lhe, devias levar já um par de estalos por antecipação para não seres tão preguiçoso.
Depois pensei nessa cabana feita às três pancadas e enterneci-me. Imaginei-o deitado numa cama de palha a tocar harmónica, sem grandes planos, sem grandes medos. Os olhos vivos e o riso fácil, uma certa infância ainda. Parece distraído, mas não está. Observa com atenção o movimento das nuvens e das árvores, qualquer coisa nele está em harmonia com o mundo. Hesito com o par de estalos. Se vier o lobo, há de ser devorado, mas a sua vida será mais intensa que a dos outros porquinhos, tão esforçados e cautelosos. Na verdade talvez seja ele a chave da história. Nem sempre o esforço compensa. Por vezes é preciso perder tempo para ganhar tempo. Para que interessa perder anos de vida a construir uma casa de pedra cheios de cuidados e de medos, se não compreendermos absolutamente nada sobre a vida e o mundo?
A bem dizer, talvez seja o porquinho da casa de palha o verdadeiro herói da história. Quando o lobo vier só ele vai prestar atenção. Só o porquinho da casa de palha vai antecipar a sua chegada. Vai parar de tocar harmónica, vai observar os rolos de palha, vai prestar atenção à mudança do vento e colocar hipóteses sobre o futuro. Só ele estará a olhar para o horizonte quando o lobo aparecer ao longe e vai ser ele a avisar os irmãos, que estarão nessa altura confortavelmente instalados nas suas casas.
Retirei então o par de estalos que tinha reservado para o mais novo. É ele que nos vai salvar. Com a sua harmónica e o seu poder de observação.
Olhei para ele emocionada. As pernas a dar a dar, aquele ar de quem não mora aqui. Tanto idealismo e expressividade.
Este mundo não precisa de mais gente acomodada e receosa. Este mundo precisa de pessoas sonhadoras e contemplativas.
Entretanto o mais velho já não está a ouvir a história dos três porquinhos. Está de roda dos legos, a construir uma torre muito direitinha.
Dou um caldo na cabeça do mais velho e mando abaixo a torre de legos com um pontapé. Grande otário, digo-lhe, vais ser tu o que vai construir a casa de pedra. Não percebeste nada de nada. Falhei em tudo.

sábado, 25 de abril de 2020

Livre em casa

Livre em casa
Livre confinada
Livre e casada
Livre e cansada
Livre desgrenhada
Livre desinfetada
Livre e maternal

Liberdade condicional 


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Para que serve?

Hoje é dia mundial do livro. Coitados dos livros. Há meses que não leio a ponta de um corno. Vou lendo às mijinhas, fico sempre a meio de uma frase. Volto atrás. Releio o parágrafo, a página anterior. Não me lembro de absolutamente nada. Adormeço. As livrarias do bairro estão todas fechadas. Têm folhas à porta a dizer que podemos encomendar livros por email. Ah, boa. Bela ideia. Não encomendei nenhum. O melhor que fiz foi encomendar livros diretamente a algumas editoras. Chegam pacotes às pinguinhas. Se morrerem as editoras independentes, estamos feitos. Ouviram? Acaba-se esta coisa dos livros e da literatura. Se fecharem as livrarias do bairro, corto os pulsos ou então faço uma tatuagem a dizer: mea culpa. Porque a culpa será minha. A culpa será nossa. Ouviram?
Estes tempos não são para livros, né?
Ou são?


Pois tenho a dizer que hoje, dia mundial do livro, chegou por correio um livro lindo, rosa choque. Por favor, agarrem-no. Encomendem-no. Chama-se Para que serve?, é do José Maria Vieira Mendes e da Madalena Matoso, e não serve para nada. Nadica de nada. Não ensina a fazer máscaras de tecido, não dá conselhos amigos, não conta uma história sequer. E é um livro lindo e tão necessário em tempos de confinamento social, económico e cultural. Que bem me fizeram estas perguntas fluorescentes. E que pena não podermos ver as estantes das livrarias repletas de exemplares deste livro. Todos a perguntar em rosa choque: Para que serve? Para que serve? Para que serve?
No dia mundial do livro ocorre perguntar: Para que serve um livro? 
Para nada, claro.
E para absolutamente tudo.

domingo, 19 de abril de 2020

Assim ou Assado

Terra ou ar, sorte ou azar! “Assim ou Assado” é um dos 12 melhores livros infantis de 2019 selecionados pelo Plano Nacional de Leitura.

http://www.pnl2027.gov.pt/np4/livrospnl_literaturainfantil.html


quinta-feira, 16 de abril de 2020

O trono de porcelana

Hoje, enquanto, ajoelhada em frente à retrete, lavava o tampo da sanita com o pano rosa embebido em spray lava-tudo, fui surpreendida pela beleza deste extraordinário trono de porcelana. 
Abri o tampo de plástico e considerei a potencialidade estética do objeto branco com dobradiças delicadas. Constatei que o assento, com o seu formato oval e o amplo buraco no meio, constituía uma elegante moldura. Na minha imaginação, questionei-me sobre quantos artistas teriam já usado tampos de sanita para expor as suas obras. Certamente dezenas, possivelmente centenas. 


The toilet, John Bratby, 1955

Debrucei-me então na sanita e apliquei wc pato no tanque. Enquanto observava a queda do produto pela sanita abaixo, projetei no meu espírito uma exposição interativa para toda a família que incluiria um percurso livre por várias salas envolvendo a abertura de tampos de sanita. O conteúdo atrás desses tampos teria de ser, claro está, invulgar e desafiador. Haveria tampos de sanita espalhados pelo chão e pendurados nas paredes. Alguns tampos esconderiam objetos, outros mostrariam túneis escuros com passagem para outras salas, outros emitiriam sons, outros exibiriam apenas um buraco na parede, possibilitando a observação de outros visitantes a circular na sala ao lado, saltitando de sanita em sanita. 
Contemplei a retrete, satisfeita com a minha ideia. 
De seguida substituí o disco de gel no rebordo da sanita e pensei nesse grupo de visitantes a abrir e a fechar tampos, a mergulharem nos buracos, a assustarem-se porventura com outros visitantes que estariam à espreita atrás de uma das molduras. Cucu!, diriam os mais atrevidos. Alguns talvez dessem início a uma conversa. O tampo seria neste caso uma porta ou uma janela. 
Quando peguei no piaçaba, apercebi-me finalmente de que nenhum corpo adulto está em condições de atravessar um tampo de sanita. Por essa razão não costumamos cair na retrete. Corrigi assim a minha ideia original e imaginei um itinerário de sanitas dirigido exclusivamente a crianças de dois ou três anos. Afinal não seria bem uma exposição, mas sim um parque infantil de sanitas e abarcaria igualmente vários sistemas de autoclismos que fariam descargas de gomas e chocolates. Voltei a imaginar esse espaço e vi na minha mente um monte de crianças felizes a gritarem “chichi, cocó” e a abrirem os tampos de sanita com enorme expectativa e emoção.
Por fim, fechei o tampo da minha sanita com brandura e intenção, congratulei-me com o brilho e a brancura da retrete, e decidi que aquela tarefa doméstica tinha chegado ao fim.

Um grande peso

O Luís Sepúlveda mora no meu imaginário, no meu ânimo e nos meus livros.


Em “Aqui é um bom lugar”, ilust. Joana Estrela

domingo, 12 de abril de 2020

Boa Páscoa!

A palavra ressurreição é efetivamente feia.


Em “O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca”, ilust. Bernardo P. Carvalho

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Sexta-feira santa

Isto está a descambar mas não muito. Substituí a mala por um saco de pano. Quase nunca me penteio. Saio de casa de cabelo molhado. 
Leio no telemóvel. Falo no telemóvel. Escrevo no telemóvel. Emails, textos, mensagens.
Deixei de usar óculos porque enfim, não há nada para ver. 
Visto uma roupa híbrida, que não é pijama mas também não é roupa de rua. Ando sempre com um casaco de malha muito velho e amarrotado. São vários casacos de malha, todos velhos e amarrotados. Um amarelo, outro rosa, outro cinza, outro azul, outro preto.
Continuo a usar brincos. Continuo a tomar as vitaminas. Continuo a embalar os bebés.
Durmo aos bochechos. Gosto muito desta expressão: aos bochechos. E também desta: às pinguinhas. Às mijinhas. Aos pedaços.
Bebo cerveja todos os dias. Como chocolate todos os dias. Tomo banho todos os dias.
Tenho sonhos muito estranhos. Hoje sonhei com um barco enorme. Aconteciam muitas coisas nesse barco, mas já não sei bem o quê. Havia uma tempestade a certa altura e também um lençol muito branco e muito grande.
Estou sempre com pouca bateria no telemóvel. 20%. 10%. Nunca sei do carregador.
Já não posso com o corona nem com as piadas sobre o corona. Os vídeos, as fotos.
O Instagram diz-me que esta semana gostei de vários posts com a hashtag #staythefuckhome. Gosto mais da hashtag portuguesa #euficoemcasa, mas toda a gente usa a outra.
Por acaso hoje não fico em casa. É sexta-feira santa. Fomos andar de bicicleta. 


Há quatro anos que não andava de bicicleta. 
Primeiro foi o inverno, depois foi a gravidez, depois foi o bebé, depois foi o inverno outra vez, depois foi a outra gravidez, depois mais dois bebés, e depois por aí fora até hoje, sexta-feira santa. 
Jesus Cristo na cruz e eu na bicicleta.
Gorda, feia e feliz na bicicleta.
Jesus a morrer por mim. Coitado. E eu naquelas descidas sempre em frente. Uma pessoa nem precisa de pedalar. Vento, sol e liberdade. 
E aquele vislumbre muito breve e fugidio da nossa própria infância.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

A luz é grande

(As primeiras frases do meu filho mais velho.)


A luz é grande.
O céu está longe.
A estrela é alta.
O buraco é escuro.
O chão está sujo.
A mamã já vem.
Não está ninguém.
A folha caiu.
O carro subiu.
A porta abriu.
A nuvem fechou.
É o chapéu do avô.
É o carro da garagem.
É a garagem do carro.
O peixe é um peixe.
O leite é o leite.
É o camião do lixo.
É uma flor amarela.
É uma cancela.
É um menino.
Está triste.
Está contente.
Está quente.
Está frio.
Está vazio.
Está escondido.



terça-feira, 7 de abril de 2020

Assim ou Assado no Sapo

“Assim ou Assado” em grande estilo no Lifestyle da Sapo. Sim ou não, laranja ou limão!

Seleção de 12 livros para os mais novos: https://lifestyle.sapo.pt/vida-e-carreira/noticias-vida-e-carreira/artigos/paginas-onde-se-fazem-amigos-12-livros-que-os-mais-pequenos-vao-adorar

Postal “Baixo ou alto, corrida ou salto” do livro “Assim ou Assado”, Yara Kono.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Hoje sonhei com portais para outras dimensões

Um dos gémeos parece-me quente. Tiro-lhe a febre. Não tem.
Nas últimas 24 horas morreram 183 pessoas na Bélgica. 93% das vítimas tinham mais de 65 anos.
Hoje é dia internacional do livro infantil. Parabéns ao livro infantil.
Dói-me a cabeça. Às vezes parece que me dói a garganta, mas depois passa.
O meu filho mais velho quer fazer desenhos. Faço um acordeão. Fico contente com o resultado. Ele também.
Hoje sonhei com portais para outras dimensões. Os portais não eram portas nem portões. Eram objetos absolutamente normais: um par de óculos, um guarda-chuva, um colar. Uma pessoa abria o guarda-chuva e mudava de cenário.
Um dos minorcas tosse e o outro espirra três vezes seguidas. O mais velho imita-o. Atchim atchim atchim.
A ONU considera esta pandemia a crise mais difícil desde a Segunda Guerra Mundial.
O meu filho mais velho adora o Into the Mood do Glenn Miller.


Recebo fotografias de uma amiga que fez anos ontem. Está a nevar na Bulgária.
No meu sonho há tantos portais para outras dimensões que chega a ser irritante. A certa altura estou a discutir com um velho a propósito de não sei quê, visto o casaco e pim!, vou parar a outro lugar, com a discussão a meio.
Consulto os dados oficiais. Neste momento já são 49160 as vítimas mortais.
O meu filho mais velho aponta para as flores da minha blusa. Diz: “Tanta flor”.
A convite da professora Ana Margarida Ramos, participo numa aula sobre literatura para a infância através do Instagram.

Composição da Ana Margarida Ramos. Aula através do Instagram com os vários participantes.

O meu filho enterra o nariz na minha blusa. Diz: “Cheira bem.”
Adoro o Nick Cave. Não ouço Nick Cave há meses, mas tenho lido as cartas que ele escreve aos fãs.
No meu sonho apercebo-me de que o casaco foi o portal para a nova dimensão. Volto a vestir o casaco para voltar atrás, mas o portal já não funciona.
Parece que os vizinhos de cima têm Covid ou estiveram com alguém que tinha. Estão em quarentena há quase duas semanas.
A vizinha de baixo ligou-me no outro dia. Tem 84 anos. Disse-me que nos devíamos concentrar nas coisas boas. Que a qualidade do ar estava a melhorar e que se calhar os meus filhos não iam ter bronquites no inverno.
Os gémeos já têm dentes. Ou melhor: cada um deles tem um dente.
Na última carta aos fãs, o Nick Cave diz que este não é um momento para criar. É um momento para prestar atenção.
No meu sonho, encontro uma caixa de biscoitos num comboio. Tenho a certeza de que a caixa é um portal, por isso vou direitinha a ela.
Os dentinhos dos meus filhos emocionam-me. Brotam das gengivas como plantas.
Segundo um especialista em doenças infecciosas, devemos usar máscara na rua. Mas no outro dia um perito qualquer em epidemias dizia que a máscara não fazia grande diferença. Opto por esta segunda opinião porque não me ajeito com a máscara.
No sonho, abro a caixa de biscoitos e acordo. Fico desiludida porque não queria acordar, mas comprovo que a minha intuição estava correta: a caixa era um portal para outra dimensão.
Gostava de saber se o Nick Cave usa máscara. Imagino-o em casa, sentado numa enorme poltrona. A prestar atenção.
No meu sonho, as máscaras poderiam ser portais, mas não me lembrei disso enquanto estava a sonhar.
O meu filho mais velho está a olhar para uma fotografia da creche. Fica nisto durante vários minutos. Olha para todas as caras. Não diz o nome de ninguém, não diz absolutamente nada. Fica só a olhar para a fotografia.
Leio num jornal belga que o número de doentes nos cuidados intensivos diminuiu ligeiramente.
Vou ao dicionário ver como se chamam os peritos que andam a falar deste vírus. Descubro que os especialistas em epidemias são epidemiólogos ou epidemiologistas, que os sabedores de viroses são virólogos ou virologistas e que os tipos das doenças infecciosas são infectologistas ou infecciologistas.
Saio de casa. Chamo o elevador. Imagino o vírus no meu dedo indicador. Uma bolinha a subir pelo meu braço como um inseto. Tenho comichão no nariz, mas não coço o nariz.
Na Bélgica os peritos dizem que o pico da epidemia ainda não está à vista. Olho para os gráficos no telemóvel. A curva parece sempre igual: é uma curva. Sinto-me sempre muito burra quando olho para estes gráficos.
Uma vizinha segura-me a porta do prédio para eu passar. Não quero quebrar as regras da boa educação, mas também não quero quebrar a regra do distanciamento social. Ficamos num impasse. A vizinha insiste. Quer dar-me passagem. Quebro a regra do distanciamento social e atravesso o portal.
Estou na rua. Tento prestar atenção, mas não consigo. Não há quase ninguém cá fora. Só eu, a minha sombra e meia dúzia de gatos pingados.
Na praça da igreja, ao verem-me chegar, os pombos estalam no ar. Encolho-me, mas não muito. Antes uma caganita de pombo que de covid.
Uma mulher passa por mim e tosse. Não lhe dou um sopapo por causa do distanciamento social.
Tiro uma fotografia à minha sombra.
Nunca percebi muito bem aquela expressão: “Não és sombra do que eras”.


Sinto alguém atrás de mim na rua, mas não olho para trás. Acelero o passo e toco na sobrancelha.
No sonho as pessoas andam muito afogueadas, de portal em portal. Parecem estar à procura de uma dimensão que ficou há muito para trás. Eu também ando afogueada e não sei porquê.
Um homem aproxima-se. Tem mesmo tromba de Covid. Pede-me uma moeda e eu acelero ainda mais o passo. Penso: “Coitado do homem”. Penso: “Coitada de mim”.
Apercebo-me de que toquei no nariz.
Recebo um email de uma amiga que diz no assunto “long email”. Nesse longo email conta-me que ensinou o avô a usar o Skype. Imagino-a a falar com o avô através do Skype.
Chego a casa e começo a tossir. Uma tosse seca. Toco na boca antes de lavar as mãos.
Tenho falado com os meus pais quase todos os dias. Antes da pandemia não falávamos tanto.
As palavras pandemia e epidemia rimam. As palavras confinamento e isolamento também.
Lavo as mãos e penso na falta de precisão terminológica. As pessoas falam de isolamento, de quarentena e de confinamento como se fossem a mesma coisa, mas não são a mesma coisa.
Olho para a água a correr e penso que a torneira também podia ser um portal. Fecho a torneira, mas nada acontece. Não mudo de cenário, não acordo, não nada.